I. ALUMBRAMENTO
"She's making me feel like I've never been born."
JOHN LENNON
Se hoje sinto minhas asas crescendo, quase prontas para ousarem decolagens inéditas, é a ela que devo agradecer. Se hoje meus termômetros me dizem que meu sangue ferve em temperatura bem superior ao que costumava, devo isso à minha temporada às beiras da fogueira dela – a fogueira que ela era. Se hoje meu coração tem tão belas cicatrizes a mais o decorando, também nisso ela tem mérito no cartório. Tyler Durden dizia: “I don't wanna die without any scars.” Eu me envergonharia de ir para o caixão com um coração perfeitamente intacto: sem trincos, sem tombos, sem hematomas, sem marcas de mordida, sem ossos fraturados e depois reconstruídos. Sem uso. Nascemos para nos usarmos. É isso. Quero a glória de morrer com um coração combalido por ter amado além da medida. Pois a única medida de amar é amar desmesuradamente. Sem rédeas. Sem contenção. Sem economia.
Que conhecê-la mudou minha vida, e pra muito melhor, não tenho dúvida. Meu rápido passeio pelo planeta Terra teria sido uma viagem bem mais pobre se ela não tivesse cruzado o meu destino. Mesmo que tenha doído tanto, as alegrias também foram muitas, e as lições, e as saudades... Não me arrependo dos caminhos em que houve dor pois sei que não existem caminhos sem dor. Abençôo as rosas que têm espinhos. Não amaldiçôo que neste mundo a alegria e a tristeza estejam sempre misturadas, como se estivessem em guerra civil, como se numa trepada cósmica entre deus e o capeta jorrassem para todos os lados as pétalas e as facas, os insultos e as carícias, as chamas e as nuvens... A vida nos judia e nos acaricia, nos enfaqueia e nos presenteia, nos ama e nos odeia - e é besteira querer que ela seja menos insana. Aceito a condição.
Ela, vista através da névoa da minha fantasia, foi um daqueles encantamentos que, quando acontecem, reduzem todos os anteriores à insignificância. Apaixonado por ela, eu me convenci de que jamais tinha conhecido uma garota mais fascinante, com uma mente mais brilhante, um coração mais ardente, uma personalidade mais magnética. Em linguagem mais pé-no-chão: eu nunca tinha pagado tanto pau pra ninguém. E todas as meninas por quem eu já tinha me apaixonado foram se encolhendo, ficando miudinhas, até que me parecesem pouco - ou nada - perto dela. Alumbramento.
Eu a procurei como fazem aqueles que embarcam numa montanha-russa. Pela superação da vertigem. Por atração pelos abismos. Por paixão pela adrenalina. Ela tinha um excitante sabor de perigo e eu começava a me revoltar contra o conforto em que vivia, detrás dos muros, dos escudos, dos medos. Nascia, incandescente, um desejo ardente de aventura, de entrega, de insanidade. Tive fome de roubar dela um pouco da loucura que me faltava. Estava cansado de viver protegidinho dentro do cofre e já tinha passado o tempo dos martelos marcharem para massacrar minha concha - e enfrentar o mundo vasto mundo que existia, me diziam, fora do meu coração.
Porque minha vidinha mais se parecia com um passeio de pedalinho. Com colete salva-vidas. Num lago que dá pé. E ela apareceu à minha frente como uma altíssima plataforma de bungee-jump. Com vagar, hesitante, passo a passo, como num thriller hollywoodiano, avancei até a borda. Me taquei. Sem nem saber se a corda aguentava o peso. Para ter o orgulho de ter ousado.
Dela eu adorava a pressa, a impaciência, a urgência com que ela queimava. Pois a vida não era para ser deixada para depois. Daqui a pouco já era cu-docismo. Amanhã não existia até ser hoje. Meu silêncio prudente se fascinava com a tagarelice sem rédeas dela. Minha contenção se admirava frente ao ímpeto de jorrar alma afora dela. Eu, que tinha o riso difícil e a mania ancestral de ser triste, fiquei besta de ver como, para ela, a alegria podia ser tão fácil e em quê quantidade espantosamente abundante estouravam os risos e as gargalhadas. Ela queria o mundo e queria agora. Foi a primeira criatura que conheci que era puro carpe diem encarnado. Sabedoria punk em doses cavalares.
E foi assim que ela renovou meu sangue ao injetar em mim novos sonhos, substituindo os velhos e mofados: o sonho de ser mais como ela. O sonho de ser amado por ela. Que alegria seria! A vida começaria a ser o que sempre quis que fosse: uma festa louca, sem amanhã, cheia de som e fúria, polvilhada de risos, agora e sempre. Jatos de luz sempre cortando a noite. Feito o pacto, eu viveria, dali em diante, sempre ébrio: de droga, de poesia, de amor, de vida. Ébrio dela.
Everyday a rainbow.
Nice dream.
* * * * *
II. SHE
"She never mentions the word addiction
In certain companies.
She'll tell you she's an orphan
After you meet her family."
THE BLACK CROWES
Imagino que ela tenha sido o tipo de criança ultra-curiosa, com um talento para se espantar com tudo: do tipo que desmonta o relógio para ver do que é feito o tempo ou que rasga as bonecas com uma faca de cozinha para ver como elas são por dentro – se têm órgãos como os nossos, se o sangue corre pelas veias, se dá pra arrancar delas um berro... Cresceu no meio do nada, numa cidadezinha interiorana onde o tédio imperava e o mundo moderno, com seus shopping centers, hipermercados, cinemas digitais, parques de diversões e neuroses de massa ainda não tinha chegado. Desde o início em guerra contra o bode, ela se aliou ao livros, às histórias em quadrinho, aos gizes de cera e canetas hidrocor, a uma fantasia e uma imaginação espetaculares. Desde pivete, cansou de ouvir da mãe: “Menina, pára de fazer arte!” Profecia certeira: ela tinha nascido para ser arteira.
As empregadinhas inescrupulosas misturavam uísque na mamadeira dela, para ver se a diabinha sossegava o facho, e depois se gabavam para a mãe da eficácia incrível de suas canções de ninar... Talvez desse passado distante venha a predileção por paraísos artificiais conquistados por vias químicas. Megalomaníaca ao extremo, dava a impressão de se achar muito mais sensacional do que o resto do mundo, esse chiqueiro de caretice, repressão, gente chata e estupidez-sempre-na-moda. “Será que Deus patenteou a idéia de hospício redondo?”, dizia ela direto, parafraseando a pequena Mafalda.
Era o tipo de pessoa que, se não tomar cuidado, acaba virando mais um desses loucos de manicômio que pensa que é Napoleão chefiando um imenso exército, de um império colossal... Ou então o tipo de pessoa que, pegando a rota certa, vira gênio-louco: Van Gogh, Artaud, Nietzsche, gente desse naipe.
Ela era daquelas que podia olhar para baixo para o resto do mundo, sem parecer arrogante, certa de que as pessoas todas estão pelo menos umas 10 doses de uísque atrasadas. Não tinha pudor algum em dizer pra todo mundo ouvir “Eu me acho foda!” E relatava com gosto todas as suas façanhas, as reais e as inventadas. Eu me espantava com todas, mesmo as de mentira. Com 20, dizia já ter lido Em Busca do Tempo Perdido inteirinho, quase todo o Dostoiévski, quase todo o Tolstói, quase todo o Machado. Tinha predileção pelos russos. Em duas décadas parecia ter acumulado dentro de um crânio humano a quantidade de informação e cultura que você não imaginaria caber dentro de Júpiter. Um espanto a quantidade de nomes de pintores, de poetas, de artistas, de bandas, de movimentos de vanguarda, de pop-stars, de instrumentos musicais, de receitas culinárias, de dicas de higiene e de saúde, de ditos espirituosos, de piadinhas sarcásticas geniais, de percepções de mundo extraordinárias e incomuns, de fervilhamento interior que conseguia viver dentro daquele cérebro caótico e privilegiado.
Ela me aparecia como um mágico ser que conseguia ter a auto-estima na estratosfera, que parecia curtir a si mesma com um absoluto tesão – as próprias idéias, o som da própria voz, os eventos de sua incrível biografia, tudo. Um narcisismo perfeito em eterno estado de delícia consigo mesmo. E quase sempre ela me soterrava debaixo de tanta extroversão e auto-adoração. Falando dela mesma pelos cotovelos, monopolizando a fala, nem notava que eu, talvez, queria também falar mais sobre mim.
Ela me fazia sentir como se eu ainda nem tivesse nascido.
* * * * *
III. TRECHOS DE CARTAS QUE NUNCA ENVIAREI
"Love has a nasty habit of disappearing overnight."
THE BEATLES
Ah, amoreco, como pode? O cenário não era exatamente romântico – nada de um lindo pôr-do-sol parisiense como pano de fundo e nada de gôndolas por Veneza ou passeios a pé por Viena ou beijos iluminados pelo neón noturno de uma Tóquio futurista. Não tínhamos nascido para estrelar um romance hollywoodiano. No mais improvável dos ambientes – uma república estudantil porra-louca, imunda, junkie, que parecia atrair uma galerinha do mal e onde dúzias de histórias trash aconteceram... - foi aí que calhou de acontecer o fenômeno: o encantamento.
Nossas cabeças quase coladas, nossos lábios tão tímidos, que tanto tempo levaram para cometer a ousadia tão desejada de se colarem... eu quase desmaiado de porre, você bebaça e tão diferente de você... doce, meiga, que beijava em silêncio, que não sentia necessidade de palavras, que se entregava a outra linguagem, tão superior. Poucas vezes o silêncio esteve tão repleto de delícias. Tudo envolto numa névoa: de sono, de álcool, de paixão, de surpresa, de confusão, de arrebatamento, de medo. E eu, me tornando tão diferente de mim, ousei me perder (ou me encontrar?) em ti. Sem mapas e sem certezas... Pois só me acho em ti.
E da sua boca saíram doces promessas de que o Sol estava nascendo e que teríamos um longo e lindo dia pela frente. Aquilo... aquilo parecia uma aurora, o começo da primavera, a entrada numa era dourada, e meu coração se enchia de cor com o sonho de sair de vez do outono. E você me disse aquilo que eu nem tinha coragem de fazer os ouvidos da alma escutarem em sonho: "Tira minha roupa a hora que você quiser!" Coisas que não se diz! Quando não se pretende cumprir... A promise sworn and broken.
E enquanto duraram nossos beijos, nossos abraços, nossas carícias, nossas palavras murmuradas ao pé do ouvido, o mundo foi lindo e a felicidade estava começando. Só começando! Que ingenuidade a minha, pensar que aquilo era um mero prólogo, uma porta de entrada, uma ante-sala de salão de festas, e que depois é que a coisa real ia começar... Já era ela, a felicidade mesma, quem tinha pousado ali, quem estava lá, presente, onde eu via somente sua promessa. Eu estava sendo feliz enquanto pensava que a felicidade, que já tinha chegado, chegaria logo...
E eu pensava que você me amava. Se estava me beijando daquele jeito, me acarinhando daquele jeito, sendo uma fruta tão doce, entregue ao meu paladar para ser inteiramente lambida e devorada, era, é claro, pois me amava, de corpo e alma, e havia suficiente confiança para uma entrega completa, e afeto suficiente para que nós alimentássemos nossos corações, mutuamente, por tanto tempo...
Eu me convenci de que você me amava.
As coisas imbecis que a gente pensa.
Tinha imaginado que o grande amor, que eu sempre tinha em vão desejado e buscado, tinha enfim começado. E que eu agora eu que entrava numa longa e doce rodovia, que dali em diante eu teria a maior delícia em percorrer. Smooth sailing all the way. Não faltariam ocasiões para mil beijos e carícias, até cansar, que povoariam a minha vida como mil estrelas nascendo num repente no meu céu escuro. Acabaram sendo apenas relâmpagos. Antes escuridão, agora escuridão. No intervalo, o rápido relâmpago esplêndido. De fato, como cantou o poeta,
"o amor é uma agonia,
vem de noite e vai de dia...
É uma alegria,
e, de repente,
uma vontade de chorar..."
Foi assim que aprendi: deve-se sempre beijar como se fosse o último beijo antes da morte. Como se ela estivesse prestes a entrar no barco, indo embora pra sempre - é a última chance! a última chamada! a última porta aberta! São lábios que velejarão para longe numa jornada só de ida! Se eu soubesse que ela não voltaria mais, como a teria beijado diferente! Com que ardor, que fome, que fogo! E aí então você teria voltado.
Até hoje entendo muito mal o que foi que se quebrou entre nós para que você se afastasse. Pois eu queria que você ficasse – que viesse morar de vez na minha vida. Que armasse acampamento vitalício na minha praia. Eu queria um pacto. Eu queria um amor longo, dedicado, terapêutico, construído pouco a pouco. Com você eu vivi alguns dos dias mais felizes da minha vida – e queria mais. E até hoje ecoa, sempre sem resposta, a pergunta: “por que não eu? Por que não mais? Por que só relâmpagos?”
O pouco que sobrou:
”...o canto de um prazer suavemente desfeito
de que o eco há de, eterno, perdurar,
como vive na concha a saudade do mar.”
(EDGAR ALLAN POE)
* * * * *
IV. THE FALL
"Besteira qualquer... nem choro mais...
só levo a saudade, morena...
é tudo que vale a pena."
LOS HERMANOS
Eu prometi a mim mesmo que não cairia no mesmo erro de sempre, que não me deixaria prender na mesma teia, na armadilha familiar, na gosma já tão conhecida. Não ia me deixar cair na cadeira de rodas de uma melancolia passiva e apática. Não ia gastar mais tempo que o necessário choramingando pelos cantos: quis chorar às torrentes, logo de uma vez, numa daquelas tempestades que, ao acabar, deixa o céu completamente desnublado. Quis, sem demora, livrar de vez meu organismo das toxinas que – comprovado cientificamente – são expelidas através das utilíssimas lágrimas de amor.
Quando fui derrubado, caí já decidido a me reerguer logo. Não ia ficar no chão, fazendo teatro, bancando a vítima, como faz um jogador de futebol que, após tomar uma rasteira, se deleita dando à platéia o espetáculo de sua dor. Não quis deixar as feridas abertas, com o sangue fluindo para fora feito um rio de acusações (veja só o que você fez comigo!). Busquei a rápida cicatrização, os remédios de eficácia imediata, os recosturamentos que não tardam. Mal vi o corte e corri ao pronto socorro pra dar ponto.
Prometi a mim mesmo que não abaixaria a cabeça, que não me deixaria amargurar, que não ia sentir nada como uma ofensa pessoal. As coisas são como são. Garanti a mim mesmo que não cairia na estupidez da espera paralítica, comendo o sonho de uma improvável reversão da fortuna. Ela tinha feito a escolha dela, e a escolha dela não era eu. Pois bem, merda acontece. Seguir em frente.
Quando bati o nariz no muro que bloqueava a estrada por onde eu ia, tentei me convencer que não deveria apoiar nele as costas do desânimo para chorar por ter viajado em vão. Pois sabia que não tinha viajado em vão. Foi só que a rua mostrou-se sem saída, fato que eu não sabia quando nela entrei. Nunca sabemos. É o que faz o delicioso suspense da vida, onde estrada alguma possui, em seu início, uma placa comunicando sobre o que encontraremos em seu fim. Mas uma rua sem saída pode ser bela, e na travessia por ela pode-se colher e comer saborosos frutos. E também isto: quando volta-se, volta-se outro.
Quando um horizonte se fechou, finquei minhas unhas no céu e nele reabri à força as clareiras que precisava.
Cansei do choro estéril que molha o solo deixando-o árido. Só quero saber de lágrimas que frutifiquem. Planejei uma revolta mais indignada, uma busca mais ardente, um insulto mais poético – se a vida não quer me dar seus doces de bom grado, eu vou lá tomar à força! Arrombarei o baú do tesouro! Assaltarei a doceria! Irei aos corações como quem assalta um banco!
Nada foi mais consolador do que esse pensamento tão banal: o mundo tá cheio de gente. E com certeza há outros corações capazes de fabricar o mel que ela me recusou. Que são árvores repletas de frutos maduros que eu só preciso estender a mão para colher. A fábrica de afetos dela – que aliás esteve tanto tempo em greve, de férias, parada... - não tem o monopólio da produção das acariciantes chamas astrais.
Nunca senti ímpetos tão selvagens de sair lascando beijos na boca de desconhecidas. Hoje acho gostar tão simples...
Sim, ela fez a escolha dela, e o eleito não fui eu. Mas ainda estou vivo, meu coração ainda bate, ainda que mutilado, e o mundo ainda existe. Não posso me fechar na mágoa viva dos rejeitados. Vou chorar até a desidratação, pois não deixa de doer pra diabo, mas depois meus pés vão correr de volta à estrada, à luta, à busca. Vou me candidatar a rei em outras províncias... Deserto logo de onde não me hospedam, corro a procurar quem me queira... Há frutas em outros pomares, verdor em outros campos, frescor em outras águas, calor em outros sóis, abraços em outros braços, beijos em outros lábios, felicidade em outras ligas...
E sei que vou conseguir. E que no final me direi, cantando: “O quanto levou, foi pr'eu merecer”.
* * * * *
O amor é uma tempestade de pétalas e facas, mas... quer saber? Dispenso o guarda-chuva.