quinta-feira, 18 de outubro de 2007

:: my monday at the movies ::



"Sa vie a été si triste qu'elle est
presque trop belle pour être vraie."

("A vida dela foi tão triste que é
quase bela demais para ser verdade.")
SACHA GUITRY, na epígrafe da biografia de Simone Beartaut


Jornalista: você tem medo da morte?
Edith piaf: menos que da solidão.



PIAF - UM HINO AO AMOR
[La Môme / La Vie En Rose, de Olivier Hassan, França, 2007, 140 min., com Marion Cotillard e Gerard Depardieu, visto no Espaço Unibanco/SP, dia 08 do 10]. Fazia tempo que eu não chorava vendo um filme! Já crescia em mim o medo de que a secura pudesse estar dominando o meu coração (ui!) ou de que a minha sensibilidade pudesse ter de algum modo congelado - mas aconteceu, surpreendentemente, com este primoroso filme francês que acaba de sair do forno. Um dos melhores do ano, de longe, e futuro parâmetro pra todas as cine-biografias sobre gênios da música a serem feitos - pois não cai na idealização exagerada do artista retratado, nem numa maçante narrativa linear de fatos de vida sucessivos. Piaf traz originalidade, frescor e poesia selvagem a um tipo de filme que bem merecia essa brisa de ar fresco...

Pois biografias de gênios da música é um gênero muito em voga ultimamente, aliás, que já nos deu retratos cinematográficos de Johnny Cash (Johnny and June, de James Mangold), Beethoven (O Segredo de Beethoven, de Agnieska Holland), Ray Charles (Ray, de Taylor Hackford), Joe Strummer (The Future Is Unwritten, do Julien Temple), Ian Curtis (Touching From a Distance), Kurt Cobain (Last Days, do Gus Van Sant) e, lá nos anos 90, de Charlie Parker (Bird, de Clint Eastwood), Jim Morrison (The Doors, do Oliver Stone) e Mozart (Amadeus, do Milos Forman). Saí do cinema tão extasiado que digo: esse Piaf entre direto no meu pódio de melhores bio-pics sobre personalidades musicais da história -
que filmaço!

E olha que eu nem sou (opa: nem era!) lá muito fã de Edith Piaf e fui ao filme só querendo me nutrir de detalhes biográficos sobre uma das maiores cantoras francesas. Era um filme a ser assistido só pelo bem da minha "cultura geral"! Até tenho um disco dela, a coleta Voice Of The Sparrow, que ouvi bem "por cima" e achei meio esquisitão, excêntrico, quase irritante, adquirido mais pela vontade de estudar francês do que por qualquer outro motivo - e confesso que preferia a Carla Bruni ou a Françoise Hardy nesse quesito.

Eu nunca chegaria ao ponto de dizer que Edith Piaf era dotada de uma voz cheia de "beleza" ou "encanto", nem ferrando. Aquela mulher cantando me dava a impressão de cordas vocais prestes a se rasgarem, de um canto que se erguia não dos pulmões, mas das vísceras retorcidas de uma anãzinha... O som que faria a voz de uma monstrinha, uma bruxinha, uma gnoma... Intenso, insano, exagerado, dramático, mas não exatamente "bonito"! Eu não achava difícil escalar Edith Piaf para um filme de terror em que ela, voando montada numa vassoura em dia de Halloween, saísse cantando aquelas canções sobre o submundo pornô de Paris para assustar as criancinhas... (Aliás: o Jeff Buckley tem uma imitação-sacana genial da Piaf num dos discos ao vivo dele - e o Buckley imitando uma bruxinha é um espetáculo bacana!).

Edith Piaf, a julgar por esse detalhado retrato fragmentário feito pelo excelente filme de Olivier Hassan, teve uma vida desoladora, trágica, "punk" - o que só faz seu triunfo ser mais emocionante. "Sua vida foi tão triste que é quase bela demais para ser verdade...", diz a primeira frase da mais respeitada biografia de Piaf já escrita (cortesia da biblioteca da FFLCH!). Que aquela menininha suja, maltrapilha, abandonada, rejeitada, deformada e duramente espancada pela vida fosse se tornar uma das maiores cantoras da história da França (da França!) era algo de muito improvável. E não é lindo de ver triunfar justamente aqueles que todos consideraram sempre como nada? Não consigo não me comover e me empolgar ao ver contada a história de alguém que sempre foi pisado, cuspido e escarrado, tratado como puro lixo, dando a famosa "volta por cima" e triunfando gloriosamente - provando seu valor para um mundo que sempre lhe disse: "você não vale nada!"

Cacos para um vitral: a mãe era quase mendiga e praticamente a abandonou (só a procurava para pedir esmolas); o pai, mísero contorcionista de circo, sempre com o pé na estrada, não teve tempo para criá-la; a pequena Edith é largada num puteiro aos cuidados de Titine, "mãe adotiva" que se divide entre os cuidados à criança e a meia-dúzia homens diários com quem se deita; na infância, passa alguns meses cega sem saber se jamais recuperará a visão; canta nas ruas suas canções do submundo, toda maltrapilha e mau-vista pelos gendarmes, em busca de alguns míseros trocados; descoberta por um caça-talentos (vivido por Gerard Depardieu), é depois injustamente acusada de cumplicidade em seu assassinato; quebra muitas costelas e ossos num acidente de carro; quando por fim se apaixona e começa, pela primeira vez numa existência tão cinza e tão negra, a ver la vie en rose, sua paixão é por um brutamontes boxeador e inculto, já casado e com duas filhas, e que, como se não bastasse, morre num acidente de avião quando voava para encontrar-se com a carentíssima Edith, que garantia que sem ele não mais viveria; aos 44 anos de idade parece uma anciã recurvada, cansada e prestes a desmaiar nos primeiros passos. Que uma criatura aparentemente tão frágil conseguisse retirar de seus pulmões aqueles inacreditáveis vulcões musicais é um prodígio indizível.

Marion Cottillard, estão dizendo por aí, não interpretou Edith Piaf; ela se tornou Edith Piaf. No cartaz do filme, um crítico de cinema de respeito dá o veredito: "o mais profundo mergulho de uma artista na alma de uma outra artista que já vi numa tela de cinema". Não é exagero. Marion Cottillard mergulhou nessa personagem com uma entrega tamanha que quase se perdeu dentro dela, se confundiu com ela, roubou dela a imagem das multidões. De agora em diante, milhões de pessoas, quando ouvirem o nome Edith Piaf, ao invés de se lembrarem da original, vão ver surgir na consciência as dúzias de caras, atitudes, trejeitos, expressões e falas de Marion Cottilard. Do mesmo jeito que Audrey Tautou será sempre lembrada por Amélie Poulain, Marion Cottillard sempre será lembrada por Edith Piaf. Marion já está sendo cotada para o Oscar de Melhor Atriz por essa impressionante personificação de Edith Piaf, mesmo que todos saibam o quanto é raro alguma atriz que não é de língua inglesa vencer o prêmio - Fernanda Montenegro, que ficou de mãos abanando quando foi indicada por Central do Brasil, que o diga. Não vai faltar quem diga que a Academia adora premiar atrizes lindíssimas - e é o caso de Marion... - que aceitam o martírio de se enfeiarem para encarnar seus personagens (e todos sabem o quanto Piaf tinha reputação de ser horrorosa...).

Que cena acabou me arrancando lágrimas? A última, claro, quando soa a pleno poder "Je Ne regrette Rien". E outra, também, que achei ainda mais impressionante - quando a música se fez silêncio e o cineasta conseguiu comunicar todo o poder daquela artista fazendo que se calasse justamente o seu maior encanto - a voz... Sim, talvez tenha sido o fato de eu estar ali, nas primeiras fileiras do Espaço Unibanco, quase colado à tela, sozinho numa noite de segunda-feira, sem nada que me distraísse daquele desfile de luzes e cores e sons que passava frente aos meus olhos, tomando quase todo o meu campo visual. (Ando preferindo as primeiras fileiras: me ajuda a esquecer que estou num cinema; me ajuda a "cair dentro do filme"). Ou talvez a leve sonolência que eu sentia nesta sessão tardia das dez da noite, eu que tinha acordado cedo, achando que a lentidão da minha mente até ajudava que eu "mergulhasse" dentro do filme. Caí dentro dele de um modo como fazia tempo que não acontecia - caí dentro e me esqueci de mim. Aconteceu justamente quando, ao invés de eu ter meus ouvidos bombardeados pela voz de Edith Piaf, a cantoria tornou-se muda e o retrato foi feito só com imagens - aquelas mãos antes tão tímidas que ganham coragem e alçam vôo, aquele serzinho murcho e temeroso que enfim desabrocha, aquela larva se transformando em borboleta, tudo envolto numa iluminação absurdamente linda... Uma das cenas mais magníficas do cinema em 2007 - coroando um filme bonito pra diabo.