quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

:: filmaço! ::


SOMBRAS DE GOYA
(GOYA'S GHOSTS)

de Milos Forman


“Estima-se que entre os séculos 14 e 17, de dois a cinco milhões de pessoas foram torturadas até a morte, enforcadas ou queimadas vivas pela igreja. Se partirmos do pressuposto de que a Inquisição durou 300 anos e de que 3 milhões de pessoas sucumbiram sacrificadas, teremos uma média de 10.000 vítimas por ano. Em algumas aldeias a população foi literalmente dizimada.”

Uma formidável cinebiografia de um artista célebre já era de se esperar das Mãos de Mestre do Milos Forman. E o cara é mesmo De Confiança! Já tinha nos dado filmetos muito apreciáveis sobre personalidades tão díspares quanto Mozart (em Amadeus), o comediante Andy Kaufman (em Man On The Moon), o pornógrafo Larry Flynt (em O Povo Contra Larry Flynt...) e um bando de hippies cabeludos e cantarolantes (em Hair), mas esse esplêndido novo filme do veterano diretor é muito mais que uma mera Biografia de um Artista de Grandeza. Goya, o grande pintor espanhol, que em sua época era o predileto de Sua Majestade e de altos membros do clero, é quase um coadjuvante desse monumental e poderoso retrato dos tempos históricos no fim do século 18 e começo do 19.

Pra começo de conversa, o filme é um dos mais perfeitos retratos dos descalabros obscenos cometidos pela Igreja Católica durante a Inquisição. Os acontecimentos do filme se desenrolam justamente no período mais linha-dura de perseguição aos hereges e pagãos na Espanha. Todo cidadão era minuciosamente investigado pelos Seríssimos Tiras de Batina em busca de qualquer mínimo sinal de desvio da doutrina cristã oficial. Era preciso vasculhar os livros para ver se ninguém estava se contaminando com a leitura de algum veneno terrível e pernicioso como... Voltaire. Se alguém fosse visto mijando em algum banheiro público e escondendo o próprio pênis, que ficassem de olho: provavelmente era um cincunciso – e prendam já o judeuzinho! Se alguém fosse visto dizendo “templo” ao invés de “igreja”, merecia também ir em cana... vai que é um protestante! Era uma época em que você podia ser preso e levado para um singelo “interrogatório” (onde você era dependurado pelos braços até que suas juntas se rasgassem e mantido suspenso como um pedaço de carne no açougue) se, por exemplo, recusasse uma porçãozinha de porco.

“A Inquisição foi um grande negócio, pois os parentes das vítimas eram obrigados a pagar as despesas do seu julgamento, sua tortura e execução. É relevante o fato de que quase todas as vítimas pertenciam ao sexo feminino, enquanto os juízes, padres, carrascos, bispos e papas eram todos homens. As “bruxas” eram mulheres de todas as idades, às vezes até meninas. Comissões de investigações especiais anotavam as acusações dos cidadãos e levavam as caixas postais às portas das igrejas; qualquer pessoa que quisesse se livrar de um vizinho ou rival odiado precisava apenas escrever seu nome com a devida acusação num pedaço de papel e colocá-lo na caixa postal. Pessoas suspeitas da mais leve falta eram arrastadas à câmara de tortura e obrigadas a confessar sua aliança com o Demônio. Quem chegava à câmara de tortura podia contar que só sairia de lá aleijado ou morto.”



Inês, encarnada esplendidamente pela cada vez mais talentosa Natalie Portman (que já está fazendo por merecer o primeiro Oscar de sua carreira), é uma linda garota da classe alta que serve como modelo para as pinturas de Goya. Em um dia qualquer, numa taverna, é vista recusando-se a comer porco. Os gênios da batina, amestrados para as suspeitas mais absurdas, concluem: ora ora, essa menina está com suspeitíssimos Hábitos Judeus! Que perigo! Ela é chamada para dar as devidas explicações para as autoridades da Igreja e diz o óbvio: “mas diacho, eu não como porco porque não gosto do sabor!” Os sábios senhores manda-chuvas da Igreja Católica, claro, sedentos pelo sangue das bruxas, querendo aumentar o número de incréus queimados nas fogueiras, como maneira de dar um bom exemplo para o público, tornando o mundo todo cada vez mais Temente a Deus, obviamente não acreditam. A menina certamente é uma Agente Secreta do Judaísmo! Ora essa, não comer porco! A pobre moça, jovem, linda e radiante, é então torturada da maneira mais sádica e grotesca possível, levada a confessar seu “crime” e finalmente mantida presa por 15 anos na escuridão das catacumbas, nua e acorrentada, lentamente caindo na loucura, pois assim quiseram os Honráveis Representantes de Deus na Terra. Que tempos aqueles!

“Quando uma feiticeira confessava o seu delito, era evidentemente culpada. Quando se calava, era o Diabo que lhe conferia forças para resistir, e sua boca era violentamente dilacerada com certos instrumentos. Se gritasse, considerava-se isso como uma manobra para enganar. Se ela não gritasse, isso era considerado uma prova de sua obstinação. Se ela sucumbisse sob tortura, isso significava que o Demônio fora expulso. Se ela se afogasse na prova da água, era inocente, porém se não se afogasse era culpada, pois a água pura não a havia aceito. Todos esses detalhes constavam das instruções oficiais da Igreja no Malleus maleficarum, o “Martelo das Bruxas”. Se uma bruxa confessava sua culpa, era misericordiosamente liberada de suas penas por estrangulamento ou por decapitação. De outro modo, continuava a ser submetida a ferros em brasa, seus seios eram abertos com instrumentos especiais tipo “aranhas”, suas mãos eram cortadas até que, finalmente, elas eram queimadas vivas nas fogueiras. Procedia-se à tortura em si em várias etapas, desde o uso de parafusos para os polegares até a distensão pela roda do corpo inteiro. Alguns dos pecadores eram lançados de construções elevadas até que a maioria dos ossos se destroçassem, ou então esses eram quebrados um a um. As feiticeiras tinham que montar no “burro espanhol” ou na “cadeira de virgem”, e depois eram regadas com enxofre escaldante ou com óleo fervente."

No filme, Goya (interpretado pelo ótimo Stellan Skarsgård, que conhecemos de Dogville) não é exatamente o Heróico Salvador da Donzela Injustamente Condenada, mas sim o Homem Poderoso Que é Chamado a Intervir Pela Família da Supliciada. Pois Goya era um Cara Com Contatos. Goya tinha Influência Lá No Alto. Goya estava sempre nas cortes, pintando retratos da Rainha, podendo falar diretamente com o Rei, amigo de gente do primeiro escalão no Clero. E ele conhecia Inês, apenas uma das milhares de mulheres e moças que estavam sendo torturadas e aprisionadas e obrigadas a confessar as coisas mais absurdas pelo Sadismo Irrefreável da Igreja Católica.

“Os servos torturadores faziam anotações sobre os seus progressos a cada nova vítima. Um protocolo do ano 1672 dizia o seguinte: “...utilização de botas espanholas. Primeiro o parafuso da direita ajustado, depois o esquerdo. Ela grita: ‘Querido Jesus, ajuda-me, nada tenho a confessar mesmo se me torturarem até a morte’. Os parafusos continuam a ser apertados. Ela diz que não é uma bruxa. O parafuso da direita é torcido. Ela grita bem alto: ‘Querida mãe, vem e me salva, ó Jesus, ajuda-me’. Assim continua a tortura, e os parafusos são torcidos mais dezesseis vezes, até que seu corpo fica rijo. Então a sua boca é dilacerada para que possa confessar a sua culpa. Porém ela só urra como um cachorro”. Quando amigos ou parentes das vítimas escreviam aos juízes para declarar a inocência dos réus, tornavam-se suspeitos. As bruxas eram forçadas a fazer as mais estranhas confissões durante os processos; diziam, por exemplo, ter comido crianças ou cadáveres, voado em vassouras ou “tirado leite do cabo de uma faca”. Confessavam ainda ter matado pessoas com seu mau-olhado ou ter tido relações sexuais com o Demônio. ”

Uma das cenas-chave do filme, absolutamente genial, mostra a família de Inês em uma calorosa discussão com o representante da Igreja (Javier Bardem, aquele do Mar Adentro...) que vem trazer as más notícias: “olha, meus bons senhores, sua filhinha confessou “sob interrogatório” seus Hábitos Judaizantes e agora não vai ser fácil livrá-la das garras ávidas por sangue da Igreja!” E aí o ricão, o pai de Inês, numa cena sou-durão-pra-cacete que não fica longe dos Melhores Momentos de Macheza de John Wayne ou Clint Eastwood nos velhos westerns, pega o padreco, que obviamente nunca havia sido vítima de tortura, e faz com que ele tenha um... digamos... Gostinho da Experiência.

Fica provado o que todo mundo sabe: que, sob tortura, qualquer ser humano acaba por confessar qualquer absurdo que lhe mandem - pois o importante é que a porra da dor PARE. Não somos tão amantes da verdade assim para nos sacrificarmos a esse ponto por elas. O padreco assina então uma confissão que diz mais ou menos assim: “na verdade eu sou filho bastardo de um macaco com um chimpanzé e entrei para o Santo Ofício só pra bagunçar o coreto...”. É um momento bem cômico do filme, gostoso de ver, A Queda Da Autoridade Arrogante Que Advogava a Favor da Bárbarie, mas ao mesmo tempo é algo que gera um Documento Sério e Importante. Ter a assinatura de um padre numa confissão de “macacalidade” não é pouca coisa! Pois ali está a Prova Concreta de que os Métodos de Interrogatório da Igreja obviamente não são assim tão válidos e que as confissões arrancadas sob tortura obviamente não são dignas de crédito. E você, não confessaria até ter matado sua vovózinha a machadadas se a Igreja Maluca te torturasse miseravelmente?


(Outro detalhe histórico interessante é a Preferência que a Igreja tinha por torturar, aprisionar e queimar vivas as MULHERES muito mais que os Homens. O Chris fala coisas legais sobre isso também, ó: “O deus do Velho Testamento não precisava de nenhuma ajuda feminina para gerar filhos. Ele criou o primeiro homem de um simples pedaço de barro. Somente mais tarde, veio-lhe a idéia de criar também uma mulher, e o fez a partir da costela do homem. Portanto, a mulher é secundária e pode ser reproduzida de uma parte do homem. Seria quase impossível conceber uma história da criação que vá mais ao encontro da vaidade e da presunção masculinas. Todas as religiões monoteístas paternalistas (a cristã, a maometana e a judaica) desde as suas bases são distorcidas a favor do homem e da mentalidade masculina. Isso em parte se explica pelo fato de que todos se originaram de tribos nômades, que sobreviviam em regiões desertas e inóspitas. Nesse ambiente, as virtudes masculinas eram com frequência mais importantes para a sobrevivência do que as femininas.”)

A Igreja, é claro, com milênios de dogmatismo cego e intolerância absoluta nos ombros, obviamente não iria admitir tão fácil assim a ineficácia ou a imoralidade de seus “Santos Métodos de Obtenção de Informação” (diria o Simão: “tucanaram a tortura!”). Ao invés de admitir que as pobres crianças martirizadas estavam apodrecendo nas catacumbas injustamente por causa de confissões absolutamente inválidas e arrancadas à força, eles lançam o anátema sobre o padreco herege que ousou confessar que era um macaco. Como ele ousa?!? É triste mas é verdade: nesta Obra-de-Arte de tio Milos Forman não há nenhuma concessão às Soluções Emocionalmente Agradáveis e a Pobre Moça Injustiçada não é salva do Tenebroso Vilão Diabólico, a Igreja Católica. 15 anos de cadeia para a moça e, depois, é claro, a Loucura Perpétua. Imaginem que a Inquisição durou 3 séculos, que matou umas 3 milhões de pessoas e que estamos falando, olhem só, de uma Sobrevivente! Imaginem a Dimensão Inimaginável e Grotesca do Horror. Se houvesse um combate entre a Inquisição e o Holocausto pelo Prêmio de Vergonha Suprema da Humanidade, eu não saberia em quê votar.

Goya, sozinho, seria incapaz de deter o avanço grotesco do Moedor de Carne Humana da Inquisição, claro, e ele nem era assim tão rebelado contra o treco – até porque podia acabar na grelha também! Quem acaba servindo de Aparente Salvação é ele, o bom e velho Napoleão, que faz seus exércitos marcharem sobre Madri, como mais um pit-stop na Campanha Para a Disseminação da Boa Nova Chamada Revolução Francesa, e dá um basta no SuperPoder da Igreja, e vai lá e instala seu próprio irmão no trono espanhol, e rolam as cabeças do Velho Regime, amém! Mas claro que os exércitos napoleônicos não são descritos como os Nobres Benfeitores que vieram trazer a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade a uma nação antes afundada nas Trevas do Dogmatismo Cristão – pois o banho de sangue que é a invasão francesa não é menos terrificante do que o terror cotidiano antes perpetrado pela Igreja. Goya, por sinal, que na época da invasão napoleônica já estava surdo, serviu como uma testemunha ocular para todos os horrores perpetrados pelos invasores, tendo criado algumas de suas maiores obras-primas retratando o Terror daqueles Tempos Conturbados.

Se o filme é bom? Eu achei excelente, impecável, maravilhoso (juro que não entendo os críticos que andam malhando com tanta severidade esse filmaço – 29% no Tomates Podres é Heresia!). Sombras de Goya é ao mesmo tempo comovente e chocante; ao mesmo tempo uma Aula de História (e com quê Retrato Realista do Banho de Sangue!) e uma Peça Trágica Quase Shakesperiana; um filme que comove, que revolta, que nos faz sentir intensamente coisas como Indignação, Compaixão e Deslumbramento... Um dos melhores filmes do Milos Forman (um cara que eu admiro e que é também o dono do crássico Um Estranho No Ninho, olhem só!), uma das melhores interpretações da Natalie Portman (Oscar nela!) e um dos grandes dramas históricos da Década. O tipo de filme que até o Victor Hugo adoraria ver: personagens notáveis e marcantes envolvidos numa Enorme Trama Histórica Que os Ultrapassa e Os Arrasta. Colossal!

(9.2 / 10.0)

(p.s.: entre aspas e com cor diferenciada são citações de Christopher Markert, dum livro que eu li faz tempo - achei bom pôr aqui pra Fornecer Uma Contextualização pro filme...)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

:: no more blue tomorrows! ::



-- BRAINSTORMING EM ARTERÍSTICOS PÓS-INLAND EMPIRE --


* Depois de ser bombardeado por 3 horas com essa procissão de doidices que o David Lynch amontoou em Inland Empire - Império dos Sonhos, não sei quê diagnóstico fazer: 1) Tio Lynch não passa d'um doido varrido e sem cura que precisa ser urgentemente posto no manicômio? 2) Ou é um dos gênios mais subversivos e peculiares da sétima arte, se apropriando e levando pra telona as maiores conquistas do surrealismo e do dadaísmo, ao mesmo tempo que imprime uma marca extremamente pessoal e inimitável a tudo o que faz? 3) Ou talvez ele seja só um tiozão que têm tomado alguns drogas perigosamente amalucantes?!? 4) Talvez tudo isso ao mesmo tempo?

* Eu morro de medo do David Lynch. E olha que, sem querer me gabar, eu não tenho medo de muita coisa neste mundo, muito menos das coisas comprovadamente de mentirinha que vemos projetadas numa tela de cinema - assisto O Exorcista, O Iluminado, qualquer Brinquedo Assassino ou Hora do Pesadelo, sem o mínimo calafrio de temor e sem me deixar assustar pelos truquezinhos fáceis dos sacanas do "búúúú!". Mas o David Lynch, confesso, send shivers down my spine. O David Lynch, numas horas, me faz quase chorar pela mamãe. Que filmes apavorantes, meu! Pra mim Eraserhead, Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos e Inland Empire são verdadeiros filmes de terror, com Titio Lynch servindo como um tenebroso demônio-guia que nos lidera por uma caminhada pelos recessos mais sombrios da psique humana. Inland Empire, por exemplo, mais parece um longo exercício estilístico na arte de criar um PESADELO FILMADO. Ninguém nunca tinha feito antes um Pesadelo Hollywoodiano tão infernal. Esse filme parece uma mistura d'uma armadilha kafkiana, em que o personagem principal é a vítima indefesa de um carrosel de acontecimentos incompreensíveis que vão rolando ao seu redor, com o que eu suponho que deve ser uma bad trip de ácido tida por uma mente esquizofrênica num manicômio dos infernos. Ao som de Syd Barrett. Na Polônia. No inverno polar. Sentiram o peso? Eu não recomendo a ninguém a não ser para os suicidas mentais que assistam esse filme chapados de qualquer droga mais séria que o álcool - pode ser muito perigoso. Sem brincadeira.

* Se Mullholand Drive já era um filme esquisitíssimo e quase intragável, até mesmo para os padrões lynchianos, Inland Empire chega mostrando que Lynch meio que chutou o balde de vez e fez a obra-de-arte mais radical e difícil de sua carreira. Radical na duração, que é capaz de fritar os cérebros mais bem preparados com essas 3 horas ininterruptas de insanidades bárbaras ("tô ficando preocupado com esse pessoal do 'excessivamente'!"); radical na quantidade de sequências desconexas, oníricas e que parecem completamente sem-pé-nem-cabeça; e radical também na incompreensibilidade extrema do enredo. É o tipo de filme que te deixa se sentindo um estúpido por sair do cinema tendo que confessar que não entendeu porra nenhuma.

* (Confesso que um tempo atrás eu pensei em fazer uma listinha dos "Filmes Mais Não-Entendi-Porra-Nenhuma Da Minha Vida", onde estariam presentes, claro: "O Espelho" do Tarkovski, o "A Eternidade e um Dia" do Theo Angelopoulous e, evidentemente, o "Sweet Movie", aquele adorável montão de imagens sem o mínimo nexo. "Inland Empire" merece lugar de honra nessa lista. É abundante a quantidade de momentos twin-peakescos em que a gente, de queixo caído, se pergunta: "MAS QUE PORRA É ISSO, TIO LYNCH?!" Às vezes com espanto e maravilhamento, outras vezes quase com raiva. Aqueles seres vestidos de coelhos (referência a Lewis Carroll e toda a simbologia hoje clássica do down the rabbit hole?), presos num quarto esquisito, com aqueles estouros de risada de sitcom - "MAS QUE PORRA É ISSO, TIO LYNCH?!" Aquelas prostitutas que, do nada, começam a rebolar "Locomotion" como se fossem as Spice Girls - "MAS QUE PORRA É ISSO, TIO LYNCH?!" Aquele monte de causos tenebrosos e sangrentos sobre estupros e gente sem perna que a moça conta para aquela espécie de Psicólogo do Mau naquele Consultório Tenebroso - "MAS QUE PORRA É ISSO, TIO LYNCH?!" E aquela menina que não faz nada no filme além de ser filmada em close, com os olhos inundados d'água... adivinha? "MAS QUE PORRA É ISSO, TIO LYNCH?!")


* E a princípio o filme parecia QUASE NORMAL... A saga de uma atriz hollywoodiana que se envolve demais com a sua personagem, e se identifica demais com o enredo (provavelmente "amaldiçoado") que está interpretando, e acaba tendo problemas de identidade e de confusão psicológica. Talvez seja essa mesmo a melhor descrição racional para esse filme - que aliás é impossível de descrever em termos racionais. No Cidade dos Sonhos, sua obra-prima anterior, Lynch já havia pintado o retrato de uma mocinha que se deslumbrava em sonhos com o estrelato Hollywoodiano (e a loiraça Naomi Watts soube viver muito bem a wannabe ébria de sonhos de sucesso...), mas que depois acaba caindo num vórtex de loucura, amnésia e perda de identidade. Inland Empire pode até ser considerado uma continuação informal de Mullholand Drive, com Lynch novamente erguendo sobre o cultuado solo da cidade de Hollywood um verdadeiro pesadelo de dissolução de identidade e tilt psicológico dos mais sérios. Se Hollywood é como Lynch a retrata nesses filmes, essa cidade não é uma fábrica de sonhos, como dizem seus entusiastas, mas uma verdadeira fábrica de loucuras.

* (Tô me sentindo um péssimo crítico de cinema! Muito subjetivo! Vamos tentar com mais seriedade - um parágrafo "direitinho", ó:)

Lynch fez um experimento vanguardista extremo que vai muito mais longe do que o Oito E Meio do Fellini na exploração da idéia de um "filme dentro do filme"; que vai muito mais fundo que o Crepúsculo dos Deuses do Billy Wilder no retrato da loucura e da confusão que se apossa de uma estrela de cinema; e que vai até mais longe do que o Persona do Bergman na close-up que dá na desconstrução completa da noção de identidade da personagem principal (Laura Dern, em interpretação chocantemente heterogênea e poderosa). Enfim, Lynch radicalizou filmes que já eram radicais e acabou fazendo uma obra-de-arte que poucos vão conseguir digerir, uma viagem a que poucos irão se abandonar, mas que tem tudo para virar mais um item altamente cultuado na filmografia dessa peculiar criatura fazedora de filmes.

* Assistir David Lynch só reforça uma convicção sentimental:

Cara, como eu adoro gente louca! :)

domingo, 16 de dezembro de 2007

:: artaud e os loucos ::


O Artaud é um dos loucos mais sensatos que eu já li e o dono de um dos textos mais empolgantemente subversivos que já me caíram debaixo dos olhos. Ler o livrinho dele sobre o Van Gogh me deu uma vontade grande de virar insano (supondo que eu já não seja, ao menos um pouco...). Depois disso, cortar fora uma orelha e se suicidar fica parecendo "lógica direta" e ser "normal" acaba parecendo a coisa mais mentecapta e absurda de todas. Voilà uns 7 trechinhos trimmassa do Van Gogh, de Antonin Artaud:

[1]: “...o que é um autêntico alienado? É um homem que preferiu tornar-se louco, no sentido em que isto é socialmente entendido, a conspurcar uma certa idéia superior da honra humana. Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger, por terem recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas.Porque um alienado é também um homem que a sociedade se negou a ouvir e quis impedi-lo de dizer insuportáveis verdades.Mas, neste caso, a internação não é a única arma, e a união concertada de homens tem outros meios para vencer as vontades que ela deseja quebrar. Fora das pequenas bruxarias das feiticeiras de província, há os grandes passes de enfeitiçamentos globais dos quais toda consciência vigilante participa periodicamente.

(...) É assim que algumas raras boas vontades lúcidas que se têm debatido sobre a terra encontram-se, em determinadas horas do dia ou da noite, no fundo de certos estados de pesadelo autênticos e despertos, rodeados da formidável sucção, da formidável opressão tentacular de uma espécie de magia cívica que se verá logo aparecer exposta nos costumes.”

[2]: “... uma sociedade deteriorada inventou a psiquiatria para se defender das indagações de certas mentes superiores, cuja capacidade de adivinhar a incomodava. Gérard de Nerval não era louco, porém disso foi acusado com o propósito de lançar ao descrédito certas revelações capitais que estava prestes a fazer...”

[3] - “...é crapulosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado em definitivo das mais indiscutível loucura: a de não poder lutar contra este velho reflexo atávico da turba que torna qualquer homem de ciência, submetido à multidão, uma espécie de inimigo-nato e inato de todo gênio. (...) A psiquiatria nasceu da turba plebéia de seres que quiseram conservar o mal na fonte da doença e que, assim, extirparam de seu próprio nada uma espécie de guarda suíça para deter em seu nascedouro o impulso de rebelião reivindicador que está na origem do gênio. Há em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma idéia assustadora...”

[4] - “No fundo de seus olhos de carniceiro, que parecem depilados, Van Gogh se entregava sem interrupção a uma dessas operações de alquimia sombria, que tomam a natureza por objeto e o corpo humano por caldeirão ou cadinho.”

[5] - “Eu mesmo passei nove anos num asilo de alienados e nunca sofri da obsessão do suicídio, mas sei que, a cada conversa que tinha com um psiquiatra, de manhã, na hora da consulta, sentia vontade de me enforcar por ver que não podia estrangulá-lo.”

[6] - “...ninguém se suicida sozinho. Ninguém jamais esteve sozinho ao nascer. Ninguém tampouco esteve sozinho ao morrer. Mas, no caso do suicídio, é necessário um exército de gente má para levar o corpo a fazer o gesto contra a natureza de se privar da própria vida.”

[7] - “quanto à orelha cortada, é lógica direta,
e, repito,
quanto a um mundo que, dia e noite, e cada vez mais,
come o incomível,
para levar até o fim sua má intenção,
nada se tem a fazer, chegado a este ponto,
senão tapar-lhe a boca.”

:: dueto com sylvia... ::


Admonitions

If you dissect a bird
To diagram the tongue
You'll cut the chord
Articulating song.

If you flay a beast
To marvel at the mane
You'll wreck the rest
From which the fur began.

If you pluck out the heart
To find what makes it move,
You'll halt the clock
That syncopates our love.

SYLVIA PLATH

* * * * *

Não degoles o pássaro
querendo entender como é feita a canção.
Nem rasgue o meu peito,
pra ver as engrenagens do meu coração...
Sobre o que não é para ser entendido,
Não uses de dissecação...
Apenas abra os portões da alma,
E faça-a gritar um sim que cale o não.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007


"i only love you when i'm down
and i'm only near you when i'm gone
but one thing for you
to keep in mind:
i'm down all the time."

Adicionei um top 10 shows do ano aí embaixo, recheado de bandas nacionais porque esse ano a grana 'teve curta e eu não conferi quase nada dos gringos - nem no Tim eu fui... Mas quinta-feira agora tem o Chris Cornell, que eu considero com toda a seriedade um dos grandes vocalistas de rock dos anos 90 e 00, então é bem provável que eu remende esse treco logo mais... Acho que vai ser foda. Mesmo que ele só cante coisas da carreira solo, ouvir "When I'm Down", "Pillow Of Your Bones", "Wave Goodbye" e "Preaching The End Of The World" ao vivo vai valer cada centavo, aposto. Como é que pode tão pouca gente ter descoberto o quanto o Euphoria Morning é um disco F O D A ?

:: Pisca-Pisca ::

A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais.

[...] A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.

- E depois que morre? - perguntou o Visconde.

- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?



( trechinho d'um livro do monteiro lobato que eu infelizmente não li na infância - tomara que eu nasça de novo, de preferência sabendo português e num tempo depois de Lobato [será que dá pra renascer no passado?], só para ter o prazer de ser criança e ler um treco desses... conheci no museu da língua portuguesa no tri-legal tour que fizemos eu e a carol por lá um tempinho atrás, no tempo da exposição da clarice, e agora roubei o trecho, ressurgido no meu caminho, do scrapbook da Ellen... Acho um dos trechinhos mais adoráveis da literatura brasileira inteira. :)

sábado, 8 de dezembro de 2007

:: 2007 em listas ::

Fim de ano chegando e nada melhor do que fazer listinhas dos melhores trecos pop-culturais do ano. Só para não dizerem que fui influenciado por outras listas respeitáveis e honradas que vão começar a ser soltas por aí daqui a alguns dias, estou me adiantando e revelando meus três TOP 10 para esse 2007. Se fosse para escolher os 10 discos, filmes e livros mais queridos que eu conferi esse ano, eu escolheria...


DISCOS


01. Wilco - Sky Blue Sky
02. Arcade Fire - Neon Bible
03. Okkervil River -
The Stage Names
04. Les Savy Fav -
Let's Stay Friends
05. Radiohead -
In Rainbows
06. King Khan & His Shrines -
What Is?!
07. Eleni Mandell - Miracle Of Five
08. Modest Mouse - We Were Dead Before the Ship Even Sank
09. Bruce Springsteen -
Magic
10. Ian Hunter - Shrunken Heads







FILMES

01. JOGO DE CENA, de Eduardo Coutinho
02. NOME PRÓPRIO, de Murilo Salles
03. SANEAMENTO BÁSICO, de Jorge Furtado
04. PIAF, de Olivier Dahan
05. NOTAS SOBRE UM ESCÂNDALO, de Richard Eyre
06. O GRANDE CHEFE, de Lars Von Trier
07. MEU MELHOR AMIGO, de Patrice Leconte
08. TROPA DE ELITE, de José Padilha
09. SANTIAGO, de João Moreira Salles
10. INFERNO, de Danis Tanovic






LIVROS
(lidos pela primeira vez em 2007)



01. Victor Hugo - Os Miseráveis
02. Clarice Lispector - A Paixão Segundo G.H.
03. Otto Rank - O Trauma do Nascimento
04. Maiakóvski - Poesias
05. Herman Hesse - O Lobo da Estepe
06. Caio Fernando Abreu - Os Dragões Não Conhecem o Paraíso
07. Lawrence Durrell - Justine
08. Amós Oz - A Caixa Preta
09. Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso
10. Ian McEwan - Reparação







SHOWS


01. LOS HERMANOS na Fundição Progresso /RJ - sexta
02. LOS HERMANOS na Fundição Progresso / RJ - sábado
03. EDDIE, no Studio SP (Abril)
04. MUTANTES, no Parque da Independêcia / SP
05. PLANO PRÓXIMO, no Groselha Fuzz / Ribeirão Preto
06. BLUEBELL, no Studio SP (Maio)
07. FLAG POPS, no Groselha Fuzz / Ribeirão Preto
08. MOTORMAMA, no Groselha Fuzz / Ribeirão Preto
09. MOMBOJÓ, no Studio SP (Maio)
10. DIANA KRALL, no Parque Villa Lobos / SP

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

:: beatles e victor hugo ::

Minha beatlemania tá pegando fogo... Finalmente consegui todos os Anthology em divx (salve a abençoada E-mulinha e a LAN-House do Tio Zeca!) e tenho umas 10 horas de filme sobre os Fab Four pra ver nas férias - que alegria! =) (Gravo sim. É só pedir!) Também andei assistindo filminhos de ficção bacanas sobre o assunto, tipo o Backbeat - Os 5 Rapazes de Liverpool (que conta a história dos primórdios dos Beatles no começo dos anos 60, quando ainda eram um quinteto) e o divertido retrato do frenêsi da beatlemania que o Robert Zemeckis filmou uns anos antes do De Volta Pro Futuro - o mó sessão da tarde I Wanna Hold Your Hand.

Além disso, li quase inteiro (e recomendo!) o pdf do livrinho Abracadabra, inteirinho sobre o Revolver, e consegui nos arquivões da FFLCH um xerox com um antigo Dossiê Beatles da Revista Cult que tem muitos textos bacanas. Mas a minha verdadeira vedete tem sido esta belezura aí embaixo, que eu encontrei por 20 míseras pilas na Feira do Livro da USP (por outros vintinho levei ainda uma coleta de reportagens gonzo do Hunter Thompson que eu tava paquerando faz tempo). Peço por favor para que, no ano que vem, algum amigo caridoso me amarre a um poste quando começar a Feira do Livro USPiana e não me deixe nem chegar perto da banquinha da Conrad... Porque é desastre certo para a minha conta bancária. :)



Vamos conversar mais sobre Beatles logo mais. Estou preparando "um livrinho" sobre eles...

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E acabei estes dias a leitura de um livro que me acompanhou pra cima e pra baixo pelos últimos 3 ou 4 meses, lido palavra por palavra com muito gosto, fascinação, empolgação e admiração... Até me lembrei que é possível chorar lendo um livro - coisa que não acontecia, sei lá, desde a morte da Macabéia em "A Hora da Estrela" da Clarice Lispector, lido quando eu tinha uns 16 anos de idade e achava aquilo a coisa mais comovedora que eu já tinha conhecido em matéria de arte, ou da 0cena final do "As Vinhas da Ira", com aquele feto natimorto fluindo rio abaixo e todo aquele cerimonial do amamentamento... A agonia de Jean Valjean não é menos emocionante. E lindo quando, minutos antes de afundar, ele grita: "Morrer não é nada! Horrível é não ter vivido!"

Shakespeare e Dostoiévski que me perdoem, mas Os Miseráveis foi o maior livro que eu já li - não só em número de páginas (são umas 1.300), mas o maior no sentido qualitativo de maior (cuma?!). Maior do jeito que os Beatles são os maiores do rock e o Pelé é o maior do futebol. Li esse gigante com um deslumbramento de humildade frente a algo grande, colossal, maravilhoso... Entra direto na minha lista de 5 romances - talvez no 1o lugar. Mesmo depois da página mil, eu seguia em frente e não desejava que o calhamaço se acabasse: soltei as mãos de Victor Hugo quase a contragosto, quase pedindo que ele continuasse me guiando por mais 1.000 páginas através dos destinos de Jean Valjean, Marius e Cosette...

Victor Hugo foi uma das melhores descobertas do meu 2007. Tô feliz por ter conhecido um dos grandes gênios da humanidade. Vamos conversar mais sobre Os Miseráveis logo mais...

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I'm the weak and lonely sort
But I'm not sailing just for sport
I've come to feel, out on the sea
These urgent lives press against me
I'm just a guest, I'm not a part
My tender hands and my easy heart
These several years out on the sea
Made me empty, cold and clear
Pour yourself into me.

Let fall your soft and swaying skirt
Let fall your shoes, let fall your shirt
I'm not the lady-killing sort
Enough to hurt a girl in port...

Uma das músicas mais bonitas do ano.

"Girl In Port", do Okkervil River - 6 minutos e pouco da mais fina melancolia.

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E quando eu fico triste (e isso acontece com grande frequência...), costumo gostar de escrever poesias, chorando as mágoas e dando umas escarradas no rosto da vida (vezinquando ela bem que merece...) - mas são textos que eu normalmente releio com desgosto e deixo escondidos no fundo da minha HD. Sempre que releio essas minhas abominações fico com a sensação de estar fazendo uma ridícula tentativa de construir coisas bonitas, e sempre fracassando... Mas deixo aí embaixo um destes meus abortos poéticos como... "curiosidade".

:: aborto poético ::

MINERAÇÃO
klee.


"what's so impressive about a diamond
except the mining?"
(fiona apple)




Se eu gosto da vida?
Não muito.
Gosto só da felicidade
(mas a vida tem tão pouco dela...)

E nascer é como entrar numa mina enorme e escura,
sempre ameaçada de desabamento,
e onde, na semi-escuridão e na quase-asfixia,
tateando pelas paredes e tropeçando pelas pedras,
duramente mineiramos em busca de algum diamante bruto.

Frequentemente não encontramos
E para casa voltamos
com a sensação
de ter obrado em vão.

A vida é esta imensa caverna onde entramos,
com pequenos archotes em punho,
que mal desfazem as trevas,
com a esperança de que ali dentro,
escondido em algum canto,
há o baú dos tesouros que chamamos de felicidade
só para ter do que chamar essa nossa utopia.
Essa nossa alucinação.
Essa nossa loucura.

E vamos doidos atrás do prêmio prometido,
achando vez ou outra, pelo chão,
um grãozinho de ouro,
um estilhaço de diamante,
um pedaço de luz.

E isso nos dá a esperança de continuar a buscar.
Continuamos não por estarmos a ganhar,
mas por crer que os amanhãs irão cantar.

Mas todo hoje foi ontem um amanhã...
E os hojes só cantam tão raramente!...

São vinte mil léguas submarinas navegadas
em busca do peixe dourado...
É uma peregrinação de décadas
rumo à Terra Prometida...
Uma sala de espera de um médico
que sempre adia o atendimento...
Um trabalho sujo e de pouco salário,
numa fábrica de onde sabemos
que seremos despedidos, no final.

(...)

O que há de tão impressionante na felicidade
Exceto a mineração?