domingo, 21 de junho de 2009

:: estômagos que roncam em uníssono ::




A UTOPIA DE UM PÃO

- José Padilha, diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174, explora mais uma vergonha nacional (a fome no Nordeste) em seu novo documentário Garapa -

Dizem as estatísticas da ONU que são 930 milhões de pessoas, no mundo, que passam fome. No Brasil, segundo o IBGE, nada menos que 11 milhões de famílias padecem de “condições de insegurança alimentar grave”. Mas um número no papel, por mais estratosférico que seja, é capaz de trazer alguma lágrima aos nossos olhos? Nos tirar o sono à noite? Povoar de pesadelos nosso descanso? Nos empolgar a algum tipo de engajamento ou revolta? É sequer imaginável, concretamente, o tamanho espetacularmente faraônico dessa tragédia cotidiana?

“José Padilha é um cineasta in – inquieto e inconformado com a realidade que o cerca, a ansiedade à flor da pele. Está sempre a mil por hora, como se estivesse o tempo todo dirigidno um filme sem começo nem fim, com um roteiro imaginário na cabeça, em busca de um final feliz que nunca chega. Tem sede e fome de justiça, não se conforma em ver nada errado”, escreve Ricardo Kotscho (na revista Brasileiros, #23). Agora o brilhante diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174 retorna em seu terceiro filme, Garapa, apostando mais uma vez na imensa potencialidade do cinema como um instrumento de conscientização social. A impressão que fica é a de que ele confia no cinema como um modo de construir uma empatia, uma identificação e uma comoção do espectador com as realidades sociais que nenhum livro, relatório ou estatística é capaz de transmitir. E, ao sentir o impacto indelével que é chocar-se com Garapa, quem haveria de negar esse poder extremo que às vezes consegue conquistar a imagem cinematográfica?

Mais de 70 anos desde a escrita de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (de 1938), 45 anos depois do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (de 1964), e 20 anos desde Ilha das Flores, de Jorge Furtado (de 1989), para ficar em poucos exemplos, temos que admitir: as existências no sertão continuam áridas, as barrigas roncam sem parada e as bocas humanas vão engolindo a comida que até os porcos rejeitariam. É verdade que já estamos ouvindo faz décadas sobre a péssima distribuição de renda e de terra que faz do Brasil um dos países mais injustos sobre a face da Terra. Mas não há nada de supérfluo em mais uma obra que venha nos rememorar de uma chaga que ainda não parou de sangrar e que estamos longe de ter conseguido remediar. A situação é urgentíssima, e sempre foi urgentérrima, mas é urgente faz tanto tempo que até nos esquecemos que há um sinal vermelho piscando e que os alarmes, há dúzias e dúzias de anos, estão enlouquecidamente soando. Garapa é um lembrete que vem em boa hora, para retirar as vendas que indústria do entretenimento e do consumo nos mete nos olhos para que não vejamos o quanto a situação é crítica e deprimente.

Garapa foi filmado antes de Tropa de Elite, em pleno verão de 2005, na cidadezinha de Quixadá (a 200km de Fortaleza). Mas só foi montado e finalizado com a ajuda do capital gerado pelo blockbuster que mostrou o Capitão Nascimento e seus asseclas do BOPE em confronto sangrento contra os traficantes do Rio.

Padilha diz que, dos três filmes que fez, este é o mais “universal”. Sinal de que não pretendeu fazer apenas um filme de brasileiro, e para brasileiros, mas um testemunho e um protesto que devem ser ouvidos em qualquer canto do planeta Terra, onde – para nos rendermos à pobreza comunicativa de uma estatística – cerca de 1 bilhão de seres humanos, uma pessoa em cada sete, passa fome.

A escolha do preto e branco talvez se explique por aí: por um lado, o “fato” retratado nada tem de “colorido” - é uma realidade sombria, acizentada e tétrica, em que o Sol sempre flamejante não faz com que os destinos sejam menos negros. Por outro, o preto e branco também auxilia a deixar o retrato com vocação para a universalidade, já que um filme à cores traria muito marcada os tons específicos da paisagem e do solo no sertão nordestino brasileiro, enquanto que o p&b torna aquele cenário semelhante a qualquer pocilga terceiro-mundista, seja no Oriente Médio, na Ásia, na África ou na América Latina.

Além disso, a monotonia da cor ecoa a monotonia da miséria, já que à vida destes esfomeados, reduzida ao mais primário, se vê presa num chão-a-chão sem futuro, um presente sem horizontes e um passado que vai-se esquecendo rápido pois não há nele nada digno de ser rememorado. Um tempo em que a única e terrível obsessão e é manter um organismo vivo – e com quê custo!

Aqui somos apresentados a crianças que vão viver e vão morrer, a maioria delas, sem jamais conhecer o gosto do chocolate, sem jamais saber como é essa tal de Coca-Cola e que dificilmente conseguirão realizar essa façanha: se tornar “gente grande”. Porque por ali virar adulto é mais difícil que tudo: quase todo mundo morre tentando.

São crianças com os dentes podres, que são arrancados à força e que berram sem fim pelas madrugadas por um remédio que não há e por um dentista que não se pode pagar. Mas que importa ficar banguela, se não há carne nem pão que fosse preciso morder? Ah, amiguinhos, no Ceará ter dentes sadios é quase um luxo desnecessário, já que a principal fonte de nutrição da molecada é a “garapa”, ou melhor, água com açúcar!

São crianças piolhentas, imundas, que andam sem roupa não porque o clima convide a uma alegre brincadeira de nudismo, mas sim porque não possuem um mísero trapo com que cobrir seus corpinhos calcinados de sol. Têm a pele lotada de “perebas”, que o médico diz que é alergia, mas que não desaparecem (pelo cotnrário: só se multiplicam!) pelo contato cotidiano com as moscas, muriçocas e outros insetos que infestam casas que jamais conhecerão o inseticida. Ah, mas não é lindo de ver os primatas vivendo em comunismo com os artrópodes e as bactérias?

Esses pobres “filhos da miséria” são “arranjados” por seus pais como se fossem uma epidemia - devido à falta de métodos contraceptivos e ausência de consciência clara da necessidade de controle de natalidade. Uma das mães, que antes dos 30 anos de idade já possui 11 filhos, sem ter condições econômicas de alimentar sequer UM, usa uma linguagem sintomática: filho, para ela, é algo que a gente “pega” - como se pega uma doença ou um resfriado. Por mais que ela queira controlar a disseminação de uma prole que vem ao mundo chorando, para viver de estômago roncando, e morrer cedíssimo e definhando, ela não tem os meios para barrar essa enxurrada de novos seres que saem de seu ventre e que vêm se adicionar ao imenso e desolador cenário da miséria.

E, se a situação das crianças é de quebrar o coração, o que dizer dos adultos? São pessoas um tanto enlouquecidas por excesso de privação e humilhação. Quantas milhares de Estamiras não deverão estar espalhadas por este sertão, balbuciando discursos de raiva e humilhação à beira dos barracos e lixões?! São lares marcados pelo desemprego sem horizontes, pelo alcoolismo crônico e incurável, pela troca de ofensas entre os cônjugues, por cenas de estupro marital que não são denunciadas, por uma triste resignação a uma vida que talvez nem seja digna desse nome... Apesar de tudo, são seres que frequentemente se aferram à fé e crêem que “Deus dá”. Mas que Deus é esse, sempre silente nas nuvens, que não mexe um dedinho de sua mão onipotente para amortecer a fome de 1 bilhão de seus “filhos”? E o que ocorreria, se os despossuídos desse mundo deixassem de orar nas igrejas por uma ajuda que não chega jamais e se pusessem a agir em prol de uma transformação concreta desse mundo que parece abandonado por seu Criador?

E, enquanto marido e mulher trocam grosserias e sopapos, num português de analfabetos, em meio a crianças que murcham vivas de subnutrição, enquanto o papai vai vender o leite para ter sua dose diária de cachaça, o espectador no cinema talvez se sinta envergonhado de sua pipoca e seu refrigerante, que aprecia no conforto de um multiplex em que pagou 20 reais de ingresso e mais 20 de guloseimas. Numa sessão de cinema de Garapa, há casais ou grupos de amigos que gastam mais em duas horas do que uma família de 12 pessoas gasta em um mês. Mas não é isso o mais grave – a alfinetada final o filme reserva para o créditos, que nos contam, para nosso escândalo, o número de pessoas que morreram de fome durante a projeção do filme. Garapa é também um filme que acredita que há coisas muitos mais urgentes a fazer do que assistir filmes.

* * * * *

ESMOLA NÃO!

Um documentarista não é um agente humanitário. Está ali, com sua câmera, para registrar o real como o encontra, sem alterá-lo ou maquiá-lo antes de captá-lo. Todo o sentido do filme se perderia se uma equipe de produção tratasse de “arrumar o cenário” dentro destas casas e “dar dicas” às famílias sobre como deveriam se comportar assim que se apertasse o “REC”. José Padilha é magnífico e exemplar neste sentido, demonstrando plena compreensão de qual é a atitude de um documentarista de gênio – e coloca-se, desde já, entre os mais brilhantes nomes do documentário nacional dos últimos anos ao lado de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles.

Vendo aquelas crianças passando fome frente à câmera alguns de nós talvez faça a pergunta, pondo em cheque à ética daquele que segura o instrumento que apenas observa, passivamente, um espetáculo terrível que ele poderia concretamente remediar: “por que o pessoal do filme não paga um almoço pr'essa gente? não dá umas esmolas? não liga pras assistentes sociais? não ajuda a parar a sangria com band-aid e torniquete?”

É que este filme não está aqui para nos dar edificantes lições de moral sobre a necessidade de caridade, de generosidade, através do pífio e inútil exemplo da esmola. O que esses seres humanos precisam não é de esmola, isso é certo, e todos aqueles que estão ansiosos para se libertarem do ônus da culpa social através desse meio não recebem deste filme nem fiapo ou rastro de permissão. Pelo contrário: Garapa traz, no fundo, um implícito cansaço com os paliativos, e nos deixa com a sensação de que algo muito mais radical, uma modificação de uma magnitude muito maior, é necessária para amelhorar este triste quadro. Para Padilha, a atitude de “mostrar o real”, sem maquiagens, não se opõe à atitude paralela de “modificar o real”, sem covardias e medidinhas paliativas, que só aplacam por minutos a dor, deixando intacta a doença.

Um documentarista também não é um dramatizador, e Garapa, apesar de poder ser visto como um filme profundamente dramático e perturbador (tanto que muitos espectadores saem do cinema dizendo-se tão chocados quanto quando viram Dogville pela primeira vez!), não parece ter essa intenção: de dramatizar. Em momento algum utiliza-se trilha sonora musical para sentimentalizar, nem se procura utilizar artifícios cinematográficos para fazer as lágrimas virem aos olhos dos observadores de todas aquelas tristezas. A situação é tão triste, tão triste, que os olhos ficam secos. Tão secos quanto aquele sertão que lágrima alguma torna menos árido.

Toda a renda de Garapa vai ser revertida em benefício de famílias carentes do Ceará. A única coisa que me entristece numa atitude tão louvável, e tão digna de ser imitada, é que um filme destes provavelmente não fará nem 10% do sucesso que fez Tropa de Elite - apesar de ser um filme tão “violento” quanto, e talvez ainda mais desolador. O filme anterior de Padilha foi certamente um dos grandes filmes nacionais da década (em termos de público, de debate social gerado, de cópias pirateadas e vendidas no mercado negro e de repercussão no exterior, rendendo até mesmo um Urso de Ouro em Berlim). Mas trazia uma violência crua, um tanto estilizada, podendo ser enxergado como um tarantinesco do terceiro-mundo que oscilava entre a crítica social e a espetacularização da violência. Já Garapa nada tem de cinema espetaculoso e não traz um grão de hollywoodianismo em suas veias. Acho isso absolutamente magistral: trata-se um filme brasileiro que possui uma estética que é absolutamente limpa de qualquer contaminação da estética para-as-massas do cinemão americano, ao mesmo que carrega uma grande vocação para a universalidade. É, sem dúvida, um dos filmes mais importantes, brilhantes e chocantes que fez o cinema brasileiro nesta década e nos contamina com uma sensação de indignação e urgência que são imprescindíveis na tentativa de transformar um quadro tão deprimente. E agora, esqueçamos o cinema e os textos sobre cinema, e mãos à obra!

NOTA: 10.0

quinta-feira, 18 de junho de 2009

:: a little bit of poetry! ::


PSYCHÉ

Ouvre tes yeux comme une flamme,
Mais sois silence, l'Amour dort.
Viens, lève-toi, Psyché, mon amê,
Et prends en mains ta lampe d'or.

Regarde bien, l'Amour s'eveille,
Vois comme il s'est évanoui
En la lumière et la merveille
Que ton regard posa sur lui.

Et maintenant c'est le mystère,
L'abandon et la pauvreté;
Mais en tes larmes la lumière
Et le songe de sa beauté.

Demain, triste, mais frèle et blanche,
Belle d'avoir voulu mourir,
Tu sentiras ton front qui penche,
Sous des roses s'évanouir.

Aux splendeurs de l'aube future,
Demain tes lèvres apprendront
A n'être qu'un divin murmure
De mots de réssurrection.

CHARLES VAN LERBERGHE (1861-1907)

(trad: Mário Faustino. in: Artesanatos de Poesia.)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

:: boiando na sopa de letrinhas ::


:: LER É VIVER! ::

"Dizem que as perguntas fundamentais são quatro. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Afinal de contas, o que estou fazendo aqui? Se quisermos as respostas absolutamente certas, então todas elas serão irrespondíveis. Porém, se admitirmos a resposta "andando", esclarecendo um pouco ao mesmo tempo que se continua duvidando, então estaremos sempre respondendo - e sempre perguntando. (...) O primeiro livro que a gente lê é um dos primeiros espelhos. Onde se procuram respostas para as quatro perguntas e, em especial, para a primeira. Onde se encontra alguma coisa, mas não as respostas definitivas. Daí, alguns abandonarão a leitura para tentarem outra linguagem, enquanto outros continuarão lendo, continuarão procurando por ali. Até começarem a perceber que na outra ponta dos livros esteve um escritor, e que parte das respostas ansiosamente procuradas talvez esteja no próprio esforço de escrever as dúvidas. --- GUSTAVO BERNARDO, Espelho

Concebo a Leitura como uma das mais importantes e fascinantes das aventuras humanas. Desdenho um pouco os Colombos e Cabrais, que entram em caravelas em busca de novos continentes, pois sei que não preciso de barcos nem de velas para viajar para as mais variadas e espantosas plagas. Todo livro é uma viagem. E em toda viagem a jornada é a recompensa, e não o chegar-ao-fim. Viajo tranquilamente dentro dum quarto. E estar na prisão não me seria tão duro se eu tivesse acesso a todos os livros do mundo - e a papel e caneta que pudessem sair de minha cela e ganhar o mundo.

Mergulhando nos livros, chego diariamente a terras incognitas, mil delas, proeza de que se gabam os conquistadores de terem realizado apenas um dia (ou poucos) de suas vidas! Ah, e que terras selvagens e inexploradas, desconhecidas de nossos radares e mapas, são mais interessantes de desbravar, de conhecer e de descobrir do que a mente de nossos companheiros na vida-jornada? Especialmente aqueles que, por terem profundamente pensado, belamente se exprimido ou intensamente vivido, chegaram a ser selecionados pela peneira do tempo como a fina flor da humanidade!

Mas sempre senti que minha jornada de leitura não pode ser imposta de fora: não sigo os itinerários e os mapas que me mandam seguir na Escola, mas sim construo meu próprio caminho, guiado pelo impulso do meu desejo e da minha curiosidade. Só consigo ler com proveito o que quero ler, e não o que é preciso ler. Talvez por isso sinta tamanho carinho pela leitura, e encontre nela tantos prazeres, e goste tanto de dedicar tanto da minha vida à isto - esta coisa por tantos desdenhada, e que na vida de tantos não ocupa quase nada... Ah, os “homens práticos”, como desprezam esses que ficam nadando em sopas de letrinhas! Como se não fosse este um dos únicos meios de realmente crescer como homem! Ler mais para ser mais, ler mais para viver melhor: acredito com toda a convicção nessa besteira, caros burocratas!...

Ler é viver! Melhor dito: ler é munição para viver; dá as ferramentas com quê pensar esse viver; põe a mente em diálogo, em regime dinâmico, longe da letargia; oferta um acervo de remédios para curar os males desse viver; e, se procurarmos bem, podemos achar um baú de sabedorias potencialmente amelhoradoras e salvadoras desse viver... Pra mim, ler não é "brincadeira": é uma das coisas, na vida, que mais conta. Acho que não leio "à toa", “por hobby”, pra "passar o tempo", pois preciso “me inteirar”, pra me gabar de ser "sabido", porque livro é um “bom sonífero” - nem mesmo porque acho que “conhecimento é importante”! Acho que é o motor é muito mais uma furiosa fome, uma desvairada necessidade, um ardente e incontrolável desejo de decifrar o mistério do mundo...

É a grande Esfinge, a grande incógnita que me olha de dentro do Cosmos, o que me impulsiona a viajar por estes mares de palavras e idéias, em busca de luzes que me aclarem e me expliquem o mistério - que sei, no fundo, inexplicável e ineclarável por inteiro. Ainda bem! Pois assim a busca continua, sempre e sempre, perpétua e irrealizável, quando sei que nunca terei todas as respostas. E nunca me estancarão o parto de perguntas, que fluem do meu sangue afora como hemorragias!

As bibliotecas? São templos muito mais veneráveis do que as igrejas e os cemitérios. E ali estão certos objetos que deveríamos adorar com um fervor imensamente maior do que aqueles que voltam os crentes para as estátuas dos messias ou os crucifixos. Um livro, apesar de concretamente ser apenas papel e tinta, representa nada mais nada menos que uma janela aberta para que possamos olhar dentro de outra mente. Não é pouca coisa. Não desejas olhar pelo buraco da fechadura que dá para o mistério de outros seres? E que seria de nós, se não pudéssemos conhecer, ainda que por este mísero buraquinho, um pouco do que disseram e pensaram, que sentiram e compartilharam, todos os melhores homens da humanidade?

É possível estabelecer diálogo com os mortos, sim senhor! E não falo de espiritismo mela-cueca, supertição escrotilda ou misticismo de meia-tijela. Esses que um dia nasceram mas que hoje are not among the living, deixaram, alguns deles (e certamente poucos!), seus relatos, testemunhos, raciocínios, lutas, dúvidas, vitórias e desfalecimentos - e por isso podemos seguramente dizer: não viveram em vão. Já todos aqueles que viveram e nada deixaram, nem de escrito, nem de construído, nem de composto, nem de dito, nem de amado, esses seguramente viveram mal e viveram, talvez, em vão. Como aqueles que viveram para destruir. Viver, sem que isso seja fazer algo à toa, me parece ser isso, no mínimo: viver dando testemunho do que isto significa para nós; de como sentimos essa aventura e esse mistério; de como reagimos aos choques e às maravilhas que se interpõem em nosso caminho. Do not go quietly into your grave!

* * * * *

"Ler bem pode ajudar a viver, porque o sujeito se informa, se identifica, se transfere, principalmente se anima. Mas o que leva as pessoas a escrever é uma angústia diferente destas: a angústia de riscar um destino, interferir na história, se colocar no campo de jogo. Logo, ler não é condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo." - GUSTAVO BERNARDO, Redação Inquieta

* * * * *

O LIVRO DOS LIVROS?

Mas não nego que às vezes venha o cansaço. Gostaria que houvesse tudo o que procuro já reunido, sintetizado e expresso de maneira impecável e final no Livro dos Livros. É uma ilusão que talvez muitos de nós alimentemos, no começo dessa longa jornada de busca existencial que é a leitura: a de que um dia acharemos o livro que contêm todas as respostas, o livro que traz remédios para todos os males, o livro que, compreendido e assimilado, transformado em “posse” nossa, irá nos tornar, de uma vez para sempre, completos, felizes, serenos e sábios!

Há desses que passeiam pelas bibliotecas com os corações incendiados, investigando com furor naquele oceano de palavras em busca de uma panacéia, de um baú de esplendorosos tesouros, algo que fosse a solução final para todas as interrogações e dolorosidades! Muitos jamais o encontram (é o meu caso!), e percebem que isso que chamamos de “sabedoria” é algo todo esparramado, disperso, como um espelho que se desfez em cacos ou pétalas de uma flor que jamais será completamente re-pétalizada...

Há um Livro Final, que contenha em si todas as Verdades Eternas, depois do qual nenhum outro livro precisará ser escrito, já que neste Livro Supremo estarão todas as sabedorias, todas as belezas, todas as soluções para todos os mistérios? Ou será que todas as obras de escritura, como sugere Mallarmé, representam um “imenso concurso pelo texto verídico, entre as épocas ditas civilizadas ou letradas”, concurso este que nunca chega ao fim?

Que os religiosos acreditem nisto – que delirem que a Bíblia Sagrada, por exemplo, “esgota” a Verdade, diz toda a Verdade, não deixa espaço algum para uma adição de verdades ou a revelação de novas verdades - isso não impede que pensemos, nós ateus, que este Livro Absoluto não existe, nunca existiu, nem nunca existirá. “É a ausência do Livro que deste modo deploramos”, diz Derrida, e é como se chorássemos por esta “ausência da escritura divina”, por este Deus que jamais nos empresta sua pena, que jamais dá a resposta para esta Charada que se chama Cosmos, por ficar sempre no formidável silêncio de que são capazes somente as coisas que não existem.

Por isso a escritura, diz Derrida, pode ser sentida como algo perigoso e angustiante, aventura sem seguros e cheia de riscos, jornada em que embarcamos sem saber ao certo para onde vamos... “A escritura é para o escritor, mesmo se não for ateu, mas se for escritor, uma navegação primeira e sem Graça.” Ler-e-escrever é navegar em mar tormentoso, na rota da decifração dos mistérios, sabendo que Deus algum nos auxilia nessa jornada e que temos como guias somente o que outros falaram – os relatos (decerto preciosos!) de outros navegantes. “Se a criação não fosse revelação, onde estaria a finitude do escritor e a solidão da sua mão abandonada por Deus?” - pergunta o filósofo.

O Livro dos Livros não existe, e a Sabedoria Completa não se encontrará em um só lugar, mas sim esparramada por aí - e cada um de nós só resgata dela algumas migalhas! Às vezes nem isso. É esta “certeza perdida”, esta “ausência da escritura divina”, o que “comanda toda a estética e crítica modernas” - comenta Derrida. Isso nos condena a ler-e-escrever sem antes conhecer as verdades, é claro (que sentido teria sair em busca do que já temos?); ler-e-escrever na tentativa e na batalha para descobrir-las; ler-e-escrever numa certa escuridão e num certo tateamento, como crianças que vão entrando, ao mesmo tempo curiosas e temerosas, num quarto sem luz; ler-e-escrever, de certo modo, como sonâmbulos, e destes que nem mesmo conseguem estar certos de que não despencarão em abismos...

Mas sem isso, onde estaria a Aventura?

:: beba com responsabilidade! ::


TRUE BLOOD - 1a Temporada - Tá: à primeira vista parece uma baita bobagem. A sinopse da série nos faz temer uma enojante clicheria ou mais uma "podreira" sanguinolenta sem muito sentido. Depois de Nosferatu (o de Murnau e o de Herzog), do Drácula de Coppola, de pencas de livros de Anne Rice, Bram Stocker, Stephen King e Allan Poe, de Buffy - A Caça Vampiros e Blade - O Negão Que Mata de Vez Os Mortos, alguém ainda tem os colhões para se meter a fazer um seriado sobre VAMPIROS? Já não fizeram mil e cacetada de "obras" (se é que merecem esse título!) sobre dentuços chupadores-de-sangue, zumbis, mortos-vivos, dráculas, lobisomens e todo a corja das aberrações do além-túmulo? Será que esse pessoalzinho da Pop Cultura made in the USA não se cansa de gastar milhões de dólares com sangue artificial aos litros e violência gratuita às pampas?

Mas calma lá! "True Blood", o viciante seriado novo da HBO (que sempre manda bem: quem viu Deadwood, Six Feet Under, In Treatment, Os Sopranos etc. que o diga!), pode ser rejeitado fácil pelos desavisados como mais um besteirol de terror americano, mas acreditem: é uma deliciosa criação da teledramaturgia estadunidense. É a nova empreitada do genioso e esclerosado Alan Ball - roteirista vencedor do Oscar por "Beleza Americana" e a grande mente por trás de "A Sete Palmos" (que eu considero, disparado, a melhor série da década).

"True Blood"
só na superfície é sobre vampirismo. No fundo, a treta é mais embaixo. À parte os Contos Macabros - que me dão uma baita saudade do tempo em que eu assistia, lá pelos 12 anos de idade, ao "Contos da Cripta" nas madrugadas da Band - é um endoidecido american-way-of-life chronichle, que versa sobre alcoolismo, vício a entorpecentes, indústria da pornografia, exorcismos e excomunhões, crianças abusadas por parentes e mais uma pá de tretas do Lado Sombrio da Vida.

No mundo não-tão-ficítico-assim da série, os vampiros de fato existem, têm caninos pontiagudos, vestuários góticos, paixão por ambientes mau-iluminados e estão obviamente louquinhos por um sanguinho humano. Mas a grande sacada aqui é: por acaso os humanos são menos sedentos por sangue do que eles? That's the point. A série desmistifica um pouco: os vamps não pegam fogo ao se depararem com um crucifixo, não derretem com água benta e são imunes ao alho. Mas um pouco da velha mística vampiresca é reiterada: essas criaturas, mortas há muito tempo atrás e deixadas a vagar pela Terra, não se alimentam e não suportam a luz do Sol. Sua única nutrição? Sangue humano. Mas as caridosas autoridades, para evitar a guerra e retirar os pescoços dos ainda-vivos do "Cardápio", trataram da coisa com muitíssima classe: INDUSTRIALIZARAM O SANGUE HUMANO. Você pára em qualquer boteco, qualquer loja de conveniência, qualquer farmácia, e ali está, ao lado da Coca Cola, da bomba de gasolina da Shell ou das fraldas para o Bebê essa belezura: TRUE BLOOD, uma garrafinha long-neck, servida quentinha, com sangue humano fresquinho. Um desbunde!


Desse modo, não há guerra civil entre os vivos e os mortos - mas sim uma tentativa de convivência pacífica e ordenada num mundo onde vamps e não-vamps são iguais aos olhos de Deus e igualmente amparados pelo colo maternal da Mãe América. A sociedade inteira discute publicamente a questão do preconceito contra os vampiros, que por vezes são expulsos de bares cristãos por serem considerados presenças malsãs. Mas reclamam como se fossem parte de qualquer minoria racial ou étnica: "Discriminação contra vampiros é crime punível pela Lei no magno estado da Louisiana!", protesta um vamp. Porque vampiro também é gente, pô!

A humana que sabe muito bem disso chama-se Sookie Stackhouse, uma loirinha boazudinha e com poderes paranormais ("escuta pensamentos" - é mole?!?). Ela é garçonete num bar-e-bilhar um tanto porralouca do Sul americano, lá onde a intolerância racial é historicamente mais pronunciada, e onde os vampiros não são assim tão benquistos. A bela, diáfana e louríssima Sookie (vivida por Anna Paquin, que foi vencedora do Oscar por "O Piano" quando era pirralha) vai se encantar pelo Vampiro Bill - um galã charmoso, irresistível e extremamente pálido de 173 anos de idade e que morreu na Guerra Civil Americana, em 1862, lutando pelo Sul caipira contra o Norte opressor.

Tá achando que é pouco? Alan Ball ainda nos reserva muitas surpresas neste seu novo FREAK SHOW. Pra vocês verem o naipe da coisa, é só dizer que há um personagem, de nome Lafayette, que é nada menos que um Negro Homossexual Cozinheiro Porra-Louca e Boca-Suja que é nas horas livres um Traficantes de Drogas e um Michê (mas só dá o rabo para vampiros, e não em troca de dinheiro: recebe em sangue-vampiresco!). Já o irmão de Sookie, Jason Stackhouse, é um junkie ninfomaníaco, burro feito uma porta, que arranja uma namoradinha neo-hippie e "conectada à Gaia" ("a Terra é um imenso organismo e tudo está interconectado", etc. etc. etc.), com quem causa por aí em busca da DROGA DA ESTAÇÃO: vamp-blood, a experiência mística-psicodélica que deixa o LSD, o ecstasy e a ayahuasca no chinelo.

Alan Ball, sem vergonha, chama o seriado de "popcorn TV for smart people" - e taí uma ótima definição para essa pipoquice televisiva irresistível. A grande "sacada" do seriado é ser altamente curtível como mero entretenimento - e, puta que o pariu, que maestria eles têm em acabar um episódio nos deixando sedentos pelo próximo, como se fôssemos vampiros famintos! - ao mesmo tempo que é sagaz e denso o bastante para agradar espectadores mais exigentes. O mundo de True Blood, afinal de contas, não é assim tão "imaginário" quanto parece: que um seriado de temática tão "fantástica" possa soar "realista", fazendo uma crônica social deliciosamente impregnada de humor negro, talvez seja sintoma de que vivemos num planeta que, não muito diferentemente do microcosmos de True Blood, está também infestado de sanguessugas.

terça-feira, 9 de junho de 2009

:: chicoso! ::


Coisa pra lá de chicosa, mais até que um vestido maria-mijona de 1.900 e lá vai fumaça, é fazer um ménage à trois com Chico Buarque! Hmmmm! Essa deleitosa façanha está lá, na nova edição da revista mais berrante do ciberespaço brasileño: a Gi fala sobre o novíssimo romance do mestre, Leite Derramado, e eu traço paralelos entre o livro Budapeste e a adaptação em filme do mesmo, que anda agorinha mesmo num cinema perto de vocês. Glue there, fellas!

quinta-feira, 4 de junho de 2009

:: we'll always have Paris! ::


:: CIRURGIÕES DA MEMÓRIA ::

Filosofando "Casablanca"!

Quando Heráclito dizia que não se banha duas vezes no mesmo rio, pois nem as águas nem o banhista são os mesmos no segundo mergulho, me parece que de modo algum queria sublinhar essa obviedade quase tola e tautológica de que as correntezas correm (dããã! e quem não sabe?!), mas sim apontar a verdade menos visível de que TUDO, visto a fundo, é uma correnteza. Até mesmo as lagoas, as rochas, os palácios, as estátuas e os animais empalhados! Sim, as lagoas e as pirâmides também fluem, mesmo que de modo não tão visível quanto no caso exemplar (pois ultra-pedagógico) dos rios. E é isso que faz de toda e qualquer coisa no universo, e não somente dos rios e dos hippies, uma "metamorfose ambulante". Em suma: quando o filósofo afirmava que TUDO flui, ele não tava de brincadeira. O TUDO era pra valer!

Nossa Consciência, ainda que muitos disso não se dêem conta, trabalha em regime de fluxo perpétuo. Só dentro da mente é que forjamos crenças (como a da "identidade pessoal imutável", da "alma imortal" ou do "eu" adamantino que é o mesmo no bebê e no velho) que, decerto ilusoriamente, tentam nos convencer de que há alguma verdadeira permanência ou durabilidade. Uma lembrança, por exemplo: taí algo que os ingênuos podem acreditar que não muda, sendo como uma "foto" que retêm "para sempre" o que foi "realmente" um determinado "instante" (e quantos problemas filosóficos não levantam essas expressões: "realmente", "para sempre" e "instante"!). Uma vez tirada e retida essa “foto” que é a lembrança, que supõe-se um verossímil retrato do real, pronto – "tirou, tá tirada". Mas não! Casablanca nos faz pensar que a memória é um constante retocar, re-interpretar, re-alocar, re-significar, re-pesar e re-valorizar nosso acervo de "fotos internas". Estas que, tanto quanto as fotos "materiais", também podem desbotar, se rasgar, acumular pó, perder o viço, mudar de cor, perderem ou ganharem encanto, serem mordidas pelo cachorro ou despedaçadas pelas crianças...

Essa noção da Memória como um Imenso Depósito onde guarda-se, tal como foi, o que um dia foi presente, ou como um Álbum de Fotografias, com retratos exatos e verazes de como foi nossa caminhada, é problemática e muito provavelmente falsa. Os afetos, os desejos, as esperanças e o intenso desejo de alegria e felicidade podem fazer com que a verossimilhança e a lucidez percam a batalha para o retoque, o kitsch e as lembranças inventadas. “Valsa a Bashir”, por exemplo, conta dum experimento psicológico onde mostrou-se a "cobaias" algumas fotos de 10 lugares onde elas estiveram na infância – sendo que 9 eram fotos legítimas e uma era falsa. Esta imagem falsa, que mostrava a pessoa num local onde ela jamais esteve, era reconhecida pelas pessoas como verdadeira na grande maioria dos casos. Os céticos, que não ousaram reconhecer com certeza aquela cena no seu passado, todos converteram-se à essa certeza quando foram expostos à imagem pela segunda vez. Claro que, no caso, a imagem era feliz, aprazível, mostrando a criança num ambiente agradável, cálido, envolvente, acolhedor e divertido, como um parque de diversões ou um piquenique no bosque ensolarado com mamãe e papai sorridentes e enternecidos...

A memória humana se insere, pois, neste "tudo flui" de que falava Heráclito: é mutante e transformante, oscila e varia conforme o presente. Está aí um adicional de fragilidade a este deus-de-pés-de-barro tão frágil e ferível que é o amor: não só ameaçado pelo desgaste, pelos atritos, pelo tédio, pela solidão, pela morte, pelas brigas, pelos ciúmes, pela possessividade, pelo sadismo, pelo capitalismo, e por tantas outras forças que o atacam, têm ainda que cuidar para que não perca os bens que viveu e que agora estão retidos nos frágeis frascos da memória.

É um pouco este o drama emocional que emoldura um dos grandes filmes da história do cinema, Casablanca. Ali, a memória de um tórrido affair romântico em Paris, entre o celebérrimo casal Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, não cessa de modificar-se, feito um camaleão do passado, conforme o presente se desenrola - como um tapete adentrando o salão escuro do futuro.

Quando ele primeiro revê a ex-amante em Casablanca, ao som de “As Time Goes By”, conhecemos um homem amargo, ferido, inundado por mágoas, que parecia ainda trazer no peito a chaga sangrenta de ter sido, anos e anos atrás, um homem que espera, na chuva, e em vão, pela mulher que ama. A cena é um dos mais memoráveis momentos de um galã hollywoodiano hooked by the blues, submerso na terrível melancolia de uma rejeição incompreensível, ensopado (de chuva ou de lágrimas?) naquela estação de trem que mais se parece uma sala de tortura a céu aberto. Os minutos rareando que soam como punhaladas sequenciais no coração de uma esperança agonizante. Um amor que morre sufocado pela ausência intensamente desejada da mulher que se queria presente. Essa ferida não será facilmente superada. Bogart, quando o clássico de Michael Curtiz começa, é um bruto, um beberrão e um ser humano de pedra – e que ficou assim empedernido devido a um coração partido e jamais cicatrizado.

A noção de tempo, para o Rick ao início de Casablanca, está reduzida à estaca do momento por fobia ao trauma passado. Ele mesmo diz, quando lhe perguntam sobre ontem: “isso está tão distante que nem me lembro”. Ou quando lhe perguntam sobre o que fará à noite, retruca: “I never plan that far ahead”. Ou seja, ele está reduzido a seus cigarros, sua rabugice e seu pub marroquino repleto de intrigas, trambiques, passaportes falsos e jogos suspeitos, não querendo voltar o pescoço para olhar no rosto de um dolorento passado. E talvez conseguisse manter a porta deste porão trancada, se a visita da ex-amante não redespertasse dentro dele uma memória submersa, mas que ele descobre ainda não curada.

Claro que sua primeira reação é vingar-se da mulher que o abandonou, causando-lhe tanta dor e humilhação, gerando um trauma que até então ele jamais superara. Casablanca retrata uma espécie de terapia a dois, feita no grande palco caótico de um mundo imerso na 2a Guerra Mundial, em que ambos procuram, de certo modo, remendar uma lembrança que rasgou-se e tornou-se um hematoma dentro do grande salão da memória.

Pois todos temos lembranças que possuem gangrenas, lembranças que têm vírus e bactérias, lembranças que estão apodrecendo, lembranças que assombram nossos pedadelos ou que nos pesam nos ombros da alma travestidas de culpas... Nossa sorte é que não é preciso ser neurocirurgião para fazer uma benigna operação de remoção de um tumor da memória! O passado, de fato, não pode ser mudado; mas nossa memória dele, sim. Nossa interpretação sobre seu sentido, sim. O peso sentimental e existencial que possui para nós, sim. E temos alguma outra relação com o passado, a não ser através de nossas lembranças? E que miséria e que ninharia não são! Nosso minúsculo passado pessoal, essa miseriazinha de pequenas lembranças que possuímos, que é isso perto da enormidade da História real?!? E não falo de tudo o que ocorreu e foi registrado em todos os livros de História do mundo... Porque a imensa maioria das coisas que ocorreu jamais foi parar num livro de História!!! O império do Esquecimento é incomensuravelmente maior e mais vasto e poderoso que o pobre e débil reino da Memória. E a nossa memória pessoal é gotícula mísera no Grande Oceano do Acontecido.

No filme, há o retrato de um Milagre Psicológico: a Regeneração de uma Memória. Ou melhor: uma transformação radical de um memória que, antes guardada como uma chaga e um tormento, passa a ser abraçada com ternura e gratidão. E, neste caso, o agente benigno que opera essa doce cirurgia é ninguém menos que a Verdade – apresentada como algo deveras redentor. The truth shall set you free. Este homem, que sofre por não saber porque foi abandonado, torna-se, ao contato redentor com a verdade, ao assimilá-la através da compreensão, quase que completamente curado (ao menos da mágoa: que dizer do bem-mal que agora o acometerá, a saudade?).

Ele entende que ela "não fez por mal", que não quis machucá-lo e que tinha ótimas razões para não fugir com ele da França, que acabara de ser invadida pelos nazistas. Casablanca, apesar de não ser um desses espécimes hollywoodianos com um happy end ruim de doer (pelo contrário! quer desfecho mais brilhante que aquele?), é sim uma obra com um desfecho feliz. Um fim que redime não só o personagem de Bogart, que acaba tornando-se um benfeitor que contribui para a fuga de um luminar do movimento de resistência internacional ao nazi-fascimo. Mas um fim que também redime a moça, que pôde até ser considerada pelo espectador como um adúltera arrependida, uma mulher-perdida que corneou o marido e depois quebrou o coração do amante, mas que acaba tendo seu comportamento explicado, desculpado, angelizado – no fim, ela também é “super do Bem”! Não traiu de verdade o marido: pensava que ele estava morto. Não quis machucar o amante, condenando-o à esperar debaixo da tempestade na estação: mas era impossível partir, tendo descoberto que o esposa, que amava, ressurgia das cinzas, por assim dizer, e readeria ao mundo dos vivos.



Casablanca, além do retrato sócio-político de tempos conturbados, numa cidade marroquina repleta de refugiados, é a descrição de um milagre psíquico: uma terapêutica que se consuma numa completa Redenção do Passado. Quando Bogart diz à Bergman, numa das frases mais antológicas da história da sétima arte, "We'll always have Paris!", ele não está somente sendo um romântico bobalhão, mas está sim dando um testemunho da cura que se operou em sua memória atormentada. Pois quando o filme começa ele não "tinha" Paris: o caso em Paris era um açoite, uma borboada, uma punhalada, um temível esqueleto no armário, uma lembrança gangrenada que ele, se pudesse, preferiria ver amputada.

Se o transportássemos para o mundo imaginado por Charlie Kaufman, ele certamente contrataria a Lacuna Inc. para solicitar a remoção cirúrgica dessa aventura sentimental desastrada, só para ter a glória de sentir "o brilho eterno de uma mente sem lembranças". Ao fim de Casablanca, porém, como efeito do reencontro com a ex-amante, ele "ganha" Paris de volta, com todo seu brilho e frescor, como uma memória digna de ser guardada e louvada. É como se todo o seu passado, que ele antes queria esquecer e manter preso nos porões da mente como uma fera em sua jaula, ressurgisse após um banho redentor brilhando como uma pérola rara. Um milagre que não é dos menores feitos que só o amor, quando aquecido pelo sol da verdade, é capaz de realizar.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

:: colecionador de palavras preciosas (II) ::


ou PEQUENO INVENTÁRIO DE GRIFOS

"Epitáfio é uma frase que se grava numa lápide, contando algo sobre o enterrado. Já escolhi a minha. Não é original. É a mesma de Robert Frost: 'Ele teve um caso de amor com a vida...'. Quintana, sabendo que a morte o esperava em alguma esquina, escolheu a sua: 'Eu não estou aqui...'. Já imaginaram? Caminhando pelo cemitério, as lápides se sucedendo graves e fúnebres. 'Aqui jaz', 'Aqui jaz...'. De repente olhos batem na frase 'Eu não estou aqui'. É possível evitar o riso? É possível evitar amar quem assim brincou com a própria morte?" (RUBEM ALVES, em especial sobre Quintana na Revista Língua, número 8)

* * * * *

"A duração, seja os séculos para as civilizações, seja os anos e dezenas de anos para o indivíduo, tem uma função darwiniana de eliminação do inapto. O que é apto a tudo é eterno. Só nisso reside o valor do que chamamos de experiência. Mas a mentira é uma armadura pela qual o homem frequentemente permite ao inapto nele mesmo sobreviver aos acontecimentos que, sem essa armadura, o matariam (assim como o orgulho sobreviver às humilhações), e essa armadura é como que secretada pelo inapto para evitar o perigo (o orgulho, na humilhação, avoluma a mentira interior). Existe na alma como que uma fagocitose: tudo o que é ameaçado pelo tempo secreta mentira para não morrer, e à proporção do perigo de morte. Por isso não há amor à verdade sem um consentimento sem reservas à morte." (SIMONE WEIL, A Gravidade e a Graça).

* * * * *

"Ninguém chora os miseráveis. 'Marginal que é marginal' morre sozinho, ali onde a traição alcança e a desova é fácil. A misericórdia, entre nós, também é 'concentrada' e não sobra para mortos sem grife. A contrição dos 'sem nada' é, portanto, insolente e desbocada. É protesto e sarcasmo, raiva e acusação. Como exigir piedade de quem viveu fora dela?" (...) "Estamos cegos a ponto de não ver que o desdém com que tratamos os mais fracos tem retorno? Que mortes por descaso voltam sob a forma de sequestros, assaltos, tráfico, assassinatos ou de farsa religiosa...?" (...) "...[nesta nossa sociedade] o interesse pela vida privada sobrepõe-se, de longe, a qualquer preocupação com a vida pública. Meu salário; meu emprego; minha família, meu sexo; meu sentimento, mon petit bonheur, enfim, é o que importa. Mas, até aí, tudo é mais ou menos familiar. Sabemos que política e bem comum são coisas do passado; coisas de intelectuais 'fissurados' em miséria. Dinheiro, saúde e sucesso são o fetiche da fórmula brasileira da felicidade. Aqui, como em outras ocasiões, os que estão mais perto do inferno são os que se acham com um pé no céu." (...) "Pois quanto mais individualistas somos, mais ficamos vulneráveis às inevitáveis dores do mundo. Desfizemos a teia de solidariedade que, pelo menos idealmente, poderia nos ajudar em momentos difíceis, e o único remédio contra o sofrimento, quando estamos sozinhos, é 'endurecer perdendo a ternura'..." (JURANDIR FREIRE COSTA, Razões Públicas e Emoções Privadas)

* * * * *

"Quando eu era criança
Sem saber meu caminho
Voltei meus olhos errantes
Para o sol, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para escutar meu lamento,
Um coração como o meu
Para cuidar dos atormentados.

Quem me ajudou
Contra a cruel insolência dos Titãs?
Quem me resgatou da morte, da escravidão?
Não fizeste tudo isto sozinho,
Sagrado coração em brasa?
E jovem e bom, brilhavas
Enganado, agradecido pelo resgate
Daquele que dormia lá em cima?

Eu, honrar-te? Por quê?
Algum dia aliviaste o sofrimento
dos oprimidos?
Algum dia secaste as lágrimas dos amedrontados?
Não fui levado à idade adulta
Pelo todo-poderoso Tempo
E pelo destino eterno,
Meus mestres, e os teus?

Imaginavas por acaso
Que eu fosse odiar a vida
E fugir para o deserto
Porque nem todos
Os meus sonhos em botão floresceram?

Aqui continuo sentado, forjando homens
A minha própria imagem
Uma raça para ser como eu
Para sofrer, chorar,
Deleitar-se e alegrar-se
E para desafiar-te,
Como eu.

GOETHE


(como citado por Susan Neiman em Evil In Modern Tought)