sexta-feira, 30 de maio de 2008

:: canto porque o instante existe ::


"A beleza é mais frágil que a vida."
FERREIRA GULLAR



...e eu oscilo feito uma gangorra nas minhas relações de amor e ódio com a poesia (as minhas e as alheias) - bunda no lodo e logo cabeça nas nuvens! por um lado acho poesia um negócio magistral, essencial, empolgante, vivificante... uma das melhores carícias que podemos fazem em nossas próprias almas... um dos melhores funis que existe para despejar um pouco de beleza em nossos jardins internos, tão cheios de ervas daninhas e desertos sem sal. Por outro lado, em outros dias, acho os poetas uns pretensiosos, uns exibidos, uns pavões, uns malas, uns desesperados trabalhadores da palavra que ficam procurando construir belezas num mundo em que quase ninguém se importa com ela. O mundo concreto é extremamente anti-poético. E acho que precisamos tanto de poesia justamente porque a vida é tão nojentamente anti-poética. Temos que injetar nas veias dela um pouco de poesia para não ficarmos com vontade de vomitar toda hora que olhamos na cara da mocréia. Temos que colorir nossas lágrimas com as tintas da poesia para que elas não sejam simplesmente lágrimas, choradas e inúteis, mas gotas de beleza. Enfim, sobre a poesia acho que a melhor coisa que se pode dizer é que ela é uma "inutilidade essencial", como diria minha amiga Aline Guarato, que, do jeito dela, é uma das criaturas mais poéticas que já conheci. Divagações à parte, deixo aí embaixo um punhado de poesias que andei expelindo do meu organismo nos mais diversos estados de espírito - elas já tem algumas semanas de idade e não postei antes só por vergonha. Sei lá se isso presta, mas nem me importo tanto - tiro de mim e pronto. Vou tirando minha alma de dentro dessa jaula apodrescível que chamo de corpo aos baldes - eis meu lago! Espero que ele possa ser espelho, água para lavar os olhos, paisagem a contemplar, bobeira a rir, algo pelo menos assim: inútil e essencial! Que os "estados" mentais que geraram cada uma delas foram efêmeros, é óbvio, pois todos eles são. E, aliás, poesia também me parece ser isso: uma foto que você tira do estado das coisas dentro de você em momento X. Do mesmo modo que tiramos fotos do céu, sabendo que um pôr-do-sol ou um desenho de nuvens idêntico nunca se repetirá, também escrevemos poesias que registram, num click, como está o clima e as cores no céu de nossa alma, também ela movente como um rio e fatalmente evaporável como água debaixo do incêndio do Sol.



A HARD RAIN'S A GONNA FALL
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"O chato é que o pensamento delirante,
tão lindamente desgrenhado,
acaba penteadíssimo."

(Lygia)


Não estou guardando mais nada, chega!
A alfândega precisa se tornar menos severa:
que o trânsito seja mais livre entre o dentro e o fora!
Até hoje, pinguei minha alma sobre a Terra com conta-gotas,
pingo a pingo, em doses homeopáticas, mixurucas...
agora chegou a era dos jorros selvagens,
das desrespeitosas erupções vulcânicas!

Corram por suas vidas,
tirem as crianças da sala,
agarrem-se a suas bóias,
refugiem-se em suas arcas,
Pois aí vem meu dilúvio!

Com o coração em fúria,
os cabelos em chamas,
a alma em desalinho,
os punhos em riste,
lábios sangrando de dentadas
e a urgência de um incêndio,
venho para primaverecer
o outono sem folhas de vossas almas!

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MAIO DE 2008
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"Soyez realistes: demandez l'impossible!"
(slogan de Maio de 1968)


Ah, essa minha mania estúpida
De teimar em tentar o impossível!

Mas ah! Vai que eu consigo...

Realizam-se espantosas coisas possíveis
ao se tentar o impossível.

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LUA NOVA
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Meu novo quarto não está voltado para o nascente,
não oferece ao olho a amplidão de um horizonte,
nem tem em frente um aeroporto que me dê lições de partir...

E teimoso me agarro à lua cheia,
como se quisesse impedi-la de minguar.
Não quero aceitar o amor como um ciclo,
com ascensão e queda, apogeu e penhasco.
Queria-o instalado no meu céu escuro
Como uma estrela sempre a brilhar.

Tenho tanta saudade
De todos os futuros
Que nunca aconteceram!

Quero também uma Lua Nova:
saber que ela continua no céu,
mesmo que eu não veja seu rosto,
e que o ciclo continua a girar
e uma nova cheia está a caminho...

Minh'alma é hoje um céu com lua nova:
o astro-rei da noite, que a ilumina e embeleza,
ofuscado, invisível, ensombrecido.

mas não diga que as estrelas estão mortas
só porque o céu está nublado...”
(WADO)


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RELÂMPAGOS
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"Não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?"
(Gustavo Corção)

Ah, a extrema raridade das epifanias!
Os amores que só vêm aos relâmpagos
Num temporal de madrugada
Iluminando o horizonte todo negro só por flashes
Súbitos, esparsos, seguidos por estrondo e terremoto.

Instantes de alumbramento, sim,
Mas que são sempre só instantes...
Tolo fui ao pedir que o amor despencasse
Com a constância de uma cachoeira.
Dele só conheço o relampejar.

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LIXO HOSPITALAR
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“Vinda a paz, rosa-após dos terremotos,
eu mesmo juntarei a estrela ou pedra
que de mim reste sob os meus escombros.”

(FERREIRA GULLAR)



O amor, substância fina
e tão difícil de fabricar,
criação mais rara e radiante
do coração em seu penar,
por vezes é filho bastardo
que o deus-mundo
manda sacrificar.

Ah, o coração, justo em seu
ápice de glória e brilhar,
justo quando cria asas, pega fogo,
lança pétalas, a borboletear,
vê a vida vindo, cruel cirurgiã, com bisturi firme,
que, sem ter mesmo o cuidado de anestesiar,
vem de si esse filho amputar.

Não tendo encontrado em
outro coração um porto, um lar,
Agora jaz, coberto de sangue fresco,
num saco de lixo hospitalar.

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BAD MATH
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Todo dia, democrático,
oferece seu palco cósmico por igual
aos seus dois atores principais
que abrem e fecham atos.

Há uma só aurora e
há um só crepúsculo.

Mas na matemática torta da minha alma,
a soma aritmética mais fácil se corrói
no incêndio do sentimento...
E concluo uma adição grotesca,
ditada pela melancolia:

Nessa vida mais sóis se puseram do que nasceram.

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TIRANO
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“when i am king, you will be first against the wall.”
(radiohead)

Declaro abolida a sensaboria do ser!
De agora em diante, é obrigatório que tudo tenha sabor.
Mesmo que seja amargo, de cinzas, de menstruação,
que dá engulhos, que chama a ânsia por escovar a língua...
A insipidez está fora da lei!

Proclamo proibida a inofensividade das coisas!
Tudo há de ferir, comover, espantar, chocar,
colidir conosco
como um trem desgovernado
em quem não tem escudos.

Que a vida se sinta vivente!
Que a carne se saiba pulsante!
Que o coração se reconheça batente!
E que o instante se ostente fugaz
Como que orgulhoso de uma grande qualidade.

Descubro, bombástico, a invalidade da lei da inércia!
Tudo há de escalar os degraus
rumo a velocidades sempre mais altas.
Tudo há de escarnecer
dos poderes do atrito do ar.
Tudo há de mover-se sempre,
nunca se rendendo
à indignidade da imobilidade.

Decreto-me rei de mim!

:: younger than yesterday ::


"...from the womb to the tomb, i guess i'll always be a child..."
(devendra banhart)

=)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

:: Tio Bill - relato de leitura ::


O BEIJO DO FOGO E DA PÓLVORA
- analisando Romeu e Julieta -


Confesso ruborizado: nunca tinha lido. Apesar de idolatrar Shakespeare, que deve mesmo ser o maiorial entre todos os escritores que já vieram a este mundo cheio de som e fúria, eu me abstive de ler Romeu e Julieta e me dediquei mais à leitura de outras tragédias – Hamlet, Otelo, Macbeth... - e aos estupendos e magníficos e (adicione aqui o adjetivo bombástico que se empresta à beleza suprema de seu gosto!) Sonetos. É que Romeu e Julieta é um casalzinho tão pop, tão hype, tão na-boca-do-povo, um clichê tão disseminado, um mito cultural tão entranhado em nossas mentes, que quase todo mundo acha que sabe de cor do que se trata e nem pensa que vale a pena voltar à sua fonte original, o texto shakespeariano, que é (nenhuma surpresa!) magistral. Voltei à nascente, pois, um pouco pra me livrar da vergonha de nunca ter lido algo tão obrigatório, e um pouco pra tentar sacar onde está tamanho poder de sedução nesta história sanguinolenta e de desfecho macabro de Julieta Capuleto e Romeu Montecchio, um dos diamantes mais imortais da literatura universal. E aí vão algumas digressões:

* * * * *

FOGO CONTRA FOGO!

A primeira coisa que me chamou a atenção, e que as pessoas raramente se lembrar de notar, é que Romeu já começa a peça soturno e macambúzio pois está apaixonado por uma certa Rosalinda, moça que não corresponde a seus ardores. O pequeno Montecchio, desinteressado dos descalabros marciais que ocupam o tempo de seus parentes que guerreiam os Capuletos, é visto a perambular sozinho nos bosques, desconsolado. “Muitas manhãs já foi ele encontrado, aumentando com lágrimas o fresco orvalho matutino e acrescentando novas nuvens às nuvens com seus profundos suspiros...”. Indiferente aos assuntos dos adultos, só têm olhos para seu amor e sua dor – e conta-se que frequentemente “se aprisiona em seu quarto, fecha as janelas, expulsa o belo dia e para si faz uma noite artificial”.

É importante frisar isso: que Romeu já era um mocinho “apaixonável” bem antes de se encontrar com Julieta, já com predisposições aos amores platônicos e dramáticos, com alma de poeta e uma certa atração pelo masoquismo. Da mesma maneira que, como dizia Sêneca, “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”, também nenhuma paixão toma conta de alguém que não se tenha predisposto a na paixão cair. Há pessoas que não se apaixonam jamais: parecem ter o coração congelado. Há outras que se apaixonam todo o tempo e estão sempre cantando, como Jeff Tweedy: “I'm worried, I'm worried, I'm always in love...”. Romeu é do segundo tipo.

“Que o amor, cuja vista é sempre vendada, encontre, sem os olhos, caminho franco para sua vontade!" - grita um ardoroso Romeu no começo da peça, mas não é para Julieta, é para Rosalinda... E suas digressões demenciais e poéticas sobre o amor também são todas motivadas por Rosalinda:
“Oh! Informe caos de sedutoras formas! Plumas de chumbo, fumaça luminosa, flama gelada, saúde enferma, sono em perpétua vigília, que não é o que é! Tal é o amor que sinto, sem sentir em tal amor, amor nenhum. Não ris?” (...) “O amor é fumaça formada pelos vapores dos suspiros. Purificado, é um fogo chispeante nos olhos dos amantes. Contrariado, um mar alimentado pelas lágrimas dos amantes. Que mais ainda? Loucura prudentíssima, fel que nos abafa, doçura que nos salva...”

É nesse infeliz estado que Romeuzinho se encontra no começo da peça: na posição do apaixonado não-correspondido que sofre pois vê que sua amada “não se deixa atingir pela seta de Cupido” e que, “protegida por uma castidade bem armada, vive fora do alcance do infantil e débil arco do amor”. Seu amigo Benvólio só lhe recomenda que vá ao baile dos Capuletos, onde ele é persona non grata, a fim de “examinar outras belezas” e achar um ídolo de substituição para o mau ídolo feminil que o prendia à tamanha desolação. Pois no chiquérrimo castelo dos Capuletos, algumas das maiores beldades de Verona desfilariam - “prepara-te para contemplar estrelas que pisam a terra, eclipsando a luz do céu”... - e não era nada impossível que Romeu, garoto que cai fácil em encantamento, se deixasse fisgar por alguma outra divindade celestial em visita às baixas esferas...

Falando por experiência própria: poucas ocasiões são mais propícias a um encantamento amoroso do que estar sofrendo por causa de um amor não correspondido, por causa de um desejo que entrou num beco-sem-saída, com o coração endoidecido por essa cisão entre um ardente desejo de amar e a incapacidade de dar esse amor porque a porta da eleita está fechada. Neste estado de espírito, não é incomum que corramos a bater em outra porta! “Um fogo apaga outro fogo!”, diz a Romeu o amigo Benvólio. E uma frase dessas, tão absurda segundo a lógica natural, tão contrária às leis da física, é a mais pura verdade nos assuntos do coração. Shakespeare sabia das coisas. O amigo de Romeu receita uma estranha medicina para seu mal de paixão: adquirir uma “nova infecção”!

Pois bem, então não é Julieta sozinha que faz mágica no coração de Romeu, que traz de volta dos mortos o coração frio de Romeu (ele sempre foi fervente!), que insufla vida à apatia de Romeu (ele nunca foi apático!) – não! Julieta não é o estopim de uma extrema revolução espiritual em Romeu, como se ele passassse súbito de um estado de indiferença e gelidez a um estado de inflamado desejo e ardor. Não! Ele já vai ao baile (onde verá Julieta pela primeira vez) completamente intoxicado de paixão (mas por Rosalina!), e Julieta aparece como uma substituta em quem ele pode atirar as flechas de fogo que ele já trazia tensionadas em seu arco. Julieta é um fogo que apaga outro fogo. Em termos freudianos, daria até pra dizer: uma libido incendiada sofreu uma mera migração súbita de um objeto a outro. Julieta não molha com álcool o coração de Romeu e o acende com um fósforo:
ele já chega em chamas!

* * * * *


ALUMBRAMENTO



Romeu fazia de sua visão um sentido digno de culto: se deixaria convencer a qualquer coisa se assim quisesse a “sacrossanta religião de seus olhos”. Seu encantamento por Julieta é, antes de tudo, visual – não uma sensação de intimidade, de proximidade espiritual, de personalidades compatíveis, de partilha alegre de sentimentos, elementos que constituem amores bem mais sólidos. Antes mesmo de falar com ela, cegado pelo furor da ilusão, ele já está inventando mil qualidades para aquela pessoa que não conhece. Antes mesmo de ir checar se aquela mocinha tão linda era uma pessoa interessante ou uma bestinha fútil qualquer, ele já está se derretendo todo:

“Oh! Ela deve ensinar às tochas a brilharem esplendidamente! Dir-se-ia que pende da face da noite como rica jóia da orelha de um etíope! Beleza riquíssima para ser usada e cara demais para a terra! Como nívea pomba entre corvos, assim aparece aquela dama no meio de suas companheiras... Porventura meu coração amou até agora? Jurai que não, meus olhos! Porque até esta noite jamais conheci a verdadeira beleza...”

A paixão de Romeu ascende como um foguete, rápida e explosiva, e poucos momentos depois de ter visto a moçoila pela primeira vez ele já está pulando muros da casa alheia (“com as leves asas do amor transpus estes muros, porque os limites de pedra não servem de empecilho para o amor...”), arriscando a ter o pescoço montecchiano degolado por alguma capuletice furiosa, só para ficar observando de longe sua bambina na sacada:

“Duas das mais resplandecentes estrelas de todo o céu, tendo alguma ocupação, suplicaram aos olhos dela que brilhassem em suas esferas até que elas voltassem. Que aconteceria se os olhos dela estivessem no firmamento e as estrelas na cabeça? O fulgor de suas faces envergonharia aquelas estrelas, com a luz do dia a de uma lâmpada! Seus olhos lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que cantariam as aves acreditando chegada a aurora!... Olhai como apóia o rosto na mão! Oh! Fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar naquele rosto!”

Romeu, que chega no baile encantado por uma, sai dele encantado por outra - “jaz o antigo desejo em seu leito de morte e uma nova paixão aspira a ser herdeira”. E tudo por causa do “feitiço dos olhares”.

Julieta, por sua vez, é praticamente uma pré-adolescente (14 aninhos!), uma moçoila onde se mistura a ingenuidade romântica de uma criança, daquelas que ainda não foi ferida pela vida, com o furor rebelde de uma adolescente que começa a desabrochar. Eu imagino Julieta Capuleto como uma daquelas garotinhas magricelas e pálidas, insuportavelmente mimadinha por seus papis ricos, educada na gaiolinha de rigores morais extremos, com “lábios constantemente ruborizados pelo puro e virginal pudor”. Enfim: o tipo de criatura extremamente inocente, ignorante e infantil que encanta por parecer tão pura e meiga, mas que vive num estado de completa alienação da realidade. Só mesmo um coração que nunca antes se quebrou conseguiria se entregar com tamanho abandono a um sentimento intenso como este.

Que tais encantamentos aconteçam de verdade, não há dúvida, e ninguém poderia acusar Shakespeare de ter sido inverossímil. Sim, as pessoas se apaixonam à primeira vista; constroem imensos castelos de fantasia logo depois de terem visto um ser pela primeira vez; deixam seus corações explodirem de repente do modo mais insensato; mas todo mundo que tem um bocadinho de experiência de vida bem sabe o quão frágil é esse laço que une duas pessoas que mal se conhecem e que loucamente decidem que estão apaixonadas. Todo mundo sabe, no fundo, que isso não é amor: é um delírio, em que cada um ama não uma pessoa de real, mas uma imagem fabricada e idealizada que não tem correspondente algum na realidade. Cada um ama só um sonho seu.

Julieta, com toda a inocência de seus 14 anos de idade, e que admite ser “muito apaixonável”, também se inflama pelo proibido Capuleto poucos instantes depois de vê-lo pela primeira vez, sem saber nada sobre a personalidade dele e na completa cegueira sobre as possibilidades que os gênios dos dois teriam de se harmonizar bem. Cedo demais ela já fez dele um ídolo (“tua graciosa pessoa é o deus da minha idolatria”). Cedo demais já está doidinha pensando em casamento e exigindo juras de amor eterno (“não jures pela Lua, a inconstante Lua que muda todos os meses em sua órbita circular, a fim de que teu amor não se mostre igualmente variável...”). O único empecilho grave no caminho dos dois são os nomes de família que carregam – e que ela, Julieta, numa frase clássica, está determinada a não levar em consideração: “o que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o mesmo perfume tão agradável...”. Romeu Montecchio, com outro nome, seria ainda Romeu.

Mas que há muita beleza poética nas declarações que os dois se fazem, não há dúvida – que bonitinho é Julieta dizendo, para incentivar Romeu a se ir embora (difícil é a despedida dos apaixonados!): “se você fosse meu pássaro, eu te mataria por excesso de carinhos”. Uma boniteza só é ela dizendo do amor outra frase imortal: “quanto mais te dou, mais tenho”. E as metáforas shakespearianas postas na boca de sua personagem, apesar de melosas, são todas encantadoras:

“Quisera que partisses, mas que não fosses mais longe do que o pássaro que uma criança travessa solta, deixando que brinque um pouco, como pobre prisioneiro preso aos seus grilhões, e, com um fio de seda, o atrai para si outra vez, amorosamente ciumento de sua liberdade...”

É dela, também, a magnífica empolgação lírica que faz do amor algo tão intenso que chega ao inefável (que palavras para descrevê-lo?), tão valoroso que não se pode mensurá-lo (quantos séculos para contar fortuna tão gigante?):

“O sentimento, mais rico em matéria do que em palavra, se glorifica de sua substância e não de seu ornamento. Só os mendigos podem contar suas riquezas. Meu verdadeiro amor cresceu até o excesso, de tal modo que não mais posso somar a metade de meu tesouro.”

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O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA




“...o amor corre para o amor, como os escolares fogem dos livros; mas o amor se afasta do amor, como as crianças se dirigem para a escola com olhos entristecidos...” - ROMEU

Mas, como todos sabem, este é um amor que nasce “sob adversa estrela”, desde o começo condenado ao fracasso, protótipo de todas as paixões que são barradas por impedimentos maiores. A guerra cruel e sangrenta entre os Montecchios e Capuletos, que constitui quase uma guerra civil em Verona, exigindo até mesmo a intervenção do Príncipe, que faz ameaças de castigos extremados caso as duas famílias não parem de se agredir, torna o caso de amor entre a pequena Capuleta e seu amado Montechio uma impossibilidade. Os arredores que cercam essa história de amor são sombrios: é como se Romeu e Julieta tentassem encenar uma paixão sobre um solo escorregadio demais devido ao excesso de sangue derramado por seus parentes, que “apagam o fogo de seus furores insensatos com purpúreas torrentes que brotam de suas veias”.

É um procedimento comum das crianças: quando perguntamos qual brinquedo elas querem que a gente compre, elas quase sempre querem aquele que não podem ter. E, como a paixão está sempre recheada de infantilidade, quase sempre segue o mesmo mandamento: e frequentemente queremos justamente quem não podemos ter. Do mesmo modo que a gente, quando criança, sente ímpetos libidinosos muito mais furiosos quando somos proibidos de assistir filme pornô ou comprar Playboy, também o amor se inflama quando é proibido, difícil, cheio de obstáculos. Romeu e Julieta, como Tristão e Isolda, não é exatamente uma história de amor: é a história de trágicas e mau-sucedidas tentativas de concretizar um amor que nunca se torna de fato real. São histórias sobre a perseguição de um sonho de amor que está sempre no fim do túnel, mas para se chegar até ele mil monstros e adversidades precisarão ser enfrentados, nem sempre com o desenlace mais feliz.

Romeu e Julieta, por mais que seja uma das histórias mais clássicas da literatura universal, daqueles que atingiu status mítico, e prova inconteste de que Shakespeare era mesmo dos maiores gênios da humanidade, não deve ser lido como um Evangelho – e não devemos deixar esse livro tão poderoso e persuasivo nos inundar de ilusões. Seria ilusão pensar que essa paixão louca e alucinada entre essas duas crianças seja algo que merece o nome de “verdadeiro amor” - não! De jeito nenhum! Os dois pirralhos mal se conheciam, tiveram pouquíssimos momentos de união ou de intimidade (corporal ou espiritual), não partilharam muita coisa (memórias, idéias, pensamentos, momentos...), não tiveram uma longa história juntos – nada disso.

Dá até pra dizer que o estado psicológico desses dois pombinhos era grave, merecendo ambos, se vivessem em tempos mais cultivados, uma consulta ao psicoterapeuta. Hoje em dia, nós, de um século ao mesmo tempo tão avançado, tão cínico e tão superficial quanto este 21, vemos com outros olhos essas paixões. Ao ouvirmos alguém dizer “ó, não consigo viver sem ela! Vou me apunhalar se não pudermos ficar juntos!”, dificilmente dizemos “Que bonitinho!”. É mais provável que digamos: “Xi, esse aí tá louco... interna! Chama a carrocinha do hospício! Liga correndo pro psicólogo!”

Nós, que não nos sentimos mais capazes desses intensos transbordamentos de paixão, nesses tempos ultra-liberais onde todo mundo beija e trepa adoidado mas quase ninguém se ama, vemos com uma certa desconfiança e arrogante superioridade a história desses dois ingênuos. O que para séculos passados podia parecer a expressão suprema duma “paixão avassaladora” hoje parece simplesmente um exemplo literário de “personalidades patologicamente predispostas à dependência emocional”. Romeu e Julieta nada tem de admiráveis, para o olhar clínico e frio de um psicanalista demolidor de ilusões (como é, opr exemplo, o Flávio Gikovate em "Uma Nova Visão do Amor"): não só não devemos imitá-los, como é ultra-recomendável fugir desse estado de extrema infantilidade, dependência e falta de maturidade que caracteriza esses dois louquinhos...

Pois a paixão de Romeu e Julieta não é daquelas que plenifica, que acalma, que traz bem-estar, que deixa em estado de graças... não! É uma paixão que dilacera, que causa insônia, que atormenta, que inquieta, que machuca, que dói muito mais do que sara. É o tipo de paixão que não foi feita para durar. Primeiro, pois há mesmo uma linha tênue entre a paixão e o ódio – e Julieta é testemunha disso, já que a primeira reação que ela tem ao saber que Romeu atacou e matou um Capuleto é de ferocidade:

“Oh, coração de serpente, oculto debaixo de um semblante de flores! (...) Cordeiro com entranhas de lobo! Desprezível substância da mais celestial aparência! (...) Oh! Natureza! Que tinhas a fazer no fundo do inferno, quando alojaste a alma de um demônio no paraíso mortal de corpo tão belo? Qual foi o livro que algum dia conteve matéria de tal modo vil, tão ricamente encadernado? Semelhante mentira pode habitar um palácio tão maravilhoso?”

E depois desses ataques de furor, inconstante como toda mulher apaixonada, ela já está de novo se derretendo de paixão, chorando torrentes ao ver Romeu desterrado, arquitetando seu próprio suicídio ao notar que dificilmente poderia escapar do casamento que os pais lhe arranjavam com alguém mais conveniente aos Capuletos...

Também por isso Romeu & Julieta é o tipo de história um tanto datada, que só poderia acontecer em tempos históricos onde ainda vigorava o casamento por interesse e a humanidade achava normalíssimo que duas pessoas tivessem matrimônio arranjado pelos pais, sem nenhum afeto envolvido. O casamento por amor, é bem sabido, é uma invenção bem recente na história. E nada impede que na personalidade de Julieta tenha entrado um certo elemento de rebelião feroz contra esse sistema social e a imposição que os pais faziam de um noivo à donzela. Na peça, Shakespeare carrega pesadamente nas tintas com que descreve a tirania do papai Capuleto. Quando o paizão fica sabendo que Julieta não vê com bons olhos o casamento com Páris, ele tem um ataque psicótico daqueles:

“...te levarei à igreja arrastada numa carreta! Fora da minha presença, carcaça doentia! Fora daqui, libertina! Cara sebenta! Enforca-te! Criatura desobediente! Ouve o que te digo: ou vais à igreja na quinta-feira, ou jamais me olhes em face! (...) Deus só nos havia enviado esta única filha, mas, agora, vejo que esta única é demais e que nós a tivemos para nossa maldição. Sai de minha vista, ordinária! (...) Agora que lhe havíamos conseguido um gentil-homem de família principesca, cheio de riqueza, jovem, educado com o maior esmero, recheado, como dizem, de belas qualidades; um homem, enfim, como alguém pudera desejar, vem esta miserável e estúpida chorona, esta boneca gemedora, quando lhe sorri a fortuna, exclamar por toda resposta: “Não quero casar”. (...) Em minha casa não porás mais os pés! (...) enforca-te, mendiga, consome-te de fome e miséria, morre no meio da rua. Por minha alma, nunca te reconhecerei e nada que me pertence jamais te pertencerá!”

Quando Julieta se suicida, parece ser, além da manifestação súbita do terror de ver o seu amado perdido pela sempre, vencido pelo veneno, também um modo de punir os próprios pais pela tirânica imposição de um casamento que ela não queria. Quantas Julietas de verdade não devem ter existido história afora, que se lançaram ao túmulo só para fugir à cadeia em que os pais queriam lhe meter!

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PAIXÃO E MORTE


A Marina Colasanti, brilhante como sempre, comenta:

“Não haveria de ser por puro sadismo dos escritores que tantos venenos, tantos punhais, tantas tuberculoses encerraram para sempre a carreira amorosa de nossos mais românticos heróis. Nem a morte foi posta ali porque o autor não sabia como acabar a história. Mas sim porque ela representa o supremo encontro, o mais insuperável dos orgasmos. (...) Ela serve também para estabelecer a eternidade do amor. (...) Como preservar para o leitor a beleza estética desse amor, obrigando-o a acompanhar os pouco edificantes achaques da velhice, a doença, até a morte? Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas. Ao autor, portanto, não restava outro recurso de narrativa senão o de matar seus protagonistas no auge do amor, no momento mesmo do reencontro com que culminava a vitória sobre o obstáculo. Era a morte em pleno momento de beleza, cristalizando essa beleza para a eternidade...”

Não sei ao certo se Shakespeare concordaria com esses ditos, mas eles são instigantes. Em Romeu e Julieta, a morte serve mesmo para “estabelecer a eternidade do amor”, como diz a Marina, ou a morte é muito mais uma prova de que essa paixão dos dois não tem absolutamente nada de eterna e que viveu sempre sob o signo da efemeridade e da adversidade? Como recurso literário, a morte dos pombinhos é de fato uma ótima pedida para fixar na mente do leitor a imagem de uma paixão arrebatadora, que sobe como um foguete e explode no ar como um fogo de artifício, sem ser necessário que o escritor, pelo bem do realismo, descreva tudo o que há de pouco espetacular e grotesco nas relações amorosas reais. No livro de Shakespeare, os detalhes menos edificantes de uma história amorosa são omitidos e não dá tempo da gente saber mais sobre a relação da pequena Capuleto e seu amado Montecchio. De fato, como diz a Marina, “Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas”. E Shakespeare, gênio do tamanho que era, certamente sabia disso.

Uma boa idéia para um humorista desilusionista seria escrever uma peça sarcástica chamada Romeu e Julieta Depois do Casamento – mais ou menos no molde do filme francês simpático e altamente corrosivo Branca de Neve Depois do Casamento. Romeu se casa com Julieta, e aí? Continua fazendo as declarações de amor lindíssimas que ele fazia, mesmo depois de descobrir as pequenas manias aporrinhantes da esposa no dia-a-dia? Continua a compará-la a um anjo celeste ao descobrir o bafo de onça que ela tem ao acordar de manhã? Continua a idolatrá-la como uma divindade mesmo nos dias de T.P.M.? E ela, amaria tanto o seu maridão ao lavar suas cuecas sujas ou ao ouvi-lo berrar frente ao jogo de futebol, bêbado e fedorento? Bem provável que não. O que não quer dizer que devemos saltar para a conclusão fácil de que “o casamento é o túmulo do amor”. Que haja casamentos com amor, apesar de raríssimos, até acredito. Mas neles as pessoas se amam com um amor bem diferente do de Romeu e Julieta, muito mais pé-no-chão, muito mais realista, e que talvez seja muito mais heróico e mais belo do que a dessas loucas crianças shakespearianas.

Frei Lourenço, um dos poucos personagens moderados e sensatos da peça, diz a frase perfeita como epitáfio para esta, a mais triste história que já houve, de Romeu e Julieta:
“Esses transportes violentos têm um fim igualmente violento e morrem em pleno triunfo, como o fogo e a pólvora que, ao se beijarem, se consomem.”

sábado, 24 de maio de 2008

quinta-feira, 22 de maio de 2008

:: escuta o teu ouro de dentro ::


Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.


Ela sabia: loucura é excesso de lucidez. E poucos poetas com quem já me encontrei abriram um olhar tão lúcido e tão devorador para engolir a vida, mesmo que crua e mau-passada, para depois vomitá-la aos jorros em mais de 40 livros que poucos leram, poucos entenderam, mas que estão entre as coisas mais fascinantes, potentes e maravilhosas da literatura brasileira.

Ah, a Hilda Hilst: a doida, a obscena, a pornográfica, a incendiária, a subversiva, a porra-louca, a enfant terrible da poesia brasileira, já foi a minha escritora predileta. Passei minha adolescência devorando aqueles livros maluquíssimos dela, mais assustadores que qualquer filme de terror, onde pareciam se esconder mistérios muito profundos, cuspidos caoticamente por uma profetisa que caiu no caos com o peso do que descobriu...

Eu entendia quem dizia dos livros dela: "li e não entendi porra nenhuma". Eu também entendia pouco, mas com ela entendi pela primeira vez que entender não era tudo, e que em matéria de arte talvez nem fosse o mais importante. Eu sentia Hilda Hilst, viajava com ela, me comovia com ela: eu me perdia na perdição dela, me confundia na confusão dela, me angustiava na angústia dela, me fascinava no fascínio dela... E gargalhava gargalhadas fatais quando ela fazia de suas piadas diabólicas, que só quem tem o humor bem negro consegue entender.

Hilda Hilst é todo um universo a ser explorado: uma escritora que faz gargalhar, que faz gritar, que faz pensar sobre as coisas mais fundas, que faz sentir os afetos mais extremos, que faz enlouquecer, que dá vertigens, que inflama paixões... Hilda Hilst tem cheiro de cemitério e de carnaval, tem gosto de cinzas, de carne e de nuvens, tem a alma de uma criança sapeca misturada com a de uma vovózinha que ninguém consegue decidir se é genial ou biruta... Hilda Hilst mistura o mergulho espiritual de uma santa com a entrega à devassidão de uma puta. Um ser humano complexíssimo, de mil rostos, toda estilhaçada, que se revoltou contra a visão da mulher como buraco e, como fez a Clarice do jeito dela, mostrou-se ao mundo como um monstro mítico-poético colorido e de funduras inimagináveis!

Uma daquelas almas que parece incapaz de fazer algo a não ser de modo intenso e urgente. Que queima sempre em altas temperaturas. Que não conhece medidas ou fronteiras. Que não concebe territórios ou assuntos proibidos. Livre como só os loucos conseguem ser.

Uma escritora que soube ouvir o ouro de dentro, sem interesse algum pelo de fora (fool's gold!), mas que encontrou também em suas peregrinações pelo espaço interior muita sombra, muita devastação, muita depravação. Essa astronauta do mundo subjetivo esteve em todas as planícies e planaltos da alma, no cume de todas as paixões e todas as angústias, e não cessou nunca de tentar traduzir em palavras toda a galáxia interior riquíssima em criaturas, fantasias, medos e fascínios que tinha. Que era. O que já disseram de William Burroughs pode ser dito dela: ela foi um dos poucos seres humanos que esteve no Inferno e voltou viva para contar o que viu. E trouxe boas notícias misturadas às chamas e à cinza!

Hilda é a poetisa que não teve medo do escândalo e se fez "pornográfica", como uma dessas doidas de hospício que só falam em "cu", "caralho", "buceta" e "puta que o pariu" - não como mera traquinagem (ok, talvez um pouco...!), mas muito mais como um protesto contra a criação. Uma traquinagem contra o Pai lá de cima, esse Canalha Incompreensível, Sempre Silente, Sempre Distante, que nos fez assim: carne que apodrece, com cu que caga - de revoltar! Pois o cu é um "demolidor de vaidades", dizia ela, e essa "ceifadora de ilusões" não estava no mundo para nos envaidecer... Se ela deu escândalo, foi por ter percebido o quão escandoloso é de fato isso: todos nós, seres tão sublimes, elevados, fenomenais, somos matéria perecível dotada de cu e incapazes de passar pelo mundo sem sujá-lo.

A loucura dessa extrema-lúcida é mero efeito colateral de abrir os olhos para a Morte, e mantê-los abertos, encarando, como frente a uma esfinge - o que quase ninguém dentre nós é capaz de fazer.


Por que me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
de tudo o que vejo.

Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana idéia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.

* * * * * *

Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?



Adoro gente louca. E ainda mais os loucos que me convertem à loucura deles. Que me fazem ver o que eu antes julgava "normalidade" como doença, como banalidade, como mera decorrência de se ser animal de rebanho. Brinquemos de enlouquecer de vez! de expansões líricas decapitadas! de fluxos de consciência que não se acabam! de escrever sóbrios coisas mais insanas do que qualquer drogado consegueria! de espalhar a ebriedade que temos em simplesmente estarmos vivos e espantados com isso de estarmos, nós e tudo, aqui! Estilhacemos nossas próprias fronteiras! Alimentemos nossas mais excêntricas loucuras! Jorremos alma afora com vômitos divinos de obscena lucidez!

Hilda Hilst... amo essa doida.

* * * * * *

E isso aqui é fódimais:

"...por que será que todas as coisas ligadas à santidade são necessariamente ligadas ao sofrimento? Por que é preciso flagelar-se, jejuar, maltratar o corpo, mutilar-se, dar todos os bens, ser um pária na vida? Por que os humanos inventaram um deus ou deuses sempre ameaçadores, ávidos por sangue e martírio, as bochechas inchadas de tanto triturar a carne das criaturas? O conceito de martírio, holocausto, sofrimento para dar prazer a um deus é para mim inaceitável. O que pensar dos neurônios de Isaac entendendo que era para pôr o filho na fogueira? Todos esses supostos diálogos dos humanos com um suposto deus me lembram a Telesp em dias de chuva, você chamou Londres e te dão Carapicuíba ou Cururu-Mirim. Ninguém entendeu nada até agora (como na microfísica) e os humanos têm mesmo, segundo a Ciência, muitos parafusos soltos entre o neocórtex e o hipotálamo. Não me conformo também com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Para nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranóicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: "sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar". Até parece historinha sadô: "me bate, amor, me corte de gilete, me põe o armário em cima". Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não."

p.s.: post escrito depois (e ainda sob o efeito...) da peça fodaça "Noviciado da Paixão", que vi lá na Mostra de Contracultura do SESC Pompéia. Recomendo pra caralho. Dia 23 é a última chance de ver! Corram.

:: serviço público ::


Mostra do SESC revela várias facetas da contra-cultura


A contracultura ataca em diversass frentes na mostra “Vida Louca, Vida Intensa – Uma Viagem Pela Contracultura”, organizada pelo SESC Pompéia e em cartaz até 22 de junho. Através de filmes, seminários, shows, exposições e instalações, o evento busca oferecer um panorama minucioso da produção cultural que se notabilizou por ir contra a maré oficial, questionando valores e propondo filosofias de vida alternativas. Através desta mostra, o visitante pode se inteirar sobre o que marcou época na estética dos beatniks, hippies, punks, psicódelicos e cyberpunks, dentre outros protagonistas desta trama de contra-ataque à cultura legitimada.

Dentre os destaques do evento, estão o show com o grupo suíco do rock eletrônico The Young Gods, homenagens a poetas como Baudelaire e William Blake e uma vasta exposição de capas de discos, pôsteres de show e fotografias que dão destaque às imagens que marcaram a década do flower power, de Woodstock e de Maio de 68.

Quanto às pérolas cinematográficas, há clássicos que influenciaram a juventude sessentista (como Easy Rider – Sem Destino) convivendo lado a lado com obras protagonizadas por figuras cult do punk (caso de Sid Vicious, que tem sua vida biografada em “Sid & Nancy”), das HQs (como “Fritz The Cat”), das artes plásticas (caso de Andy Warhol, que tem alguns de seus filmes exibidos), além de documentários que analisam o movimento hippie, a onda psicodélica e o LSD, entre outros temas relacionados.

Variada e abrangente, a mostra é uma essencial jornada através de vários modos de ser culturalmente do contra.

Mais: matéria do Metrópolis e programação detalhada no site oficial do SESC. Informações úteis: SESC POMPÉIA - Rua Clélia, 93 - Pompéia - São Paulo/SP - Telefone: (11) 3871-7700 - 16/04 a 22/06/08, terça a sexta, das 10h às 21h, domingos e feriados, das 10h às 20h. Recomendação etária: livre. Entrada gratuita.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

sábado, 17 de maio de 2008

:: o ofertório dos espinhos ::


Mais da Marina, autora prediletíssima dos últimos tempos.


“O amor absoluto. Ao falarmos de amor, sem especificações, é sempre a ele que nos referimos, o grande, tão grande que às vezes reforçamos nosso sentimento chamando-o de amor com A maiúsculo. E é por ele que esperamos.

Mas existe mesmo esse amor, tão total, tão avassalador, tão completo? Ou nós o inventamos, instituindo talvez a exceção como regra?

De um lado a vida. Do outro a morte. Imprensada entre dois acontecimentos inegavelmente absolutos, decorre a vida do ser humano. E para ela, assim que começamos a formular nossos medos, foi necessário encontrar uma justificativa. Por que éramos jogados na vida, sem qualquer participação voluntária, e dela éramos retirados contra nosso desejo? A razão deveria ser forte, tão forte quanto nascer e morrer, pois só assim os justificaria. E a única que nos pareceu qualificada foi o amor. Era através do amor que a vida se gerava, e era gerando outras vidas que nos iludíamos de vencer a morte. O amor era portanto o único elemento que podíamos considerar como participante direto dos dois pólos fundamentais. Daí a instituirmos o amor como absoluto deve ter sido um passo, e um passo lógico, que vinha, aparentemente, solucionar nosso mais grave problema.

Exigir que percebêssemos estar criando outro, quase tão grave quanto aquele do qual fugíamos, é pretender demais, sobretudo num processo que obviamente não foi tão linear nem tão consciente quanto aqui o traçamos.

E criado o amor absoluto, tivemos que viver com ele.”

* * * *

“No início do amor falamos exaustivamente. Queremos nos explicar, contar o passado, mostrar os retratos de infância, as coisas mais preciosas que temos, entregar nossos pequenos tesouros. Queremos, em poucas horas, preencher com a presença do amado aqueles anos todos em que não o conhecíamos e que de repente, sem a sua presença, correm o risco de perder o sentido.

Falamos, atropelando com nossas palavras as palavras dele, para queimar etapas e chegar logo ao conhecimento recíproco que nos permitirá a paz. Mas a ânsia de chegar pode nos levar a equívocos.

O outro fala, explica, mostra. Achamos que o conhecemos cada vez mais. E chega um ponto em que temos a impressão de realmente conhecê-lo bem. Nesse momento, se o amado corresponde às nossas expectativas, respiramos aliviados. Sabemos quem ele é, podemos nos assentar tranquilamente no amor.

A sensação desse conhecimento é tão boa, tão repousante, que o nosso desejo é 'congelá-la'... Alheio ao nosso congelamento, continua sua trajetória evolutiva, afastando-se progressivamente da imagem dele que conservamos dentro de nós. (...) Nós adoramos a bela fotografia que tiramos dele, enquanto ele espera em vão que olhemos para o seu rosto.”


* * * * *


“Na embriaguez verbal dos primeiros tempos, começamos mostrando somente o que temos de mais bonito. Oferecemos ao outro os miosótis da nossa alma. Mas logo percebemos que só isso não nos basta. Se ele os conhecer todos, ainda assim nos sentiremos desconhecidos, e permaneceremos em extremo perigo. Pois atrás dos miosótis crescem urtigas espinhentas, e é através delas que queremos ser amados. Amar as minhas belezas qualquer um pode, é fácil demais. Mas para amar os meus defeitos é necessária uma pessoa especial, aquela a quem eu também amarei.

Então, com quanto medo, começamos a oferecer os espinhos, um por um. Mostramos o primeiro, esperamos em ânsia para ver a reação. Se tudo correr bem, se o outro não sair desabalado, damos uma descansada cheia de miosótis. Nem sempre é fácil ir adiante, às vezes leva-se muito tempo até o próximo passo. Mas chega um ponto em que nos sentimos obrigados a recomeçar o desnudamento. E o processo é tanto mais doloroso porque temos certeza de que, nus, somos horrendos. Mas é horrendos que queremos ser amados.”

* * * * *

“O amor do outro viabiliza o nosso amor por nós mesmos. Esta é a razão pela qual nos é difícil viver plenamente felizes se estamos conscientemente escondendo do amado os nossos defeitos. Não é o medo de que ele possa vir a nos descobrir e a nos desamar. Esse medo existe, mas é acalmado pela certeza de que podemos controlar os seus passos, nas tentativas em que tenta ampliar seu conhecimento de nós. O que nos impede a felicidade é que, como demonstra o fato de escondê-los, esses defeitos nos parecem abomináveis, suficientes para que ninguém nos ame, suficientes, sobretudo, para que não nos amemos. E sem amar a nós mesmos não há felicidade possível.

Quantas e quantas vezes, presos neste tipo de armadilha, acabamos criando uma situação-limite para obrigar o outro a nos desmascarar e, eventualmente, nos salvar. Assim, embora aparentemente felizes, armamos um sério desencontro, geramos um terremoto na relação, capaz de deixar bem à mostra aqueles defeitos que antes atuavam escondidos. Capaz, sobretudo, de obrigar o outro a nos conhecer realmente, e a estebelecer uma nova escolha que nos inclua como somos, ou nos exclua de todo.

(...) Com defeitos ou qualidades, o conhecimento é a única arma de que dispomos para enfrentar a grande viagem do amor, com esperança de sucesso. É a nossa bússola.”


(Marina Colasanti)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

:: detachable hearts ::


“Pertencemos à geração do descartável, desinventamos o duradouro. À navalha, que durava a vida inteira, preferimos o barbeador que se utiliza só um par de vezes e se joga fora. Trocamos o bom e sóbrio tecido que usaríamos durante anos, pela alucinante cor da moda que durará apenas uma estação. (...) Resistência e boa qualidade tornaram-se palavras sem sentido, o máximo que admitimos é obsolescência planejada. Esse “descartismo” contaminou os sentimentos. Sem, entretanto, mudá-los por completo.

Hoje, quando me apaixono, penso que se acredito no grande amor e se faço sonhos de eternidade sou uma romântica ridícula. Pior que isso, sou uma pessoa incapaz de viver a realidade, de enfrentar a precariedade das relações humanas, de “elaborar as perdas”... Enfim, sou alguém próxima da inadequação, que sem muito esforço poderia ser chamada de neurótica.

Mas se me apaixono e não acredito na possibilidade do grande amor, se já começo pensando no fim, sei que sou uma cínica, uma superficial. Pior que isso, sou uma pessoa incapaz de viver as grandes emoções em toda a sua grandeza, de acreditar na força redentora dos sentimentos, de aceitar o desafio da entrega. Enfim, sou alguém próxima da inadequação, que sem muito esforço poderia ser chamada de neurótica.

Incapaz de resolver a divisão a contento, fico com as duas possibilidades, amo eternamente preparando minha alma para a despedida, e bato no beito culpada por amar de todo, culpada por não amar de todo.”
(Marina Colasanti)

sexta-feira, 9 de maio de 2008

“Para os peixinhos do aquário, quem troca a água é Deus.” (Quintana)

:: DEUS - Bom Demais Pra Ser Verdade ::
- 1º rascunho das minhas "confissões atéias" -

Por muito tempo essa me parecia a mais importante das questões, a mais crucial, a mais visceral: Deus existe? Até hoje acho inimaginável que algum ser humano possa não se interessar por esse problema. Porque a resposta que damos a ele, sempre me pareceu, muda tudo: a filosofia de vida que você vai seguir, o seu sistema de valores, as suas atitudes éticas, toda a sua postura nesse mundo, toda a sua personalidade, todo o seu Destino neste planeta!, depende radicalmente da resposta que você dá a essa questão. E o difícil nesse labirinto de questão espinhosa é a quase impossibilidade de responder com certeza (quer assunto mais controverso na história da raça humana do que a existência ou não das divindades, e qual a natureza delas, e qual a relação delas conosco?) e também a quase impossibilidade de pensar com sangue frio sobre algo tão impregnado de interesses passionais (quer domínio em que o coração e a razão mais se digladiem do que aí?).

Sempre achei, e continuo achando, que a resposta que se dá ao “Deus existe?” (que obviamente possui uma gama muito mais vasta de soluções possíveis do que a mera afirmação ou negação...) põe em jogo todo o Universo. Quando criança eu já achava que os traços principais do Universo ficam risonhos e simpáticos, como uma pintura embelezadora feita por um artista que quer puxar-o-saco de sua modelo, quando a resposta que damos é um "Sim!" convicto e total. Porque se Deus existe, o Cosmos é um lugar organizado, gerido por uma Entidade Bondosa e Protetora, onde o Bem é sempre recompensando e o Mal sempre punido. A Morte é uma mera porta de entrada para a Grande e Deliciosa Festa da Eternidade, onde vamos todos reencontrar as pessoas que amamos e que se foram - e onde gozaremos de Infindáveis Delícias e Absolutamente Nenhum Sofrimento... em suma: se Deus é de verdade, tudo está muito bem, no melhor dos mundos, e Absolutamente Tudo Que Existe está aí unicamente para servir ao Homem e dar Sentido à sua Preciosa Vida, fim e cume de toda a Criação! Uau, quanta glória! Quanta honra! Um Universo grande desses, feito inteirinho para nós, e com um imenso Parque de Diversões do Extremo Deleite nos aguardando no além-túmulo... que história mais gostosa de ouvir!

Quando criança a gente até chega a acreditar nisso tudo, um pouco porque é confortante e gostoso abusar do otimismo e fazê-lo subir até a estratosfera, e um pouco também porque a família, a escola e a sociedade costumam injetar no nosso cérebro indefeso essa crença e exigir obediência a ela. Mas é fácil ver o quanto esse retrato risonho e sentimentalizado do que seria a Realidade, no fundo, é bom demais para ser verdade (pra usar uma expressão popular que eu adoro e acho bem significativa).

Ao crescer, um pouco por motivos biográficos (descritos bem rápido no conto “O Dia Em Que Deus Morreu”), um pouco por matutação prolongada e observação cuidadosa das evidências, cheguei à convicção de que não, Deus não existe. Pelo menos a versão costumeira dele: o Deus cristão, transcendente, onipotente, onisciente, que criou o Homem à sua imagem e semelhança e gere o Universo como um gerente faz com sua fábrica, punindo suas criaturas como um juiz num tribunal e dando prêmios como um Pai ao filho que passou de ano. Esse Deus, para mim, está definitivamente descartado como uma mera lenda 100% irreal. Tirada essa conclusão, porém, restava o problema: e agora, como é que fica a cara do Universo? E agora, como é que fica o viver? Como existir nesse mundo, mesmo que o Céu não exista?

* * * * *

“Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”, diz uma das frases mais famosas da polêmica entre teístas e ateus (presente, por exemplo, no finzinho do filme Easy Rider). Acho essa fórmula magistral por duas razões: primeiro, pois sugere que a humanidade teria uma intensa necessidade psicológica (ou "espiritual", o quê pra mim meio que dá no mesmo...) de Deus e de fé, a ponto de não poder viver sem esse auxílio; segundo, pois nos faz imaginar essa hipótese de um Universo onde Deus não existisse e nos pergunta: teríamos O inventado? A resposta atéia é clara: literalmente, Deus jamais existiu; mas era uma vez um animal ultra-complexo, surgido no planeta Terra após milhões de anos de gradual evolução das espécies, que, num belo dia, angustiado com sua condição, incapaz de compreender o mundo ao seu redor, amedrontado com a morte, resolveu inventá-lo. E Deus passou a existir, mas somente aí: dentro do coração e da imaginação dos homens. Pois esse é um único solo no Universo onde ele jamais pode viver: na fantasia humana.

Que é desejável que Deus exista, não há dúvida. Não tenho vergonha de dizer em alto e bom som que eu sou um ateu que adoraria que Ele existisse! Seria magnífico. Mas o meu desejo, no Universo, não manda nada. Nem o de vocês, desculpa dizer. Nós adoraríamos que Deus existisse, mas também adoraríamos que as pessoas fossem todas sensatas, generosas e justas umas com as outras; que todo mundo se sentisse plenamente amado e justificado; que depois do casamento os pombinhos vivessem felizes para sempre; que no mundo não houvesse fome, sede, epidemias, genocídios; que as guerras parassem de derramar tanto sangue; que terremotos e tsunamis e enchentes não viessem matar as multidões como se fossem formigas; que crianças recém-nascidas não morressem de doença ou pelo azar insignificante de um acidente – e mil coisas mais. Há um milhão de coisas desejáveis que não existem: um milhão de vezes fica provado que nosso desejo, pelo simples fato de ser desejo, não faz nada ser. Até é possível perguntar: não é o homem um louco bicho, de tendência naturalmente utopista, que deseja muito mais o inexistente do que o real?

A coisa é tão óbvia que dá até vergonha de dizê-la: o mundo como desejaríamos que fosse é bem diferente do mundo como ele é. O problema é que pessoas religiosas têm uma dificuldade extrema em desvincular as duas coisas: a ordem subjetiva e a objetiva; seus desejos e a realidade; sua fantasia e o mundo exterior. Por isso a psicanálise freudiana fala da religião – e o termo é magistral – como uma projeção de desejos humanos. Como faz um projetor de cinema, lançando as imagens sobre uma tela, a mente religiosa também projeta na tela da consciência essa caravana de desejos e alucinações que é o filme da vida para um crente... O mundo como gostaríamos que fosse, passando como um filme à frente dos olhos delirantes de um público que se esquece que está frente a frente com uma ficção...

* * * * * *

Deus é o nome de um desejo: enorme, intenso, complexo, dilacerante de tão potente. Mas um desejo só existe dentro de nós. E o objeto de um desejo não é necessariamente real. A força da religião, Freud já dizia, claramente não está em sua “veracidade”, que jamais algum homem conseguiu demonstrar (não há outro motivo para o apelo à fé – no indemonstrável só se pode crer...), mas sim na força dos desejos humanos que a religião foi inventada para satisfazer.

Como diz o Feuerbach, na religião os homens confessam os secretos desejos de seus corações: confessam que não querem que a morte represente o fim absoluto, um vazio sem consciência e sem memória; confessam que não suportam o desamparo e precisam crer num pai protetor e benfeitor que deles cuidará com atenção e ternura; confessam que é terrível demais a idéia de jamais rever os entes amados que faleceram e que querem reencontrá-los quando a estadia neste mundo acabar; confessam que desejam existir num mundo em que haja organização moral: onde o bem é recompensado e o mal é punido; confessam, enfim, a necessidade ardente e extrema que possuem de serem amados, de sentirem-se como criaturas preciosas no esquema das coisas, pois seria doloroso demais se fosse verdade que não valemos nada...

É o desamparo humano, a angústia, a incompreensão, o desejo de segurança, a nostalgia do útero, a necessidade de consolo, o que faz com que, neste mundo onde tudo testemunha a ausência de Deus, os homens tenham sentido a necessidade de inventá-lo e reinventá-lo, de mil maneiras, em mil tempos, com mil diferentes resultados. Parafraseando Marx, a religião é o suspiro da criatura oprimida e angustiada, é a criação de um coração para um mundo sem coração, enfim, para usar a frase clássica: é o ópio do povo (e ópio sendo ao mesmo tempo um símbolo de alucinação e de deleite).

Eu disse agora pouco que “Deus é um desejo”, mas convêm ser mais preciso: Deus é o nome de uma satisfação imaginária criada pela humanidade na tentativa de satisfazer tão fortes desejos da alma humana – que não encontravam solução em lugar algum. Porque a morte é sem remédio, contra terremoto não há escudo e não existe band-aid que cure na hora nossa saudade pelos amados falecidos. Sem falar que existimos no escuro, sem entender de onde saiu esse mundo e qual o sentido das coisas, o que as lendas confortadoras que a religião nos conta ajuda a dissipar, criando uma explicação para tudo que nos retira da angústia da incompreensão.

Por isso, dentre os mais comuns argumentos em prol da religião, está o poder que ela teria para nos consolar do sofrimento e apaziguar nossa angústia existencial. Dizem por aí, por exemplo, que muito ateu que se diz convicto acaba abraçando a religião quando sente-se em perigo de morte ou quando uma pessoa querida, retida na vida por um fio frágil e fácil de se romper, ameaça falecer e não há nada a fazer... “Não existem ateus a bordo de aviões turbulentos”, diz a Erica Jong, brincando. Mas é sério: quando o avião parece estar caindo, até os ateus mais convictos se sentem tentados a rezar...

Mas, eis o ponto importante, uma doutrina ser eficaz no tratamento psicoterapêutico da angústia não quer dizer que ela seja verdadeira. A triste verdade é que os seres humanos, em geral, não se importam muito com a verdade: o bem-estar conta mais. Entre uma mentira adorável e doce e uma verdade cruel, eles sempre preferem abraçar a confortável ilusão...

Um conto-de-fadas também ajuda a criança a se aquietar e a pegar no sono, mas sua utilidade prática não diz nada sobre ele ser uma representação adequada da realidade (o que ele não pretende ser). O revoltante na religião é que ela não se admite jamais como uma invenção humana com intenção “psicoterapêutica” (ou, em termos mais teológicos, um remédio para os males da alma), mas tem a pretensão insustentável de ser um Discurso Verdadeiro. Mas por que a mentira não poderia ser remédio?

* * * * *

O que eu acho, sinceramente, é que a religião é para os homens o que os contos-de-fada são para as criancinhas amedrontadas e insones... a mamãe conta historinhas bonitas e com final feliz para o bebê para que ele se tranquilize: “tudo acaba por ficar bem, filhinho, e a vida é uma jornada que termina num radioso 'e foram felizes para sempre...', quando a mocinha encontra no príncipe encantado a cura definitiva para todos os males...”

A Bíblia é um livro de contos-de-fada para adultos – que nunca deixaram, aliás, por detrás de suas poses tão bem construídas de força e maturidade, de serem crianças angustiadas e insones.. O Final Feliz também é prometido (mas só pra quem for bonzinho!) e vamos todos para a Grande Festa Sem Fim da Eternidade, se merecermos o convite. Como no conto-de-fadas, há também monstros, madrastras e lobos-maus, que são a morte, o sofrimento, as armadilhas do demônio, as caídas em perdição, as tentações carnais e as luxúrias, mas nós, os heróis da saga, podemos vencer todos estes rivais. Temos um aliado de peso sobre as nuvens.

Do mesmo modo que o êxtase do “foram felizes para sempre...” começa quando a princesa se casa com seu príncipe, a nossa hora da estrela é a morte, instante radiante do nosso casamento com Deus, e lá nos vamos gozar de uma doce lua-de-mel no Paraíso, lá no além-túmulo...

No fundo, bem no fundo mesmo, acho que todo crente sabe muito bem, ou ao menos suspeita, com uma dúvida que se esforça por reprimir, que toda essa historinha é conversa fiada, conto da carochinha, conversa pra boi dormir, uma lorota gostosa e fantástica, e todo mundo brinca junto de faz-de-conta... A humanidade é uma louca ciranda infantil onde o faz-de-conta ganha peso de lei. Houve tempos em que queimavam-se nas fogueiras quem se recusava a brincar! E a brincadeira consiste em cantar em coro: faz-de-conta que ninguém morre de verdade! Faz-de-conta que o Bem no fim acaba sempre por vencer! Faz-de-conta que existe um Paizão protetor e afetuoso lá em cima, cuidando de nós, com a ajuda de uma legião de anjos-da-guarda! É tudo mentirinha, é tudo conto-de-fada, mas se isso nos ajuda a dormir, se isso sossega nossa angústia, se isso é eficaz como remédio, ora... faz-de-conta que é tudo verdade!

O que me surpreende é que, cedo ou tarde, toda criança iludida se desengana e percebe a falsidade do Papai Noel, do Coelhinho da Páscoa, do Saci-Perêrê, do Bicho-Papão e do Felizes-Para-Sempre... O espantoso é que, dentre todas as criaturinhas fantásticas que nossa alma infantil delirou que existiam, Papai-do-Céu é uma das únicas que para muitos sobrevive à procissão de desencantos que é o processo de tornar-se adulto. Deus é um conto-de-fadas do qual as crianças crescidas se recusaram a acordar.

terça-feira, 6 de maio de 2008

:: nostalgia da fitinha! ::


Adorei esse tal de MixWit, ferramenta hi-tech para quem tem nostalgias retrô! É um brinquedinho internético genial e charmoso, que fez bater mó saudade do tempo em que eu tinha caixas de sapato lotadas de fitinhas k-7, gravadas com muito esmero e dificuldade, produtos duma arte subestimada que só os Rob Flemmings desse mundo apreciam devidamente! Mas muito antes de Alta Fidelidade eu já era fissurado em k-7s e dedicava muitas das minhas tardes pré-adolescentes em árduas gravações, a serem depois degustadas nos velhos walk-mans de botões ruidosos e que, frente aos mp3s e Ipods de hoje em dia, eram colossais trambolhões... Caraca, eu tô mesmo ficando velho! No meu tempo as coisas eram bem diferentes! Aí em cima está minha primeira MixWit que compartilho com vocês - uma pequena coleta de músicas belas e tristes cantadas por garotas. Adoro poucas coisas mais do que essa mistura de melancolia, doçura e feminilidade em baladas indie. Logo farei mais fitinhas pra deixar esse blog mais musical... Punk Bubblegum Classics coming next!


WOMEN ALONE WITH THE BLUES

01. liz phair, "perfect world"
02. feist, "gatekeeper"
03. beth orton, "feel to believe"
04. kathryn williams, "hallellujah"
05. keren ann, "not going anywhere"
06. regina spektor, "ode to divorce"
07. nancy sinatra, "bang bang"
08. joan as police woman, "the ride"
09. fiona apple, "oh well"
10. emiliana torrini, "heartstopper"
11. casey dienel, "the la la song"

na "capa", Isabelle Adjani em cena do História de Adele H.

(tá funfando aê?)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

:: poesia russa moderna (ó como eu sou cult!) ::



A Confissão de um Vagabundo

Nem todos sabem cantar
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O seu melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de nooiva.

Amo a terra.
Amo demais a minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos nos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Págaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos,
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

Siérguei Iessiênin
(tradução de Augusto de Campos)
in: Poesia Russa Moderna

:: don't hate the media... ::

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Só pra testar o Scribd, serviço que parece bem bacana para publicar textões acadêmicos mais alongados, disponibilizo aí um velho "ensaio" que escrevi anos atrás, quando ainda era um aluninho de jornalismo ainda não extremamente colérico com seu curso e ainda semi-empolgado com a perspectiva de exercer a profissão. Ainda concordo com quase tudo que eu pus no papel para este trabalho, que é de 2005 mais ou menos, entregue ao Tio Zarcillo - aquele mesmo que me reprovou três vezes na mesma matéria, quase me fez ser expulso da Unesp e contra quem eu armei um barraco daqueles, que quase chegou na Justiça. Apesar de ter tirado nota 9 com louvor por esse trampo, fui bombado na disciplina desse 'Fessor Manézaço por faltas imaginárias que só existiram por causa da extrema surdez do velhinho... Mas deixa pra lá minhas mágoas e ressentimentos universitários do passado! O lance é que eu já entrei na facul achando a tal da imparcialidade um mito pra lá de insustentável e, se me perguntassem, eu responderia com o clichêzaço: a Caros Amigos dá de dez em cima da Veja! Hoje em dia tô bem desinteressado do jornalismo em geral e dos circos sensacionalistas bizonhos que a mídia fica armando por aí - na verdade num leio jornal nenhum, não assisto telejornal nenhum, não leio revista semanal nenhuma, e não acho q isso me deixe muito mais alienado do que o resto do mundo... Mas esse texto aí é um bom resumo da ópera sobre o que eu penso sobre o jornalismo em geral. Taí pra quem se interessar.

Não sei se é por causa do meu coração punk, mas ainda acho que o lema mais fodaço sobre o assunto saiu da boca do Jello Biafra:

"DON'T HATE THE MEDIA.
BECOME THE MEDIA."