terça-feira, 29 de julho de 2008

:: PÉTALAS E FACAS ::


I. ALUMBRAMENTO

"She's making me feel like I've never been born."
JOHN LENNON


Se hoje sinto minhas asas crescendo, quase prontas para ousarem decolagens inéditas, é a ela que devo agradecer. Se hoje meus termômetros me dizem que meu sangue ferve em temperatura bem superior ao que costumava, devo isso à minha temporada às beiras da fogueira dela – a fogueira que ela era. Se hoje meu coração tem tão belas cicatrizes a mais o decorando, também nisso ela tem mérito no cartório. Tyler Durden dizia: “I don't wanna die without any scars.” Eu me envergonharia de ir para o caixão com um coração perfeitamente intacto: sem trincos, sem tombos, sem hematomas, sem marcas de mordida, sem ossos fraturados e depois reconstruídos. Sem uso. Nascemos para nos usarmos. É isso. Quero a glória de morrer com um coração combalido por ter amado além da medida. Pois a única medida de amar é amar desmesuradamente. Sem rédeas. Sem contenção. Sem economia.

Que conhecê-la mudou minha vida, e pra muito melhor, não tenho dúvida. Meu rápido passeio pelo planeta Terra teria sido uma viagem bem mais pobre se ela não tivesse cruzado o meu destino. Mesmo que tenha doído tanto, as alegrias também foram muitas, e as lições, e as saudades... Não me arrependo dos caminhos em que houve dor pois sei que não existem caminhos sem dor. Abençôo as rosas que têm espinhos. Não amaldiçôo que neste mundo a alegria e a tristeza estejam sempre misturadas, como se estivessem em guerra civil, como se numa trepada cósmica entre deus e o capeta jorrassem para todos os lados as pétalas e as facas, os insultos e as carícias, as chamas e as nuvens... A vida nos judia e nos acaricia, nos enfaqueia e nos presenteia, nos ama e nos odeia - e é besteira querer que ela seja menos insana. Aceito a condição.

Ela, vista através da névoa da minha fantasia, foi um daqueles encantamentos que, quando acontecem, reduzem todos os anteriores à insignificância. Apaixonado por ela, eu me convenci de que jamais tinha conhecido uma garota mais fascinante, com uma mente mais brilhante, um coração mais ardente, uma personalidade mais magnética. Em linguagem mais pé-no-chão: eu nunca tinha pagado tanto pau pra ninguém. E todas as meninas por quem eu já tinha me apaixonado foram se encolhendo, ficando miudinhas, até que me parecesem pouco - ou nada - perto dela. Alumbramento.

Eu a procurei como fazem aqueles que embarcam numa montanha-russa. Pela superação da vertigem. Por atração pelos abismos. Por paixão pela adrenalina. Ela tinha um excitante sabor de perigo e eu começava a me revoltar contra o conforto em que vivia, detrás dos muros, dos escudos, dos medos. Nascia, incandescente, um desejo ardente de aventura, de entrega, de insanidade. Tive fome de roubar dela um pouco da loucura que me faltava. Estava cansado de viver protegidinho dentro do cofre e já tinha passado o tempo dos martelos marcharem para massacrar minha concha - e enfrentar o mundo vasto mundo que existia, me diziam, fora do meu coração.

Porque minha vidinha mais se parecia com um passeio de pedalinho. Com colete salva-vidas. Num lago que dá pé. E ela apareceu à minha frente como uma altíssima plataforma de bungee-jump. Com vagar, hesitante, passo a passo, como num thriller hollywoodiano, avancei até a borda. Me taquei. Sem nem saber se a corda aguentava o peso. Para ter o orgulho de ter ousado.

Dela eu adorava a pressa, a impaciência, a urgência com que ela queimava. Pois a vida não era para ser deixada para depois. Daqui a pouco já era cu-docismo. Amanhã não existia até ser hoje. Meu silêncio prudente se fascinava com a tagarelice sem rédeas dela. Minha contenção se admirava frente ao ímpeto de jorrar alma afora dela. Eu, que tinha o riso difícil e a mania ancestral de ser triste, fiquei besta de ver como, para ela, a alegria podia ser tão fácil e em quê quantidade espantosamente abundante estouravam os risos e as gargalhadas. Ela queria o mundo e queria agora. Foi a primeira criatura que conheci que era puro carpe diem encarnado. Sabedoria punk em doses cavalares.

E foi assim que ela renovou meu sangue ao injetar em mim novos sonhos, substituindo os velhos e mofados: o sonho de ser mais como ela. O sonho de ser amado por ela. Que alegria seria! A vida começaria a ser o que sempre quis que fosse: uma festa louca, sem amanhã, cheia de som e fúria, polvilhada de risos, agora e sempre. Jatos de luz sempre cortando a noite. Feito o pacto, eu viveria, dali em diante, sempre ébrio: de droga, de poesia, de amor, de vida. Ébrio dela.

Everyday a rainbow.

Nice dream.

* * * * *


II. SHE

"She never mentions the word addiction
In certain companies.
She'll tell you she's an orphan
After you meet her family."

THE BLACK CROWES


Imagino que ela tenha sido o tipo de criança ultra-curiosa, com um talento para se espantar com tudo: do tipo que desmonta o relógio para ver do que é feito o tempo ou que rasga as bonecas com uma faca de cozinha para ver como elas são por dentro – se têm órgãos como os nossos, se o sangue corre pelas veias, se dá pra arrancar delas um berro... Cresceu no meio do nada, numa cidadezinha interiorana onde o tédio imperava e o mundo moderno, com seus shopping centers, hipermercados, cinemas digitais, parques de diversões e neuroses de massa ainda não tinha chegado. Desde o início em guerra contra o bode, ela se aliou ao livros, às histórias em quadrinho, aos gizes de cera e canetas hidrocor, a uma fantasia e uma imaginação espetaculares. Desde pivete, cansou de ouvir da mãe: “Menina, pára de fazer arte!” Profecia certeira: ela tinha nascido para ser arteira.

As empregadinhas inescrupulosas misturavam uísque na mamadeira dela, para ver se a diabinha sossegava o facho, e depois se gabavam para a mãe da eficácia incrível de suas canções de ninar... Talvez desse passado distante venha a predileção por paraísos artificiais conquistados por vias químicas. Megalomaníaca ao extremo, dava a impressão de se achar muito mais sensacional do que o resto do mundo, esse chiqueiro de caretice, repressão, gente chata e estupidez-sempre-na-moda. “Será que Deus patenteou a idéia de hospício redondo?”, dizia ela direto, parafraseando a pequena Mafalda.

Era o tipo de pessoa que, se não tomar cuidado, acaba virando mais um desses loucos de manicômio que pensa que é Napoleão chefiando um imenso exército, de um império colossal... Ou então o tipo de pessoa que, pegando a rota certa, vira gênio-louco: Van Gogh, Artaud, Nietzsche, gente desse naipe.

Ela era daquelas que podia olhar para baixo para o resto do mundo, sem parecer arrogante, certa de que as pessoas todas estão pelo menos umas 10 doses de uísque atrasadas. Não tinha pudor algum em dizer pra todo mundo ouvir “Eu me acho foda!” E relatava com gosto todas as suas façanhas, as reais e as inventadas. Eu me espantava com todas, mesmo as de mentira. Com 20, dizia já ter lido Em Busca do Tempo Perdido inteirinho, quase todo o Dostoiévski, quase todo o Tolstói, quase todo o Machado. Tinha predileção pelos russos. Em duas décadas parecia ter acumulado dentro de um crânio humano a quantidade de informação e cultura que você não imaginaria caber dentro de Júpiter. Um espanto a quantidade de nomes de pintores, de poetas, de artistas, de bandas, de movimentos de vanguarda, de pop-stars, de instrumentos musicais, de receitas culinárias, de dicas de higiene e de saúde, de ditos espirituosos, de piadinhas sarcásticas geniais, de percepções de mundo extraordinárias e incomuns, de fervilhamento interior que conseguia viver dentro daquele cérebro caótico e privilegiado.

Ela me aparecia como um mágico ser que conseguia ter a auto-estima na estratosfera, que parecia curtir a si mesma com um absoluto tesão – as próprias idéias, o som da própria voz, os eventos de sua incrível biografia, tudo. Um narcisismo perfeito em eterno estado de delícia consigo mesmo. E quase sempre ela me soterrava debaixo de tanta extroversão e auto-adoração. Falando dela mesma pelos cotovelos, monopolizando a fala, nem notava que eu, talvez, queria também falar mais sobre mim.

Ela me fazia sentir como se eu ainda nem tivesse nascido.

* * * * *

III. TRECHOS DE CARTAS QUE NUNCA ENVIAREI

"Love has a nasty habit of disappearing overnight."
THE BEATLES


Ah, amoreco, como pode? O cenário não era exatamente romântico – nada de um lindo pôr-do-sol parisiense como pano de fundo e nada de gôndolas por Veneza ou passeios a pé por Viena ou beijos iluminados pelo neón noturno de uma Tóquio futurista. Não tínhamos nascido para estrelar um romance hollywoodiano. No mais improvável dos ambientes – uma república estudantil porra-louca, imunda, junkie, que parecia atrair uma galerinha do mal e onde dúzias de histórias trash aconteceram... - foi aí que calhou de acontecer o fenômeno: o encantamento.

Nossas cabeças quase coladas, nossos lábios tão tímidos, que tanto tempo levaram para cometer a ousadia tão desejada de se colarem... eu quase desmaiado de porre, você bebaça e tão diferente de você... doce, meiga, que beijava em silêncio, que não sentia necessidade de palavras, que se entregava a outra linguagem, tão superior. Poucas vezes o silêncio esteve tão repleto de delícias. Tudo envolto numa névoa: de sono, de álcool, de paixão, de surpresa, de confusão, de arrebatamento, de medo. E eu, me tornando tão diferente de mim, ousei me perder (ou me encontrar?) em ti. Sem mapas e sem certezas... Pois só me acho em ti.

E da sua boca saíram doces promessas de que o Sol estava nascendo e que teríamos um longo e lindo dia pela frente. Aquilo... aquilo parecia uma aurora, o começo da primavera, a entrada numa era dourada, e meu coração se enchia de cor com o sonho de sair de vez do outono. E você me disse aquilo que eu nem tinha coragem de fazer os ouvidos da alma escutarem em sonho: "Tira minha roupa a hora que você quiser!" Coisas que não se diz! Quando não se pretende cumprir... A promise sworn and broken.

E enquanto duraram nossos beijos, nossos abraços, nossas carícias, nossas palavras murmuradas ao pé do ouvido, o mundo foi lindo e a felicidade estava começando. Só começando! Que ingenuidade a minha, pensar que aquilo era um mero prólogo, uma porta de entrada, uma ante-sala de salão de festas, e que depois é que a coisa real ia começar... Já era ela, a felicidade mesma, quem tinha pousado ali, quem estava lá, presente, onde eu via somente sua promessa. Eu estava sendo feliz enquanto pensava que a felicidade, que já tinha chegado, chegaria logo...

E eu pensava que você me amava. Se estava me beijando daquele jeito, me acarinhando daquele jeito, sendo uma fruta tão doce, entregue ao meu paladar para ser inteiramente lambida e devorada, era, é claro, pois me amava, de corpo e alma, e havia suficiente confiança para uma entrega completa, e afeto suficiente para que nós alimentássemos nossos corações, mutuamente, por tanto tempo...

Eu me convenci de que você me amava.

As coisas imbecis que a gente pensa.


Tinha imaginado que o grande amor, que eu sempre tinha em vão desejado e buscado, tinha enfim começado. E que eu agora eu que entrava numa longa e doce rodovia, que dali em diante eu teria a maior delícia em percorrer. Smooth sailing all the way. Não faltariam ocasiões para mil beijos e carícias, até cansar, que povoariam a minha vida como mil estrelas nascendo num repente no meu céu escuro. Acabaram sendo apenas relâmpagos. Antes escuridão, agora escuridão. No intervalo, o rápido relâmpago esplêndido. De fato, como cantou o poeta,

"o amor é uma agonia,
vem de noite e vai de dia...
É uma alegria,
e, de repente,
uma vontade de chorar..."


Foi assim que aprendi: deve-se sempre beijar como se fosse o último beijo antes da morte. Como se ela estivesse prestes a entrar no barco, indo embora pra sempre - é a última chance! a última chamada! a última porta aberta! São lábios que velejarão para longe numa jornada só de ida! Se eu soubesse que ela não voltaria mais, como a teria beijado diferente! Com que ardor, que fome, que fogo! E aí então você teria voltado.

Até hoje entendo muito mal o que foi que se quebrou entre nós para que você se afastasse. Pois eu queria que você ficasse – que viesse morar de vez na minha vida. Que armasse acampamento vitalício na minha praia. Eu queria um pacto. Eu queria um amor longo, dedicado, terapêutico, construído pouco a pouco. Com você eu vivi alguns dos dias mais felizes da minha vida – e queria mais. E até hoje ecoa, sempre sem resposta, a pergunta: “por que não eu? Por que não mais? Por que só relâmpagos?”

O pouco que sobrou:

”...o canto de um prazer suavemente desfeito
de que o eco há de, eterno, perdurar,
como vive na concha a saudade do mar.”

(EDGAR ALLAN POE)

* * * * *


IV. THE FALL

"Besteira qualquer... nem choro mais...
só levo a saudade, morena...

é tudo que vale a pena."
LOS HERMANOS


Eu prometi a mim mesmo que não cairia no mesmo erro de sempre, que não me deixaria prender na mesma teia, na armadilha familiar, na gosma já tão conhecida. Não ia me deixar cair na cadeira de rodas de uma melancolia passiva e apática. Não ia gastar mais tempo que o necessário choramingando pelos cantos: quis chorar às torrentes, logo de uma vez, numa daquelas tempestades que, ao acabar, deixa o céu completamente desnublado. Quis, sem demora, livrar de vez meu organismo das toxinas que – comprovado cientificamente – são expelidas através das utilíssimas lágrimas de amor.

Quando fui derrubado, caí já decidido a me reerguer logo. Não ia ficar no chão, fazendo teatro, bancando a vítima, como faz um jogador de futebol que, após tomar uma rasteira, se deleita dando à platéia o espetáculo de sua dor. Não quis deixar as feridas abertas, com o sangue fluindo para fora feito um rio de acusações (veja só o que você fez comigo!). Busquei a rápida cicatrização, os remédios de eficácia imediata, os recosturamentos que não tardam. Mal vi o corte e corri ao pronto socorro pra dar ponto.

Prometi a mim mesmo que não abaixaria a cabeça, que não me deixaria amargurar, que não ia sentir nada como uma ofensa pessoal. As coisas são como são. Garanti a mim mesmo que não cairia na estupidez da espera paralítica, comendo o sonho de uma improvável reversão da fortuna. Ela tinha feito a escolha dela, e a escolha dela não era eu. Pois bem, merda acontece. Seguir em frente.

Quando bati o nariz no muro que bloqueava a estrada por onde eu ia, tentei me convencer que não deveria apoiar nele as costas do desânimo para chorar por ter viajado em vão. Pois sabia que não tinha viajado em vão. Foi só que a rua mostrou-se sem saída, fato que eu não sabia quando nela entrei. Nunca sabemos. É o que faz o delicioso suspense da vida, onde estrada alguma possui, em seu início, uma placa comunicando sobre o que encontraremos em seu fim. Mas uma rua sem saída pode ser bela, e na travessia por ela pode-se colher e comer saborosos frutos. E também isto: quando volta-se, volta-se outro.

Quando um horizonte se fechou, finquei minhas unhas no céu e nele reabri à força as clareiras que precisava.

Cansei do choro estéril que molha o solo deixando-o árido. Só quero saber de lágrimas que frutifiquem. Planejei uma revolta mais indignada, uma busca mais ardente, um insulto mais poético – se a vida não quer me dar seus doces de bom grado, eu vou lá tomar à força! Arrombarei o baú do tesouro! Assaltarei a doceria! Irei aos corações como quem assalta um banco!

Nada foi mais consolador do que esse pensamento tão banal: o mundo tá cheio de gente. E com certeza há outros corações capazes de fabricar o mel que ela me recusou. Que são árvores repletas de frutos maduros que eu só preciso estender a mão para colher. A fábrica de afetos dela – que aliás esteve tanto tempo em greve, de férias, parada... - não tem o monopólio da produção das acariciantes chamas astrais.

Nunca senti ímpetos tão selvagens de sair lascando beijos na boca de desconhecidas. Hoje acho gostar tão simples...

Sim, ela fez a escolha dela, e o eleito não fui eu. Mas ainda estou vivo, meu coração ainda bate, ainda que mutilado, e o mundo ainda existe. Não posso me fechar na mágoa viva dos rejeitados. Vou chorar até a desidratação, pois não deixa de doer pra diabo, mas depois meus pés vão correr de volta à estrada, à luta, à busca. Vou me candidatar a rei em outras províncias... Deserto logo de onde não me hospedam, corro a procurar quem me queira... Há frutas em outros pomares, verdor em outros campos, frescor em outras águas, calor em outros sóis, abraços em outros braços, beijos em outros lábios, felicidade em outras ligas...

E sei que vou conseguir. E que no final me direi, cantando: “O quanto levou, foi pr'eu merecer”.

* * * * *

O amor é uma tempestade de pétalas e facas, mas... quer saber? Dispenso o guarda-chuva.

:: a caravana humana ::


LA CARAVANE

La caravane humaine au Sahara du monde,
Par ce chemin des ans qui n'a pas de retour,
S'en va traînant le pied, brûlée aux feux du jour,
Et buvant sur ses bras la sueur que l'inonde.

Le grand lion rugit et le tempête gronde;
A l'horizon fuyard, ni minaret, ni tour;
La seule ombre qu'on ait, c'est l'ombre du vautour,
Qui traverse le ciel cherchant sa proie immonde.

L'on avance toujours, et voici que l'on voit
Quelque chose de vert que l'on se montre au doigt:
C'est un bois de cyprès semé de blanches pierres.

Dieu, pour vous reposer, dans le désert du temps,
Comme des oasis, a mis les cimetières:
Couchez-vous et dormez voyageurs haletants."


(Théophile Gautier)


A caravana humana pelo Saara do mundo,
Por este caminho dos anos que não têm retorno
Vai-se arrastando o pé, queimada pelo fogo do dia,
E bebendo de seus braços o suor que lhes inunda.

O grande leão ruge e a tormenta retumba;
No horizonte fugidio, nem minarete, nem torre;
A única sombra que há é a sombra do abutre,
Que atravessa o céu à procura de sua presa imunda.

A caravana avança sempre, e logo se defronta
Com algo de verde que apontam-se com o dedo:
É um bosque de ciprestes semeado de pedras brancas.

Deus, para vos dar descanso, no deserto do tempo,
Como oásis, colocou ali os cemitérios:
Deitem-se e durmam, ó viajantes sem fôlego.


(tradução e adaptação minha, amelhorando a versão do José Lino Grünewald - que eu achei bem meia-boca para este poema FODÁSTICO. )

segunda-feira, 28 de julho de 2008

:: caótica ana ::

Dei meu segundo berro, desta vez sobre Caótica Ana, novo filme do Julio Medem, para a nova edição da Revista O Grito!. Seis anos depois do belo Lúcia e o Sexo, o cineasta espanhol, sempre ultra-ambicioso e sofisticado, retornou com um obra meio bagunçada, esotérica, pretensiosa, que parece indecisa entre o insulto poético e a superstição. O pessoal lá editou e cortou um pouco o meu texto, provavelmente para curá-lo da prolixidade (ê vício!), o que acabou por tirar um pouquinho do sabor e das ironias no texto - mas no geral tá bão. Aí vão uns trechinhos do treco em versão uncensored (hehe!):

"Numa das frases mais clássicas do cinema na década de 90, o garotinho de O Sexto Sentido revelava ao mundo seu espantoso dom: “I see dead people!” É um cena que se entranha na memória e não sai mais. Não foi a primeira vez que um filme hollywoodiano de grande porte encantou as multidões com um enredo que flertava com o sobrenatural e os fenômenos paranormais, claro. Mas M. Night Shyamalan, em seu filme de estréia, conseguiu a proeza de lançar um filme marcante e de profundo impacto popular abordando uma temática repleta de superstição espiritualista.

É um modo comprovadamente eficaz de fisgar o grande público, aliás. Bastante gente admite (mesmo que for com rubor no rosto) que gosta imensamente de Ghost – Do Outro Lado da Vida,
aquele adocicado romance entre um Patrick Swayze fantasma e uma Demi Moore em carne-e-osso (graças a deus) que a Rede Globo reprisou até a saturação. Poucos resistem a uma boa história de fantasmas e mortos perambulando por aí!

Ghost e O Sexto Sentido são apenas dois exemplos de filmes de extremo sucesso que tratam de fenômenos religiosos extraordinários, que beiram a ficção científica, e que assim conseguem fascinar o público com facilidade. E isso porque mexem com profundos temores e esperanças do espectador, que acaba por se propor enigmas como: “há vida após a morte? Os espíritos vagam pela Terra depois que o corpo pifa, até encontrarem um outro hospedeiro? Se meu espírito existe, que idade ele tem? E dentro de quantos seres já viveu?”

Caótica Ana é mais um filme que irá abordar uma temática semelhante, desta vez através da história de uma jovem que, através de transes hipnóticos, consegue “acesso” a suas vidas passadas, re-experimentando na pele as mortes trágicas e violentas que sofreu nos últimos dois mil anos. Por ser uma obra com um saborzinho mais de item cult que de blockbuster, acaba tendo semelhanças com filmes como Solaris (de Andrei Tarkovski, refilmado depois por Steven Soderbegh) ou The Dead Zone (de David Cronenberg), que tratam de modo refinado temas altamente misteriosos e paranormais.

* * * * *


"Se Medem fosse um músico, certamente estaria numa banda de rock progressivo e não numa de punk-rock de três power-chords. Pois seus filmes sempre soam sofisticados, refinados, complexos, conduzidos por mão de mestre por alguém que é virtuose em sua arte e faz questão de ostentar seus talentos em longos “solos”. Caótica Ana não é diferente: o requinte visual e o preciosismo técnico são exemplares. Nossas retinas saem do cinema satisfeitas com um filme que vem recheado de cenas e tomadas que são puro eye-candy. Mas, se a obra é formalmente impecável e visualmente exuberante, o mesmo não se pode dizer com tanta certeza sobre o conteúdo e o enredo.

Que o roteiro de Medem está fervilhando de idéias e referências, não há dúvida. O diretor botou no liquidificador espiritualismo, fenômenos paranormais, técnicas de hipnose e regressão, arquétipos junguianos, o complexo de Édipo, a Guerra do Iraque, História Africana moderna e muito mais… Rolam até referências à cultura rave de Ibiza (o filme já começa com uma bela simulação de uma viagem de ecstasy) e aos artistas neo-hippies madrilenhos! Ambição pouca é bobagem! O primeiro dos problemas, como já se vê por essa descrição de temas que soam um tanto desconexos, é que a obra acaba ficando até mais caótica do que sua protagonista.

O filme começa muito bem, prometendo uma história aventuresca sobre a linda e talentosa Ana (Manuela Vallès), uma linda loirinha bicho-grilo que vende seus quadros em feirinhas hippie e adora boiar nua nas águas de Ibiza. Esta jovem pintora que dá nome ao filme, após ser descoberta por uma mecenas caça-talentos (a insossa Charlotte Rampling), muda-sa para Madrid para morar numa louca república de artistas. “Aqui me sinto como uma índia que acabou de sair de sua aldeia”, escreve ela para o pai, enquanto Medem brinca de filmar cenas à la O Albergue Espanhol.

(...)

O grande problema é que o enredo a certo ponto degringola para um esoterismo exagerado – sem falar no grau de inverossimilhança excessiva da história toda. Esta mesma premissa - “garota hipnotizada re-experencia mortes violentas que sofreu em vidas passadas” - poderia facilmente virar motivo de piada e alvo de tomatadas num filme de terror B, que os críticos de cinema iriam massacrar sem dó. O mesmo enredo, embrulhado no papel brilhante de tamanho virtuosismo visual e técnico, acaba adquirindo um ar de coisa respeitável.

Mas não nos deixemos enganar, porém, por essa afetação de artisticidade e refinamento - e não confundamos isso com profundidade. Pois em Caótica Ana Medem cometeu uma atrocidade parecida com a de Darren Aronofsky em a A Fonte da Vida: nos dois casos, um diretor promissor e original acaba despencando no excesso tanto de pirotecnia visual gratuita quanto de misticismo cheio de fogos-de-artifício.

Caótica Ana é um filme capaz de agradar principalmente senhoras supersticiosas e meio hippongas, que adoram queimar incensos, ter estatuazinhas de gnomos-da-sorte e ouvir CDs de “relaxamento e meditação”. Dá a impressão de ser o resultado do tipo de confusão em que cairia um bom cineasta se lesse demais Allan Kardec ou levasse a sério demais doutrinas implausíveis sobre espiritismo, reencarnação e médiuns. Em vários momentos, o filme acaba soando como o equivalente cinematográfico de uma música new age - e, que me perdoem aqueles que curtem Enya e Kitaro, mas essa comparação, neste caso, não tem intenção de ser nada lisonjeira.

Pior ainda é o fato do filme afirmar categoricamente que aquelas experiências da protagonista são reais, quase milagrosas, impondo uma visão religiosa ultra-suspeita ao espectador. Eu não teria objeções a fazer ao filme se ele, ao tratar dessa questão da reencarnação e da possibilidade de “acessar” memórias de vidas anteriores, deixasse aberta a porta da dúvida. Quando Ana é hipnotizada e narra suas supostas existências antigas, o espectador poderia se perguntar: mas será que ela não está imaginando tudo? Será que ela não está criando um enredo totalmente falso só para seguir as ordens do hipnotista? O que existe de seguro para nos garantir que ela não está alucinando ou se auto-ludibriando?

Mas Medem jamais deixa aberta sequer a possibilidade de que Ana pudesse estar sonhando, imaginando, delirando. Ana está de fato revivendo memórias de suas vidas passadas e nunca isso é posto em questão, como prova o fato dela desembestar a falar árabe ou idiomas indígenas mortos quando está em transe, o que é o mesmo que afirmar que ela, no fundo do inconsciente, pode “acessar” memórias de sua alma ancestral.

Por isso Caótica Ana é um filme todo impregnado de misticismo e de credulidade, um pretensioso enredo que parece ter sido borrifado com doses excessivas de Jung, Kardec e parapsicologia, mas que tem, para o meu paladar, um suspeito gosto de charlatanismo espiritual. É o tipo de obra que agradará principalmente aos crédulos. Aqueles que, como eu, tem uma queda para o ceticismo, só podem lamentar: que excelente filme ele poderia ter sido se somente algumas sementes de dúvida tivessem sido plantadas neste terreno!…

Pois Caótica Ana fica longe de se transformar numa obra que fomente um interessante debate entre fé e ciência, como poderia ter sido se aproveitasse melhor o contraste entre a moça, que crê em reencarnação e regressão hipnótica a vidas antigas, e seu namorado Said, que estuda biologia e parece ter um “temperamento científico”.
Richard Dawkins, se resenhasse o filme de Medem, provavelmente desceria a lenha. E, neste caso, me alinho à Frente Militante Anti-Superstição, que o biólogo britânico vem liderando nestes últimos anos, e digo: Medem, com este filme, acaba por impor ao espectador, através de um enredo inverossímil, uma doutrina espiritualista que tem o cheiro da superstição mais rala. Taquemos livros de Nieztsche nele!"


* * * * *


"Mas nem tudo é esoterismo em Caótica Ana e elementos do bom-e-velho Medem comparecem aqui para redimi-lo um pouco. O diretor, que se notabilizou por conseguir inserir cenas de um erotismo sofisticado e altamente plástico em filmes que permaneciam sempre de muito bom-gosto (as cenas “pornô” em Lucia e o Sexo não parecem o supra-sumo do que deveria ser uma “estética erótica refinada”?), prossegue na mesma toada neste longa. A linda Manuela Vallès tem seu corpitcho mui apreciável retratado várias vezes em nus artísticos muito bonitos, que mais agradam aos olhos do que causam ereções. Ponto pra ele por não ficar o tempo todo envolvido com os fantasmas e os transes hipnóticos e fazer seus pousos na carnalidade do corpo humano real. Ainda mais considerando-se o talento que Medem tem para filmar lindamente o corpo feminino.

O diretor só ultrapassa, com ousadia inédita, a barreira do politicamente correto e da estética-de-bom-tom no fim do filme, quando estoura na tela uma surpreendente cena à la Pasolini que envolve defecação e “terrorismo sexual”. Pode até soar desconexo que a personagem, de repente, resolva praticar um ato de punição simbólica contra um big-shot do Governo americano responsável pelas guerras no Iraque e no Afeganistão. Quem imaginava que Julio Medem, cineasta chiquérrimo e sempre tão preocupado com o bom-gosto, criasse uma cena que não ficaria mal em Salò ou Os 120 Dias de Gomorra? Depois de tanto esoterismo e superstição, essa cena redime um pouco o cineasta, que tem seu momento de “enfant terrible” e, numa fina travessura, constrói uma cena de simbolismo claro: ele está cagando no olho de George W. Bush.

Sua intenção com Caótica Ana, afinal de contas, parece ter sido criar com esta personagem uma espécie de mulher arquetípica, símbolo da opressão feminina de dois milênios, e que afinal de contas consegue, à entrada do século 21, levantar-se em revolta e não pagar com a própria vida por sua insubmissão. As feministas, pois, tem tudo para vibrar, até porque o filme está repleto de um certo endeusamento da mulher e uma sugestão de que Ana será o começo de uma longa linhagem de bons filhos. Afinal de contas, como se o filme já não transbordasse de pretensão, Caótica Ana, como era até de se prever num filme tão mísitico, se abre para uma dimensão utópica. Ele aponta para a necessidade da recuperação de uma cultura matriarcal, de um equilíbrio mais harmonioso entre o yin e o yang e parece ainda sugerir que a personagem criada é de um caráter mítico, digna de ser estudada por discípulos de Joseph Campbell."


LEIA TUDO AQUI...
parte 1 -
parte 2

(confira aqui a programação do filme pra Sampa)

domingo, 27 de julho de 2008

:: pra quê porquê? ::



"A poesia é um inutensílio. A única razão de ser da poesia é q ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida q não precisam de justificativas - pois elas são a própria razão de ser da vida. Querer q a poesia tenha um porquê, esteja a serviço de alguma coisa, é a mesma coisa que querer q um gol do Zico tenha uma razão de ser além da alegria da multidão. É a mesma coisa que querer que um orgasmo tenha um porquê. Que a alegria da amizade, do afeto, tenha um porquê. (...) A poesia faz parte das coisas que não precisam dum porquê. Pra quê porquê?"

* * * *

"Por que os povos amam seus poetas? É porque os povos precisam disso; os poetas dizem algo que as pessoas precisam que sejam ditas. O poeta não é um ser de luxo, uma excrecência ornamental da sociedade. Ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade. A sociedade precisa daquilo: daquela loucura pra respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam, que a sociedade respira."

:: painel leminski ::



o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique

* * * * *

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

* * * * *

Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,
Coisa que a gente acha
E é melhor encher a cara.

* * * * *

objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja

* * * *

PRA QUE CARA FEIA?
NA VIDA
NINGUÉM PAGA MEIA.

* * * *

desmantelar
a máquina do amor
peça por peça
onde luzia flor e flor
não deixar nem promessa
isso sim eu faria
se pudesse
transformar em pedra fria
minha prece

* * * *

Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

* * * * *

De uma noite, vim.
Para uma noite, vamos,
uma rosa de Guimarães
nos ramos de Graciliano.

Finnegans Wake à direita,
un coup de dés à esquerda,
que coisa pode ser feita
que não seja pura perda?

* * * * *

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

* * * *

SUPRASUMOS DA QUINteSSÊNCIA

O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
Tudo o que digo
tem ultrasentido

Se rio de mim,
melevem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.

* * * *

RUMO AO SUMO

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.

Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

* * * * *

que raio de dor é essa
que quanto mais dói
mais sai sol?

* * * * *

ÓPERA FANTASMA

Nada tenho.
Nada me pode ser tirado.
Eu sou o ex-estranho,
o que veio sem ser chamado
e, gato, se foi
sem fazer nenhum ruído.

* * * * *

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha

ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

* * * *

Antigamente, se morria
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria,
e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer,
tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
deixar tudo para os filhos
e virar fotografia?
Ninguém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Mas ninguém tem culpa.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Não tem o que reclamar.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.

* * * * *

Ai do acaso,
se não ficar do meu lado.

* * * *

estrela cadente eu olho
o céu partiu
para uma carreira solo

* * * *

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino.

* * * *
só meu amor é meu deus.

("La Vie en Close" e "Caprichos e Relaxos"
in: Paulo Leminski , editora Brasiliense.)

quarta-feira, 23 de julho de 2008

:: o poeta, segundo valéry ::

"Poets - I mean those persons who are especially prone to feeling poetically - are not very different from other men in respect to the intensity of the emotions they feel in circumstances that move everyone. They are not much more profoundly touched than anyone else by what touches everyone - although, with their talents, they may quite often make one think so. But, on the other hand, they can be clearly distinguished from the majority of people by the ease with which they are extremely moved by things that move no one else, and by their faculty for providing themselves with a host of passions, amazing states of mind, and vivid feelings that need only the slightest pretext to be born from nothing and grow excited. In a way, poets possess within themselves infinitely more answers than ordinary life has questions to put to them; and this provides them with that perpetually latent, superabundant, and, as it were, irritable richness which at the slightest provocation brings forth treasures and even worlds..." (PAUL VALÉRY, The Art Of Poetry)

Perfecto!

terça-feira, 22 de julho de 2008

:: o primeiro grito a gte nunca esquece ::


Estreei na Revista O Grito! com uma resenha sobre o premiado "O Segredo do Grão", filme francês que papou uma pá de Césares no ano passado e estreou no Brasil há pouco (confiram a programação de Sampa). Agradeço ao Rafael Dias, editor de conteúdo do site, pelo convite e pelo incentivo à entrar pra turma. Vou estar escrevendo mais sobre cinema e literatura para essa primorosa revista eletrônica, feita por um monte de gente legal, com um visú pra lá de firmeza e que já entra no seu 2o ano de vida cada dia melhor. Eu expandindo meus negócios: agora eu grito, depredo, mumifico e até estou envolvido com Ligas de Senhoras Católicas... =D

alguns trechinhos do meu texto:

"O
que salta aos olhos, de cara, como uma peculiaridade especial do filme, é que a câmera de Kechiche parece sempre vorazmente ansiosa pelo contato carnal com os seres que retrata. É como se esta câmera fosse uma criatura faminta por toques e carícias, que quisesse acariciar a pele e os pêlos de todas as pessoas que encontra pelo caminho, sem muito pudor de incomodar ou constranger o retratado. Grande parte de O Segredo do Grão é composto por close-ups de câmeras seguradas na mão que vão bem pertinho do rosto dos personagens enquanto eles dialogam. Isso gera uma longa procissão de expressões das mais diversas numa linda exploração arqueológica da geografia dos rostos humanos.

Rugas, pintas, poros, verrugas, fios de barba, cicatrizes, olheiras e demais peculiaridades são captados com minúcias por uma câmera que parece crer ser possível encontrar beleza em qualquer cara e qualquer corpo. Generosa, humana e cálida na atenção que dispensa ao ser humano que capta e registra, a câmera de Kechiche é como uma prova viva do humanismo e da sensibilidade de quem está por detrás dela. É sempre de muito perto que enxergamos tanto os sorrisos quanto as lágrimas, tanto os lábios quanto os umbigos, num procedimento de câmera que, “colando” em seus personagens, impede que o espectador assuma uma posição de voyeurismo distanciado e de frieza analítica. Estamos sempre jogados no epicentro dos relacionamentos e dos diálogos, observando-os “de dentro” e de muito perto, como participantes ativos das acontecências. No meio do incêndio. Sem cordões de isolamento nos separando das vidas que testemunhamos.

* * * * *

É compreensível que se coloque o filme na linhagem da escola neo-realista, como fizeram alguns críticos, que enxergaram em O Segredo Do Grão muitos dos elementos que Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, Luchino Visconti e outros cineastas de peso utilizaram para a constituição desta que foi uma das mais representativas vanguardas cinematógraficas da década de 1940-50. Mas se os filmes neo-realistas, em sua origem, estavam mais centrados no retrato das agruras sociais da Itália do pós-2a Guerra, o filme de Kechiche centra fogo muito mais na relação difícil entre os imigrantes africanos e os franceses nativos numa cidade portuária do Mediterrâneo. O oba-oba pra cima da globalização e da União Européia está completamente ausente de O Segredo do Grão, que retrata como, mesmo unificada por uma moeda única e estável, e tornada mais transitável pelas fronteiras cada vez mais permeáveis, a Europa prossegue tendo relações problemáticas com as nações herdeiras do colonialismo. Como é bem sabido, os povos marginalizados ainda sofrem para viverem dignamente longe de seus países de origem e infelizmente a xenofobia ainda não ficou demodê na gloriosa nação de Napoleão…

* * * * *

O Segredo do Grão pode ser visto como um drama de uma cultura marginalizada ancorada num porto do Primeiro Mundo, sem saber se receberá permissão de ficar ou se será expulsa e mandada de volta pra casa. Por trás da historinha aparentemente simples de uma família toda envolvida no projeto de transformar um restaurante-sobre-as-águas num sucesso comercial está toda esta problemática social: uma cultura excêntrica que procura firmar raízes no solo Europeu, exigindo reconhecimento e dignidade, e só conquistando-os a duras penas.

* * * * *

O Segredo do Grão é, pois, uma obra de um desfecho extremamente original, indefinível nos termos de final “feliz” ou “infeliz”, e que coroa mais uma magistral obra-de-arte do cinema francês moderno. Aqui se encontra um daqueles desfechos mais adequadamente apelidados de “final em suspenso”, tão típico do cinema de arte e tão incomum no cinema comercial, em que a situação é deixada irresolvida – mais ou menos como num romance de Kafka. Tudo se passa como se o realmente importante não fosse dar ao espectador a satisfação barata de uma resolução consoladora, ou o soco no estômago de um desastre final. O realmente relevante é meramente descrever, em minuciosos 151 minutos de brilhantismo cinematográfico fino, a longa e dura luta pela vitória. Se, no final, esses personagens triunfaram ou fracassaram parece questão secundária e inadequada de se colocar – o crucial é que lutaram, perseguindo a construção de um sonho que sempre esteve ameaçado de ruir ou ser demolido, mas que continuou sendo perseguido com obstinação. É como se o filme nos dissesse que a verdadeira beleza e a verdadeira nobreza está nesta luta, e que o resultado – vitória ou derrota – é um mero detalhe e uma tola ninharia. Pois, neste caso, lutar já é vencer."

LEIA TUDO AQUI.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

:: comunicado bobo ::

Isso aqui agora se chama MUMINHA e pronto. Certo? Diminutivo carinhoso e apelido gracioso que substitui essa coisa mórbida e cadavérica da Pequena Múmia Suja, que espantava as almas cristãs e bem-comportadas para longe do blog. E registre-se: esses dias o meu filho caçula, o DEPREDANDO O ORELHÃO, com a forcinha dos amigos contribuidores, deixou o irmão mais velho comendo poeira e já passou, em pouco mais de 6 meses de vida, o total de visitas que essa Muminha aqui conquistou em 3 anos e meio. Fico contente com o sucesso de lá e aqui... bem, aqui continua sendo um cantinho no fim-do-mundo da blogosfera, bem modesto, que poucos conhecem além dos meus amigos, mas... quer saber? Prefiro assim. Aqui vou continuar a ser underground e indie. O gostinho de ser pop terei com o Depredando e com a Liga! =D

:: we like movies that go "boom!" ::

da série: SUGESTÕES PARA UM MUNDO MELHOR

MULTIPLEX PARA OS BADERNEIROS,
VÂNDALOS E ATIRADORES DE PIPOCA

Tem gente que pensa que cinema é convento ou mosteiro. Outros pensam que tá mais pra puteiro. E os adeptos dessas duas escolas de pensamento não costumam se bicar, é claro. Se uma pequena minoria de cinéfilos e gentes-sérias reza por silêncio de cemitério no interior do "templo da sétima arte", outra parte da galera adora complementar a trilha sonora e os diálogos do filme com gargalhadas, comentários, mastigação pipoquística e chupação de finzinho de refrigerante.

O bem-estar social exige, portanto, a instauração de um apartheid entre aqueles que vão ao cinema querendo viver uma edificante experiência espiritual-introspectiva-meditativa e os outros, que são maioria, que vão para se divertir ruidosamente. Que não se enganem: essa minha sugestão-para-um-mundo-melhor e uma convivência-humana-menos-hostil não representaria um ato de segregação preconceituosa. Não estou dizendo quem tá certo ou quem está errado, até porque eu sou torcedor eventual dos dois times: num filme cult francês ou romeno prefiro o silêncio respeitoso do público, mas num blockbuster bestalhão sou totalmente a favor de um cinema em polvorosa e cheio de som e fúria. Mas como é dificílimo conciliar os desejos do público, o mais simples seria criar multiplex onde vigoram diferentes costumes comportamentais - cinemas mosteiro e cinemas puteiro! Eis aí o âmago desta minha profundíssima sugestão sociológica para a construção da Utopia. "Um outro mundo é possível...".

Essa idéia me surgiu outro dia quando eu e a Carol 'távamos tagarelando alegres e contentes no cinema, antes do "Estômago" começar (a passar, e não a roncar), e aí fomos atacados verbalmente por um tiozão desequilibrado exigindo bico fechado. Small talk pré-filme, aliás, é um costume saudável e digno de respeito, aceito na sociedade civilizada como algo sem dano algum aos Valores Ocidentais, o que não é compreendido por alguns aborígenes raivosos. Sim, sofremos ataques de um verdadeiro vândalo do moralismo cinematográfico, defensor da sala de cinema como um "refúgio budista" feito do silêncio mais incorruptível! Fiodaputa. Fiquei tão revoltado por ter sido - e na maior grosseria - convidado a fechar a matraca no cinema (e ainda eram os trailers!) que tive estes ímpetos sociológico-revolucionários de remodelar todo o "Sistema", remediando esta terrível luta de classes, e quase que me levanto, subo na poltrona, tiro meu megafone do bolso e explodo em flamejantes discursos...

Na minha fantasia eu era o Lênin ou o Che Guevara das salas de cinema! O inaugurador do bolchevismo dos multiplex! O estourador dos velhos cânones comportamentais carolas! Em altos brados, conclamava: "Baderneiros, verborrágicos e gargalhantes de todo mundo, uni-vos! Exigemos salas de cinema punk, onde quem quiser matraquear o filme todo possa fazê-lo sem medo de represálias! Que se criem "chiqueiros cinematográficos" para deleite dos zoneadores e atiradores de pipoca! Que as freirinhas e os meditativos dos multiplex assistam filmes em cabanas no meio da mata!"

Porque, do mesmo modo que, segundo João Gilberto, os desafinados também tem coração, e todo o direito do mundo de cantar, igualmente é um fato reconhecido por todos os humanistas: os bagunceiros também são gente...

* * * * *

E por falar em cinema [como espaço físico e não como forma-de-arte] uma coisa que nunca entendi direito são aqueles "filminhos pré-filme" em que a empresa dona da sala, generosa como uma mãe que procura dissipar os temores do filhinho aterrorizado, nos garante que estamos em total segurança e não há com quê se preocupar. É que me parece um discurso do tipo: "Não, filho, fantasmas não existem, Bicho Papão também não, e nenhuma quadrilha de bandidos vai entrar aqui em casa e matar todo mundo pra roubar as jóias...". Ou seja, algo dito na intenção de tranquilizar, mas que só revela e transmite a nóia doentia de quem fala.

Pois em certos cinemas ainda passam uns trecos tão paranóicos e alarmistas que chega a ser bizarro. Eles nos garantem: os extintores de incêndio são abundantes e os hidrantes estão localizados em lugar de fácil acesso. As saídas de emergência ficam sempre desobstruídas e têm portas corta-fogo. A Brigada de Incêndio está treinada e preparada para servir-nos com a máxima agilidade. Em caso de pane elétrica, luzes de emergência se acenderão. Favor não entrar em pânico! Só falta dizer que máscaras de oxigênio cairiam do teto em caso de turbulência ou despressurização da cabine ou que a Tropa de Choque está prontinha para intervir no caso de homem-bomba ou serial-killer. Que negada nóinha.

Antes eu imaginava que a intenção secreta desses filminhos repletos de alarmismo era deixar o cinema parecendo um lugar ultra perigoso, de onde não sabemos se sairemos vivos, dando a sensação de embarcar num avião de uma companhia áerea pouco confiável que pode nos fazer explodir no chão a qualquer momento. Você assiste o negócio e fica achando que o cinema pode pegar fogo a qualquer hora e uma evacuação serelepe, através das chamas e nuvens de fumaça negra, pode eclodir justo naquela cena massa do filme...

Mas é claro que hoje em dia não tem mais nenhum sentido ver perigo no cinema. Só em tempos muito remotos é que temores eram justificados pois o projetista, se dormisse no ponto, corria o risco de incendiar o rolo, ver as chamas tomando sua salinha e fritar os espectadores num incêndio monumental como aquele de Cinema Paradiso. Mas hoje em dia, com projeção digital e computadorizada, um cinema pegar fogo é algo tão improvável quanto dois raios caírem na cabeça do mesmo desafortunado.

Pelo menos isso cria um clima que resgata aquele prazer infantil perdido que sentíamos naquela época em que o escurinho da sala ainda tinha aquele gosto de coisa clandestina... Eu, quando era pirralho e ia com os amigos me deliciar com as carnificinas da série Pânico, com os primeiros do Tarantino ou com algum soft-porn que chegava aos cines de shopping, sentia um pouco do sabor de pecado neste ato tão inocente de ir ao cinema. Que prazer era ter 12 anos de idade e conseguir entrar nos filmes com censura 18!

Mas acho que a explicação mais simples para estas peças de propaganda paranóica exibidas pelos grandes cinemas não é, conforme o zeitgeist americano atual, gerar uma Cultura do Pânico. Acho que é bem mais simples. Eles ficam esfregando nossos narizinhos de consumidores nos extintores, hidrantes, saídas de emergência e brigadas de incêncio que há para nossa proteção e bem-estar só para fingir que estão justificados no preço pra lá de abusivo que cobram no ingresso. Eles metem a faca e tem a delicadeza de explicarem porquê é que têm razão com o roubo! Mó sacanáge!

quinta-feira, 17 de julho de 2008

:: chupa, dêcarte ::

Novo lema (este finamente filosófico):

COGITO
ERGO
"BOOM!"

(meu latim é foda.
são anos de estudo para tamanha erudição.)

lema também conhecido como:
PENSAR DEMAIS É SEMPRE MÁ IDÉIA.

domingo, 13 de julho de 2008

:: Wall-E ::


Fofureza total, humor fino, crítica social subliminar, cenários sci-fi distópicos, militantismo ecológico e anti-consumista, e, sobretudo, uma animação primorosa da cada-vez-mais-destruidora Pixar: tudo isso está em doses cavalares em Wall-E, o blockbuster mais adorável e imperdível do ano. Como Beatles, Ramones e chocolate, Wall-E é daquele tipo de coisa que merece o veredito: impossível não gostar! Isso é cinema como pura magia e Hollywood destilando um charme irresistível, que conquista o coração até mesmo das mentes mais críticas da cultura americana comercial.

Wall-E, robô-lixeirinho solitário e sentimental, adepto dos mementos de valor afetivo achados em meio à sucata e fã confesso de velhos musicais de Hollywood, em especial os mais melosos, veio para tomar de R2D2, 3CPO e Robocop (!) a coroa de Robô Mais Memorável da História do Cinema. O "sujeito" é simpatia pura e sério candidato a nova figurinha mítica do imaginário pop mundial. Daqui a 10 anos, não duvido que bonequinhos de Wall-E sejam vendidos junto a brinquedos de Luke Skywalker e Darth Vader ou lembrado pelas crianças-crescidas com o mesmo carinho que dedicam ao E.T. do Spielberg.

Num filme repleto de inteligência implícita, Wall-E (dirigido por Andrew Stanton, o mesmo de Procurando Nemo) nos comunica, quase sem precisar de palavras, imagens que nos contam sobre a relatividade de todos os valores (como quando ele lança longe um anel de diamantes, achando a caixinha muito mais valiosa...), sobre a dependência do afeto em relação à memória (como na cena mais melancólica do filme, em que o gravadorziho portátil de Wall-E, aparentemente danificado, faz com que ele se esqueça de tudo de doce que compartilhou ao lado de sua amada - e o amor ameaça sumir, afogado pela amnésia) e, claro, sobre a sociedade cibernética e inter-galáctica do porvir.


Nenhum crítico crico da cultura americana, tida por alguns como lixo alienante ou entretenimento fútil, pode reclamar do conteúdo ideológico implícito em Wall-E. Por um lado, o filme carrega uma tremulante bandeira ecológica, alertando a inconsequente humanidade sobre os perigos do abuso contra o meio-ambiente em mais um capítulo da, digamos, Cruzada Al-Górica que começou a atacar os cinemas com Uma Verdade Inconveniente. Os cenários pós-apocalípticos que a Pixar ergueu no planeta Terra, reduzido a um imenso ferro-velho ou lixão a céu aberto, tornado inabitável pelo excesso de sujeira, representam uma das mais corajosas incursões da Walt Disney no domínio da distopia - território antes sempre preterido em prol de uma abordagem sempre utópica e otimista. Por inacreditável que pareça, a duplinha Disney/Pixar fez um filme que faz soar o alarme ambiental, nos deixando com medo de vermos o planeta reduzido a escombros pelos excessos da industrialização e pelos despojos da voraz e impiedosa sociedade de consumo, que deixa atrás de si um rastro assustador de lixo. E de gordura.

(Rola até uma anarquia fellinesca quando os Robôs Defeituosos, numa versão ultra-moderna do Levante dos Escravos, estouram numa rebelião contra as autoridades, chefiados por Eva e Wall-E, os revolucionários! Caralho, a Disney tá virando marxista!)

Porque é também com uma certa dose de sarcasmo que o filme trata seus personagens humanos hospedados na navona que viaja num cruzeiro inter-espacial - onde o luxo idiota e o supérfluo imperam. Os ex-terráqueos, gordos como porcos, sedentários feito rochas e acomodados como bichos-preguiça, são outra semi-distopia presente em Wall-E e que tem efeitos subliminares poderosos. A humanidade em Wall-E está reduzida a um estado de imbecilidade tão grande que dá até dó: sentados eternamente em poltronas flutuantes, chupando eternamente canudos de refrigerantes e olhando para uma tela que só bombardeia entretenimento vulgar, os homens em Wall-E são muito mais antipáticos que os robôs.

E isso não me parece uma distopia tão longe de se tornar real: é só pensar que o Tio Sam, de tanto encher a pança de junk-food, têm pago a conta de seus excessos no consumo com um nível de obesidade sem paralelo entre as nações ultra-capitalistas modernas. Os humanos em Wall-E vivem num conforto material extremo, mas tratado por aqui com um olhar um tanto irônico, como se o alerta de desastre ecológico, que soou na primeira parte do filme, recebesse como complemento um novo apito de emergência: de que o consumismo adotado como estilo-de-vida parece gerar pouca coisa além de estupidez e adoção de um cotidiano fútil, sem sentido, impregnado de entretenimentos eletrônicos que isolam as pessoas e alienam da realidade. No fim das contas, a humanidade está reduzida tal grau de estupidez, e o planeta transformado numa wasteland tão desoladora, que são os robôs que vão nos salvar de nós mesmos - limpando o lixo e, claro, nos re-ensinando a dançar e a amar.


Pois o conteúdo distópico, alarmista e semi-sarcástico não impede porém a historinha de ser um legítimo conto-de-fadas bonitinho e fofinho bem ao gosto da Disney, essa velha dama especialista em agradar as multidões com seus doces consolos. A história de amor entre Wall-E e sua robôzinha bonitona Eva deve entrar nos anais como um dos romances roliudianos mais marcantes dos últimos anos. É um casalzinho bem incongruente e que, digamos, combina bem pouco, à primeira vista: ele é meio demodê, out-of-date, encardido, arruinado, último sobrevivente de uma raça de robôs já transformada em obsoleta. Enfim, Wall-E é quase um mendigo dos robôs, um proletário, um Patinho Feio, uma ovelha negra. Já Eva é high-class, de primeira linha, de design ultra-moderno, circuitos e chips chiques, podre de hi-tech. Enfim, uma aristocrata, uma patricinha, uma membra da elite robótica universal. Por isso o meigo romance entre estas duas criaturas tão desiguais soa como uma releitura cibernética de casais como a Bela e a Fera, a Dama e o Vagabundo, a Princesa e o Sapo. A "cena de amor" mais antológica é, claro, aquela valsa no espaço com extintor de incêndio como propulsor. Pura poesia.

A tradicional técnica de humanizar bichinhos, árvores e coisas inanimadas é re-utilizada em Wall-E - mas com a incrível competência de se transmitir sentimentos quase sem fazer uso da linguagem verbal. Os efeitos sonoros de Wall-E são tão espantosamente competentes que fazem-no sério candidato ao Oscar da categoria no ano que vem. Poucas vezes um filme quase mudo e com personagens protagonistas todos feitos de metal, ferro e circuitos elétricos conseguiu emocionar tanto.

Repleto de referências pop diretas (a 2001 - Uma Odisséia no Espaço e Titanic, por exemplo) e indiretas (a humanização de robôs remete a Blade Runner, ao Bishop de Alien - O Oitavo Passageiro, ao menininho de A.I. - Inteligência Artificial), Wall-E é um dos raros casos de blockbuster digníssimo de ser assistido e candidato a novo clássico do cinema americano. Ao mesmo tempo que liga as sirenes de emergência, chamando a atenção para o colapso ambiental e criticando o estilo-de-vida consumista e entretivo, Wall-E é um grande filme americano que derruba um pouco os valores do american-way-of-life (individualismo, competitividade, consumismo, entretenimento fútil, sedentarismo...) e invoca a retomada de valores milenares simples, acabando por ser uma bonita elegia do amor, da alegria e do romantismo bucólico.

MAIS: cinemascópio - mary ann - pablo vilaça

sexta-feira, 11 de julho de 2008

:: um velho tema ::


"Há mortos que não sabem que estão mortos - eis um velho tema desses relatos fantásticos ou fantasmais que a gente lê sem cansar nunca. Como se não houvesse coisas muito mais impressionantes em nosso próprio mundo! Uma história, por exemplo, que começasse assim: há vivos que não sabem que estão vivos..."

(quintana)

(ilustração do deviant art).

quarta-feira, 2 de julho de 2008

:: a enorme incoerência de desamar amando ::


Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.

(...)

Livra-me de ti!
Que eu desconstrua meus pequenos amores,
a ciência de me deixar amar sem amargura,
e que me dêem a enorme incoerência de desamar amando.


(Hilda Hilst)

:: os filmes de junho ::




111. O SONHO DE CASSANDRA (de Woody Allen, 2008 [divx]) - 5.5
112. MEETING WOODY ALLEN (de Jean-Luc Godard, 1986 [divx]) - 6.5
113. GIA (de Michael Cristofer, EUA, 1998 [divx]) - 8.2
114. LADY SINGS THE BLUES (de Sidney J. Furie, 1972 [divx]) - 7.6
115. FEARLESS FREAKS (de Bradley Beasley, EUA, 2005 [divx]) - 9.5
116. DUCK SOUP (de Leo McCarey/Irmãos Marx, 1933 [divx]) - 6.9
117. PAVEMENT: SLOW CENTURY - 7.0
118. VALENTE (The Brave One, de Neil Jornan [dvd]) - 8.5
119. MRS. HARRIS (de Phyllis Nagy, EUA, 2005 [dvd]) - 6.0
120. THE HOT SPOT (de Dennis Hopper, EUA, 1990 [divx]) - 8.0
121. TAXI TO THE DARK SIDE (de Alex GIbney, EUA, 2008 [divx]) - 9.1
122. LOVE IS THE DEVIL (... [divx]) - W/O
123. 300 (de Zack Snyder, 2007 [dvd]) - 6.0
124. ANTES QUE O DIABO SAIBA Q VC ESTÁ MORTO (Lumet) - 7.6
125. TARDE DEMAIS PARA ESQUECER (de Leo McCarey [dvd]) - 5.5
126. DEADWOOD - 2a temporada completa [dvd] - 9.0
127. CREPÚSCULO DO CAOS (de Derek Jarman [dvd]) - 7.1

ouro: FEARLESS FREAKS
prata: TAXI TO THE DARK SIDE
bronze: THE BRAVE ONE