segunda-feira, 16 de junho de 2008

:: Maya Angelou ::


"EU SEI POR QUE O PÁSSARO
CANTA NA GAIOLA"

de Maya Angelou

(1969 - trad. de Paula Rosas, ed. José Olympio)


"O fato de uma mulher negra americana adulta emergir com uma personalidade extraordinária é frequentemente visto com espanto, repugnância e até beligerância" (pg. 248), pondera Maya Angelou ao fim deste I Know Why The Caged Bird Sings, novela autobiográfica brilhante e adorável de uma das mulheres negras mais notáveis do mundo, hoje. É uma frase apetitosa, que sintetiza em poucas linhas o poder e o charme de sua autora: uma mulher negra de mente extraordinária, que sempre teve que combater esse desprezo e essa surpresa dos preconceiturosos e beligerantes, que desejariam manter nas jaulas, acorrentadas e amordaçadas, essas aves raras que bem mais belas ficam voando e cantando...

O livro, delicioso de ler, é daqueles que devoramos em poucos dias - como um brigadeiro literário ou uma bomba-de-chocolate toda feita de papel e tinta. I Know Why The Caged Bird Sings é um romance americano de primeira grandeza, quase steinbeckiano, que narra como uma garotinha negra tenta sobreviver, aos trancos e barrancos, num ambiente saturado de preconceito racial, dificuldades econômicas e dúvidas e espantos infantis que só aos poucos se dissipam.

Eram os anos entre a Depressão e a Segunda Guerra Mundial, quando a Klu Klux Klan "causava" com suas perseguições, os dentistas brancos diziam preferir pôr a mão na boca de um cachorro do que na boca de uma criança de cor e o próprio Deus, lá no Céu, era branquinho como uma nuvem... Ela, Maya, tem que "admitir tristemente que crescer não era o processo indolor que pensava ser" (pg. 233) e que era de fato um caminho de pedras e espinhos para uma menina negra chegar a emergir e desabrochar com um ser humano magnífico quando o mundo inteiro, ao seu redor, tentava esmagá-la e submetê-la. Maya Angelou sabe porque o pássaro canta na gaiola pois ela foi esse pássaro, e toda sua raça foi esse pássaro. E ela foi daqueles que voou.

"Se crescer é doloroso para a menina negra do Sul, ter consciência de seu desloamento é a ferrugem na navalha que ameaça o pescoço. É um insulto desnecessário" (13). É assim que Maya Angalou termina o primeiro capítulo dessa sua primeira novela auto-biográfica: enfatizando o quão doloroso é o processo de crescer no Sul ainda segregacionista, onde todos ainda parecem pisar sobre um solo ensopado pelo sangue da Guerra Civil, com plena consciência da desigualdade social e do preconceito racial reinantes. A jornada existencial por que passa a pequena Maya em I Know Why The Caged Bird Sings é toda permeada por este "fogo cruzado triplo do preconceito masculino, do ódio ilógico branco e da falta de poder do negro" (248).



As rápidas biografias que se encontram pela Internet sobre Maya Angelou espantam pela quantidade de façanhas a ela atribuídas: ela é romancista respeitada, poetisa (vencedora do Pulitzer), roteirista e atriz de cinema (a primeira negra a ter um roteiro transformado em filme na história de Hollywood), autora de programas de televisão, dançarina professional, militante dos direitos civis (que foi aliada de Malcolm X e Martin Luther King), secretária da Unicef, jornalista correspondente na África por 5 anos... A quantidade de talentos e frentes de ação dela é embasbacante.

Tudo isso fez com que Maya Angelou se transformasse não só num ícone para o movimento negro e feminista, mas uma das inteligências mais versáteis e sofisticadas na América de hoje - a ponto de ser chamada por Bill Clinton para ler um poema em seu discurso de posse, de aparecer na capa da Vanity Fair ao lado de Madonna e ser "eleita" por Fiona Apple como sua "maior influência". O que faz com que ela - com sua obra e com sua vida - esteja entre as personalidades mais relevantes do mundo artístico negro do século - que teve cumes de genialidade na Harlem Renaissance, na proliferação de gênios do jazz e do blues, no cinema de Spike Lee, na literatura de Zora Neale Hurston, na guitarra de Jimi Hendrix, na voz de Billie Holliday e Ella Fitzgerald, no trompete de Louis Armstrong e Miles Davis, entre muitos outros...

Seu livro, apesar de profundamente impregnado de temáticas raciais, não deixa de ser um romance muito mais vasto (e muitíssimo bem escrito, com humor e terror na medida certa...) sobre uma garotinha americana que tenta crescer e encontrar seu lugar em meio a um mundo hostil. Ela vai se deparando com mil monstros e assombrações por seu caminho: bem nova, é separada dos pais e enviada, com apenas uma etiquetinha nos pulsos, em direção à custódia da avó; passa pela experiência traumática de ser estuprada e pelo mutismo psicológico subsequente; fica pulando como batata quente de parente em parente, conhecendo São Francisco, St. Louis, o México, tudo repleto de desventuras divertidas, tocantes, dolorosas; vive a experiência de uma gravidez precoce aos 16 anos; e muito mais. Tudo verdade. E tudo sempre sempre narrado por uma voz inconfundível. Na literatura de Maya Angelou a realidade mais crua e cruel é descrita depois de passar pelas lentes de uma percepção de mundo ultra pessoal, sensível e poética.

Sônia Coutinho diz: "Há uma afinidade entre os personagens de Maya Angelou e os oprimidos e humilhados de todas as partes do mundo. Seus livros transmitem a crença de que é possível suportar e vencer a humilhação, alcançar uma individualidade íntegra, mesmo sob o esmagamento da violência física ou psicológica." Por isso a obra de Maya é um sopro de vida tão benéfico em nossas almas - pois afirma que "na luta está a alegria" e que a fraternidade humana pode ser mais do que uma utopia desacreditada e tratada com desdém. Sabemos que a canção de um pássaro enjaulado pode ser bela. Mas a decolagem de um pássaro que bicou o cadeado de sua jaula até estraçalhá-lo talvez seja ainda mais bela. E seu exemplo, essencial.

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Alguns trechos:

"As crianças brancas teriam a oportunidade de se tornar Galileus, Madames Curie, Edisons e Gauguins, e nossos meninos (as meninas não eram sequer mencionadas) tentariam ser JEsse Owenses e Joe Louises. (...) Obviamente, Bailey seria sempre pequeno demais para ser atleta; portanto, que anjo particular aboletado em que mansão tinha decidido que, se meu irmão desejava tornar-se um advogado, primeiro devia pagar penitência por sua pele colhendo algodão e milho e estudando por correspondência à noite durante vinte anos?" (pg. 168)

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"As necessidades de uma sociedade determinam sua ética, e, nos guetos americanos, o herói é aquele homem a quem são oferecidas apenas as migalhas da mesa de seu país, mas, por meio de ingenuidade e coragem, consegue pegar para si mesmo um banquete luculiano. Assim, o zelador que vive num cômodo mas exibe um Cadillac azul como ovo de tordo não é alvo de riso mas de admiração, e a doméstica que compra sapatos de quarenta dólares não é criticada mas estimada. Sabemos que eles utilizaram todos os seus poderes mentais e físicos. Cada ganho separado acrescenta-se aos ganhos do corpo coletivo." (207)

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"Em Stamps, a segregação era tão completa que a maioria das crianças negras não sabia realmente, em absoluto, como eram os brancos. Sabiam que eles eram diferentes, para serem temidos, e nesse temor estava incluída a hostilidade dos destituídos de poder contra os poderosos, dos pobres contra os ricos, do trabalhador contra o patrão e dos maltrapilhos contra os bem vestidos. Lembro-me de nunca acreditar que os brancos fossem realmente reais." (30)

* * * * * *

"Mamãe pretendia ensinar a Bailey e a mim a usar os caminhos na vida que ela, sua geração e todos os negros que tinham vindo antes tinham descoberto, e descoberto que eram seguros. Ela não concordava com a idéia de que se podia falar com os brancos sem arriscar a própria vida. E certamente não se podia falar com eles de modo insolente." (49)

* * * * *

"As pessoas em Stamps diziam que os brancos em nossa cidade eram tão preconceituosos, que um negro não podia comprar sorvete de baunilha. Exceto no 4 de Julho. Nos outros dias, ele tinha de satisfazer-se com chocolate." (51)

* * * * *

"Embora sempre houvesse generosidade na vizinhança negra, ela era oferecida com a dor do sacrifício. O que quer que fosse dado por pessoas negras para outros negros, certamente era necessitado com desespero tanto por quem dava como por quem recebia. Um fato que tornava o dar ou o receber uma troca rica.

Eu não conseguia entender os brancos, nem onde eles obtinham o direito de gastar dinheiro de modo tão perdulário. É claro, eu sabia que Deus era branco também, mas ninguém me poderia ter feito acreditar que ele preconceituoso..."
(52)

* * * * * *

Um poema:

Still I Rise

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
'Cause I walk like I've got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns, with the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I'll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops,
Weakened by my soulful cries.

Does my haughtiness offend you?
Don't you take it awful hard
'Cause I laugh like I've got gold mines
Diggin' in my own back yard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I'll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I've got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history's shame
I rise
Up from a past that's rooted in pain
I rise
I'm a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.

Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that's wondrously clear
I rise
Bringing the gifts that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.