quinta-feira, 30 de abril de 2009

:: coração preenchido com o belo tumulto humano ::


La vie ardente

Mon coeur, je l'ai rempli du beau tumulte humain:
Tout ce qui fut vivant et haletant sur terre,
Folle audace, volonté sourde, ardeur austère
Et la révolte d'hier et l'ordre de demain
N'ont point pour les juger refroidi ma pensée.
Sombres charbons, j'ai fait de vous un grand feu d'or,
N'exaltant que sa flamme et son volant essor

Qui mêlaient leur splendeur à la vie angoissée.
Et vous, haines, vertus, vices, rages, désirs,
je vous accueillis tous, avec tous vos contrastes,
Afin que fût plus long, plus complexe et plus vaste
Le merveilleux frisson qui me fit tressaillir.
Mon coeur à moi ne vit dûment que s'il s'efforce ;
L'humanité totale a besoin d'un tourment
Qui la travaille avec fureur, comme un ferment,
Pour élargir sa vie et soulever sa force.

(Meu coração, eu o preenchi com o belo tumulto humano. Tudo o que foi vivo e ofegante na terra, audácia louca, vontade surda, ardor austero e a revolta de ontem e a ordem de amanhã não esfriou-os, para poder julgá-los, meu pensamento. Carvões escuros, transformei-vos num grande fogo de ouro, exaltando apenas sua chama e seu volante crescimento, que misturavam seu esplendor à vida angustiada. E vós, iras, virtudes, vícios, fúrias, desejos, eu acolho a todos vós com todos vossos contrastes, para que seja mais longo, mais complexo e mais vasto o maravilhoso frêmito que me fez estremecer. Meu próprio coração só vive bem quando se esforça. A humanidade total necessita de um tormento que aja sobre ela com furor, como um fermento, para ampliar-lhe a vida e levantar-lhe a força.)

ÉMILE VERHAEREN (1855-1916)
tradução: Mário Faustino (e alguns remendos)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

:: i'm strickly quarks, particles and blackholes! ::


“Estou muito aliviado em saber que o universo, afinal, é explicável. Já estava começando a achar que o problema era comigo. Como agora se sabe, a física, feito um parente chato, tem todas as respostas. O big-bang, os buracos negros e a sopa primordial aparecem toda terça-feira na seção de ciência do Times e, em consequência, minha compreensão da relatividade geral e da mecânica quântica agora se equipara ao conhecimento que tenho de Einstein. O Einstein da loja Einstein Moomjy, o famoso vendedor de tapetes de Nova York. Como é que pude ignorar que existem no universo coisas minúsculas, do “comprimento de Planck”, que têm um milionésimo de um bilionésimo de um bilionésimo de um centímetro? Imagine como será difícil encontrar uma coisa dessa, se você a deixar cair num cinema escuro. E como a gravidade funciona? E se ela cessasse de repente, alguns restaurantes ainda exigiriam o uso de paletó? O que sei de fato sobre a física é que, para um homem parado na margem, o tempo passa mais depressa do que para um homem no barco – ainda mais se o homem no barco estiver com a esposa. O mais recente milagre da física é a teoria da corda, alardeada como TT, ou “Teoria de Tudo”. Isso pode incluir até o incidente da semana passada, narrado a seguir.

Acordei na sexta-feira e, como o universo está em expansão, levei mais tempo do que o habitual para achar o meu roupão. Isso me fez sair tarde para o trabalho e, como a noção de alto e baixo é relativa, o elevador que peguei foi parar no terraço, onde foi difícil conseguir um táxi. Por favor, tenham em mente que um homem dentro de um foguete que se aproxima da velocidade da luz pareceria estar indo na hora para o trabalho – ou até um pouco adiantado, e sem dúvida mais bem vestido. Quando, enfim, cheguei ao escritório e me dirigi ao meu patrão, o senhor Muchnick, a fim de explicar o meu atraso, minha massa aumentou à medida que eu me aproximava, o que meu patrão entendeu como um sinal de insubordinação.

Houve uma conversa bastante ríspida sobre reduzir o meu salário, o qual, medido no parâmetro da velocidade da luz, é de todo modo muito pequeno. A verdade é que, em comparação com a quantidade de átomos da galáxia de Andrômeda, eu de fato ganho muito pouco. Tentei dizer isso ao senhor Muchnick, que respondeu que eu não estava levando em conta que tempo e espaço são a mesma coisa. Jurou que, se a situação mudasse, me daria um aumento. Sublinhei que, uma vez que tempo e espaço são a mesma coisa, e levo 3 horas para fazer algo que no final fica com menos de 18cm de comprimento, não dá pra vender isso por mais de 5 dólares. O lado bom de tempo e espaço serem a mesma coisa é que, se você viaja para as regiões remotas do universo e a viagem leva 3 mil anos terrestres, os seus amigos estarão mortos quando você voltar, mas você não vai precisa de Botox.

De volta ao meu escritório, com a luz do sol entrando com força através da janela, pensei comigo que, se a nossa grande estrela dourada explodisse de repente, este planeta voaria para fora de órbita e sairia zunindo pelo infinito para sempre – mais uma boa razão para a gente levar sempre um telefone celular. Por outro lado, se um dia eu pudesse me mover numa velocidade superior a 300 mil km por segundo e recapturar a luz nascida séculos atrás, será que poderia voltar no tempo para o Egito Antigo ou para a Roma Imperial? Mas o que eu iria fazer lá? Dificilmente acharia alguém conhecido.

Foi nesse momento que nossa nova secretária, a senhorita Lola Kelly, entrou. Agora, na polêmica em torno da questão de tudo ser feito de partículas ou de onda, a senhorita Kelly é positivamente feita de ondas. Dá para verificar que ela é feita de ondas toda vez que caminha até o bebedouro de água gelada. Não que ela não tenha boas partículas, mas são as ondas que conseguem para ela as bijuterias da Tiffany. Minha esposa também é mais ondas do que partículas, só que as ondas dela começaram a despencar um pouco. Ou talvez o problema seja que minha esposa tem quarks demais. A verdade é que, ultimamente, ela parece que passou perto demais do horizonte de eventos de um buraco negro e uma parte dela – não toda, de maneira alguma – foi sugada. Isso lhe dá um formato meio gozado, que espero ser remediável mediante a fusão fria. Meu conselho para qualquer pessoa sempre foi evitar buracos negros, porque, uma vez lá dentro, é extremamente difícil conseguir sair e ainda conservar o ouvido para a música. Se por acaso você despencar por um buraco negro e emergir do outro lado, provavelmente vai viver sua vida inteira muitas e muitas vezes, mas vai ficar compactado demais para sair e encontrar garotas.

E assim me aproximei do campo gravitacional da senhorita Kelly e pude sentir minhas cordas vibrarem. A única coisa que sabia era que eu queria embrulhar meus bósons de calibre fraco em volta dos glútons dela, deslizar por um buraco de minhoca e adentrar por um túnel quântico. Foi nessa altura que fiquei impotente em virtude do princípio de incerteza de Heisenberg. Como eu poderia agir se não consegui determinar a posição e a velocidade exatas dela? E se de repente eu causasse uma singularidade – ou seja, uma devastadora ruptura no espaço-tempo? Isso é tão barulhento. Todo mundo ia olhar e eu ia ficar sem graça diante da senhorita Kelly. Ah, mas a mulher tem uma energia escura tão boa. Energia escura, embora hipotética, sempre foi para mim um choque estimulante, sobretudo numa mulher que tem sobremordida. Na minha fantasia, se eu pudesse levá-la para o interior de um acelerador de partículas durante cinco muntuos com uma garrafa de Château Lafite, eu estaria ao seu lado com os nossos quanta se aproximando da velocidade da luz, enquanto o seu núcleo colidia com o meu. Claro, exatamente nesse instante caiu um cisco de antimatéria no meu olho e tive que arranjar um cotonete para removê-lo. Eu tinha perdido quase toda a esperança, quando ela se virou para mim e falou:

- Desculpe – disse – Eu ia pedir um café e um bolinho, mas agora parece que não consigo me lembrar da equação de Schrödinger. Não sou mesmo uma tola? Simplesmente se apagou da minha memória.


- Evolução das ondas de probabilidade – falei – E se você vai fazer um pedido ao garçom, eu gostaria muito de um bolinho inglês com múons e chá.

- Com todo prazer – respondeu, sorrindo com ar de coquete e curvando-se numa forma de Calabi-Yau. Pude sentir miha constante de acoplamento invadir o campo fraco da senhorita Kelly à medida que eu pressionava meus lábios nos seus neutrinos molhados. Aparentemente, consegui alcançar uma espécie de fissão, porque o que percebi depois disso foi que eu estava me levantando do chão com um olho roxo do tamanho de uma supernova.

Acho que a física pode explicar tudo, menos o sexo frágil, mesmo assim contei para a minha mulher que fiquei com o olho roxo porque o universo estava em contração, e não em expansão, e na hora eu estava distraído."



[WOODY ALLEN. Fora de Órbita.]

segunda-feira, 20 de abril de 2009

:: Till evasions gave in to its song ::


For Life I had never cared greatly,
As worth a man's while;
Peradventures unsought,
Peradventures that finished in nought,
Had kept me from youth and through manhood till lately
Unwon by its style.

In earliest years--why I know not -
I viewed it askance;
Conditions of doubt,
Conditions that leaked slowly out,
May haply have bent me to stand and to show not
Much zest for its dance.

With symphonies soft and sweet colour
It courted me then,
Till evasions seemed wrong,
Till evasions gave in to its song,
And I warmed, until living aloofly loomed duller
Than life among men.

Anew I found nought to set eyes on,
When, lifting its hand,
It uncloaked a star,
Uncloaked it from fog-damps afar,
And showed its beams burning from pole to horizon
As bright as a brand.

And so, the rough highway forgetting,
I pace hill and dale
Regarding the sky,
Regarding the vision on high,
And thus re-illumed have no humour for letting
My pilgrimage fail.


(THOMAS HARDY)


(Com a vida jamais me importei muito, como coisa que valesse a pena humana. Acasos, aventuras não buscadas, conjeturas, aventuras dando em nada, mantiveram-me, desde a juventude, e na madureza, e até recentemente, inconquistado pelo estilo dela.

Nos primeiros anos - não sei por que motivo - olhei-a de soslaio; condições de dúvida, condições que lentamente se esgueiravam, talvez por acaso me tenham forçado a permanecer de pé, sem demonstrar atração por sua dança.

Então, com suaves sinfonias, doces cores, ela me cortejou. Até que as evasões pareceram-me erradas, até que as evasões se deixaram vencer pela canção dela, e animei-me, até que viver distante pareceu mais insípido que viver entre os homens.

Mais uma vez nada encontrei onde deter o olhar, até que ela, erguendo a mão, despiu uma estrela, despiu-a de neblinas remotas e expôs seus raios brilhando no horizonte ao pólo, resplandecentes como tochas.

E assim, olvidando a áspera estrada, passeio por colinas e por vales, contemplando o céu, contemplando a visão superior, e assim reaceso não tenho coragem de deixar que fracasse minha peregrinação.)

(trad: Mário Faustino)

domingo, 19 de abril de 2009

:: you better blow your kiss goodbye to life eternal ::


Lá no Depredando o Orelhão, Antro da Pirataria Digital onde sou o Cabeça da Quadrilha, pus uma homenagem ao aniversário de 15 anos do "Grace", magnífico álbum de estréia do finado Jeff Buckley. É um dos discos que eu mais ouvi na vida (e com que ardor!) e que ainda hoje, depois de anos e anos de convivência, continua a me comover e me deixar perdido em admiração. Glue there!

Atingimos esses dias a espantosa marca de 50.000 visitas (o Morumbi tá ficando pequeno para a turminha depredística!). Sem falar que, tempos atrás, também já tínhamos deixado Jesus Cristo no chinelo, conquistando uma dezena de discípulos a mais do que o obsoleto profeta. Não escondo minha alegria ao descobrir que o crime compensa tanto assim! Agora novos projetos e idéias estão borbulhando para o blog: mais entrevistas exclusivas com bandas nacionais, mais matérias sobre os que batalham na independência, mais pet-sounds e podcasts (vem aí a Rádio Depredando!), sem falar de fornadas cada vez mais frequentes de "pães quentinhos".

Inclusive instalei - por aqui e por lá - uns anunciozinhos do Google, para ver se faturamos um troco em recompensa pelo trampo árduo que dá fazer o blog e mantê-lo atualizadinho, com 2 ou 3 posts novos por semana. As almas caridosas que quiserem tacar uma moedinha na minha xicarazinha de mindingo, favor clicarem aí nos reclames-do-plim-plim...

Fiquei me perguntando, antes de tomar essa decisão: será que é uma atitude "mercenária" da minha parte? Tô sendo movido pelo desemprego a apelar para técnicas anti-éticas de arrecadar capital? Isso é uma tentativa criminosa de lucrar em cima do trabalho artístico alheio? Sou um bandido digital, um trombadinha internético, que as autoridades deveriam pôr em cana? Foi um pouco essa a polêmica que surgiu dentro a Equipe Depredando em relação aos anúncios: o Bernie com medo de sermos processados e alertando que tem muito nêgo indo pro xilindró por isso, o Marcolito questionando se era ético ou não colocar essas iscas publicitárias por ali, e eu também um tanto dividido e dilemado...

Me defendo dizendo que considero o blog muito mais como um Espaço Comunitário onde Compartilhamos Cultura, muito mais centrado em Jornalismo, Crítica Musical e Análise Cultural do que promovedor da pirataria mais deslavada. O links para baixar os discos são certamente o maior atrativo, aquilo que chama todas essas multidões de visitantes (cerca de 1.000 por semana), mas por aqui a ênfase sempre foi no conteúdo, na crítica bem feita, nos textos bem-escritos e pormenorizados, no ecletismo de gêneros, na informação detalhada, o que aliás é um belo diferencial entre o Depredando e as centenas de outros blogs que são somente fábricas de links.

Considero ainda que neste imenso Oceano de Informação que é a Internet, com tantos milhões de músicas disponíveis para download, a sensação de desnorteamento do amante de música tende a ser cada vez maior, de modo que um blog como esse, no fundo, teria a função pra lá de relevante de ser uma espécie de FILTRO, através do qual só passam os conteúdos, pescados deste imenso mar digital, que achamos que valem a pena ser conhecidos - ao mesmo tempo que damos a chave, de mão beijada, que abrem as portas certas. A palavra chave não é "pirataria", mas "compartilhamento". Isso aqui é o COMUNISMO CULTURAL invadindo o mundo digital e não há muito o que as autoridades possam fazer para impedir essa epidemia de se disseminar...

Pois é fato que as coisas estão mudando num ritmo frenético: nesta década que decorreu desde a criação do Napster, em 1999, até hoje, com essa epidemia de blogs e torrents e iPods, todo o império da indústria fonográfica entrou em colapso. Não há símbolo maior do que este: a megastore da Virgin em Nova York, uma das mais faraônicas lojas de CD do Planeta Terra, fechou suas portas faz pouco e foi substituída por uma loja de roupas de um coreano ambicioso, a Forever 21 - como conta matéria na última Piauí. O modo como consumimos música jamais será o mesmo e não duvido que, em alguns anos, lojas de CD tornem-se tão obsoletas quanto as de máquinas de escrever ou videocassetes. Como diziam as palavras geniais Bob Dylan, décadas atrás, quando ele tentava varrer os esqueletos que atravancam a estrada do tempo:

"Come mothers and fathers
Throughout the land
Don't criticize
What you can't understand
Your sons and your daughters
Are beyond your command
Your old road is rapidly agin'.
Please get out of the new one
If you can't lend your hand
For the times they are a-changin'..."

quarta-feira, 15 de abril de 2009

:: coisas da bulgária! ::


Hmmm! Tô ficando chique! Saiu essa semana minha primeira matéria-de-capa pra Revista O Grito #71 (agora com novo lêiaute!), falando sobre a big-band mais cool do Brasil, os búlgaro-brasilienses do Móveis Coloniais de Acaju. Prestes à estourar no pop nacional, como indica a profecia de Luxtradamus, os caras, que tão pra lançar o 2o álbum, bem mereciam tal destaque. Considero aquele fodástico álbum de estréia um dos grandes discos nacionais da década, sem dúvida (disputando o ouro com Ventura). Depois que os Los Hermanos se aposentaram, aliás, foram eles que assumiram o posto de minha banda brazuca predileta, se bem que disputando com o grunge made in Acre dos Porongas (escrevi sobre eles para o Depredando o Orelhão!), o trip-hop com voz de sereia do Bluebell e o folk bacanudo dos mineiros do Transmissor, tudo bandas que aprecio mutcho! Deixo aí uma das músicas novas que mais curti, "Cão Guia", ao vivo:




Na mesma edição, fiz ainda uma resenhola sobre "Valsa Com Bashir", animação israelense, poética e "cabeça", perturbadora e cheia de beleza, que narra os horrores da Guerra do Líbano. O filme, que é uma meditação sobre a crueldade humana e as vicissitudes da memória, papou Globo de Ouro e César de filme estrangeiro no ano passado, além de ter sido indicado ao Oscar da categoria. É um filmaço! Deixo aí embaixo o trailer...

p.s.: a Revista que se cuide, porque eu sou pé-frio pra caralho: da última vez que fiz uma matéria de capa, o veículo que teve a má idéia de me dar essa honra simplesmente FALIU. Pode?! E logo com uma façanha que me deu o maior orgulho: entrevista exclusiva com a Casey Dienel, a meiga pianista cantante que foi minha mais intensa paixão platônica norte-americana. O bom é que fiquei lá, na Rabisco, experimentando um "gostinho de eternidade": capa eterna!


terça-feira, 14 de abril de 2009

:: Anna Karenina ::

Greta Garbo como Anna Karênina

TOLSTÓI
"Anna Karênina"

:: NOTAS DE LEITURA ::


Ah! Foi de longe um dos melhores livros da minha vida, lido com ardor, com fome, com pressa, com amor! Eu já manjava da manjadíssima história de Anna Karenina, ainda que resumida, distorcida e mutilada. Até porque o enredo é tão amplamente conhecido que muita gente se abstêm de ler o livro com este pretexto péssimo: “ah, mas eu já sei o que vai acontecer!” Pois eu também já sabia, como todo mundo, em linhas gerais, o que “acontecia”. Mas agora percebo que o que eu tinha eram apenas pequenas migalhas de informação sobre as aventuras sentimentais da desventurada Ana Karenina, uma das adúlteras mais famosas da história da literatura, que não chegavam nem perto de passar uma idéia adequada da estatura dessa inesquecível personagem: uma lady da elite russa que abandona-se a uma avassaladora paixão extra-marital e é levada pelo trem desgovernado do destino a suicidar-se nos trilhos da desilusão.

Agora sei o quanto eu perdia só conhecendo o enredo através de filmes e de-ouvir-dizer - e olha que poucos romances clássicos foram mais adaptados para o cinema e para a TV do que este: contam-se pelo menos umas 15 versões, inclusive algumas de muito luxo, com Ana Karenina encarnada na telona por vedetes hollywoodianas de primeira estirpe, de Greta Garbo a Vivien Leigh... Mas claro que é impossível, em 2 ou 3 horas de película, realizar uma transposição que chegue aos pés do gigantesco e monumental romance de Tolstói: a leitura deixa uma cicatriz muito mais profunda na nossa carne, coração e memória do que quaisquer versões de 2a linha de Anna Karenina. E, aliás, pra quê ficar nos xerox ao invés de agarrar a gema genuína?!

Além disso, obviamente o livro não se reduz a narrar as façanhas e desventuras sentimentais do triângulo amoroso Ana-Vronski-Karênin, sendo que o casal Liêvin e Kitty tem um peso e uma importância enormes no romance, sendo injustamente omitidos e excluídos das adaptações pro cinema e de muitos comentários que se faz sobre a obra. Eu, pessoalmente, acho Liêvin um personagem tão marcante (se não for mais!) quanto Ana! É em Liêvin, uma espécie de alter-ego de Tolstói, que se concentram os grandes dramas metafísicos (a batalha para compreender a morte, os dilaceramentos do aguardo do filho, a busca pelo sentido da vida), as grandes metamorfoses sentimentais (da idealização à dor da rejeição, do isolamento ao reencontro do amor, do desejar-em-vão à aventura sem certezas do casamento...) e as discussões políticas mais relevantes que recheiam o romance (com toda a análise da situação agrária da Rússia, dos movimentos sociais revolucionários e do combate entre diferentes concepções sobre os camponeses e os modos ideais de organizar o trabalho...). Faço aqui, pois, ainda com a memória fresca e o coração ainda pulsando sob o efeito da leitura, algumas impressões e viagens sobre Anna Karenina, esta magistral obra-prima!


* * * * *

[ IDEALISMO, DESENCANTO E REENCONTRO: Liêvin e Kitty ]

Somos apresentados à Liêvin quando ele se encontra em estado de encantamento: enternecido, repleto de esperanças, sonhando mil felicidades radiosas que viverá junto à Kitty, a princesinha encantada que ele pretende pedir em casamento, trêmulo de temor e de desejo! No princípio, a idealização é o que domina a sua percepção da realidade – uma realidade vista através das míopes lentes do amor, que distorcem tudo para melhor!...

Quando Kitty vai a ele, é o Sol que se aproxima - e não se olha direto nos olhos do Astro-Rei sem calcinar as retinas! Onde quer que ela esteja, este lugar torna-se um "santuário inacessível" e o sorriso dela "o transporta a um mundo de magia, em que se sente enternecido e dulcificado como só raras vezes se lembrava de se ter sentido na primeira infância." (30) "Para ele as mulheres do mundo se dividiam em duas classes: a primeira incluía todas, exceto Kitty, e essas tinham todas as fraquezas humanas, sendo absolutamente vulgares. Na segunda, só cabia ela, que não tinha fraqueza alguma e pairava muito acima de tudo o que era humano." (37) Liêvin estava apaixonado e por isso Kitty lhe parecia uma criatura tão perfeita em todos os sentidos, tão para além das coisas terrenas, quando ele, pelo contrário, era um ser baixo e mundano, que não podia pensar sequer que ela e os outros o considerassem digno de aspirar à sua mão." (24-25)

Ele, que conhece o Banquete de Platão, e certamente se vê como encarnação do que chamamos de um "amante platônico", diz: "os que só compreendem o amor não-platônico, esses não têm o direito de falar de dramas. Com um amor dessa classe não pode existir nenhum drama. 'Agradeço-lhe muito o prazer que me proporcionou, e adeus...'" (41). Esse idealismo todo só pode mesmo ter uma fonte - e Tolstói não precisa ter lido Freud para diagnosticá-la: fixação materna. "Embora mal se lembrasse da mãe, Liêvin mantinha um verdadeiro culto de sua memória e parecia-lhe impossível desposar uma mulher que não fosse a encarnação desse ideal adorado. Não concebia o amor fora do casamento" (83).

Kitty, porém (e aí começa o drama eterno, sempre repetido!), está dividida entre os cortejos de Liêvin e Vronski, dilacerada pela dúvida tão comum a tantas moçoilas: quem escolher?! "Quando recordava o passado, era com prazer e ternura que evocava sua intimidade com Liêvin. As recordações de infância bem como a amizade de Liêvin com o falecido irmão nimbavam de um encanto especial e poético suas relações com ele. O amor que Liêvin lhe tinha, amor de que ela estava certa, inundava-a, enchendo-a de contentamento. Era-lhe agradável lembrar-se de Liêvin. Pelo contrário, ao pensar em Vronski uma espécie de mal-estar a assaltava... Com Liêvin sentia-se completamente sincera e tranquila. Todavia, se pensava no seu futuro com Vronski, o futuro aparecia-lhe brilhante e feliz, enquanto com Liêvin lhe surgia nebuloso." (45) E ela escolhe aquilo que nós, leitores, certamente vamos acabar considerando como o Caminho Errado: pois o narrador de Tolstoi, num arroubo de parcialidade, nos garante sem rodeios que "a maneira como Vronski a estava tratando tinha um nome específico: tentativa de sedução sem intenções matrimoniais, má ação corrente entre jovens arrogantes como ele." (53)

Tolstói também conhece muitíssimo bem a Dor da Rejeição, que carrega alguns de seus personagens a cumes de sofrimento e perdição. Kitty, quando é rejeitada por Vronski, obviamente cai doente e fica à beira da morte - e Tolstói também não precisou ler Freud para ter o insight genial do que significa uma "enfermidade psicosomática". Não se cura com matéria um espírito dilacerado! E é isso que Kitty percebe: "Sua doença e os tratamentos que lhe impunham pareciam-lhe tolos e ridículos. Tratá-la dessa maneira era tão absurdo como apanhar do chão pedaços de um vaso partido e tentar colá-los. Tinha o coração despedaçado e queriam curá-lo com pílulas e pós?" (105) O orgulho ferido também demora a cicatrizar: "cem anos que eu viva, nunca poderei esquecer esta afronta!", garante Kitty.

O baque da rejeição de Kitty também é terrível para o inconsolável Liêvin. Tendo depositado tão imensas esperanças nela, ele também não pode deixar de sentir-se como um vaso quebrado em mil cacos ao ser preterido. "A culpa é minha. Com que direito pensei eu que ela estivesse disposta a unir a sua à minha vida? Quem sou eu? Que sou eu? Um homem inútil, de quem ninguém precisa..." (74) Por mais que se dedique aos trabalhos agrícolas e que se isole no campo, por mais que o tempo passe agindo com lenta mas certeira terapia (time heals all wounds...), por várias vezes "a injúria do repúdio trespassava-lhe de novo o coração como uma ferida recente." (146)

Ainda que grogue do golpe, Liêvin persevera: as feridas de amor também geram frutos de sabedoria. "Decidiu que daí em diante não poria as suas esperanças numa felicidade extraordinária, como a que esperara do casamento, e que, por conseguinte, não iria menosprezar tanto o momento presente", pensa (81). Desiludido no amor, Liêvin procura a satisfação e a beatitude no trabalho braçal, no contato concreto com os camponeses, num "mergulho" na terra - ele, que quis o céu, agora procura resignar-se, asceticamente, a uma fatia de pão e um copo d'água. Oblonski, a certo ponto, o confronta: "Tu não admites que uma pessoa possa desejar guloseimas quando já tem sua ração de pão. Na tua opinião é um crime, mas eu não admito que se possa viver sem amor." (138) E Liêvin, aos poucos, verá que seu "romantismo" não foi inteiramente assassinado pelo primeiro "não" de Kitty e que ela permanece sendo sua "musa".

* * * * *

[“TINHA POR NOIVA A PERFEIÇÃO PERSONIFICADA..."]

Quando os pombinhos se reencontram e se re-encantam, Liêvin "sente-se em tal altura que tinha vertigens" (318). Uma maré de bondade passa a jorrar do peito deste enamorado: "Liêvin tinha a impressão de ver a alma das pessoas por pequenos pormenores, até então imperceptíveis, e comprovar que todos eram bons." (329)

O que se desencadeia é nada menos que uma EPIDEMIA DE AMOR: "Liêvin teve a impressão de que o esperavam e que se sentiam contentes por compartilhar da felicidade dele, como, aliás, todos com quem privava naqueles dias. Era extraordinário não só como todos o estimavam mas até mesmo como aqueles que lhe tinham parecido antipáticos, frios e indiferentes pareciam entusiasmados com ele. (...) Participavam da convicção em que ele vivia, de que era o ser mais feliz do mundo, uma vez que tinha por noiva a perfeição personificada." (355)

O casamento, porém, é uma aventura misteriosa rumo ao coração do desconhecido. "Exatamente como aquele que depois de admirar o barquinho que singra, sereno e ligeiro, pelas águas de um lago, verifica, ao pôr os pés a bordo, que não basta ir quieto lá dentro, mas que é preciso estar atento a todo momento ao rumo a seguir e à água que lhe corre por baixo, e que tem de remar e que lhe doem as mãos não acostumadas aos remos, outro tanto ocorria com o seu casamento. Em sima: era bem mais fácil olhar, pois, o barco que fazê-lo singrar." (391)

* * * * *

["ESSA MULHER ME É MAIS PRECIOSA QUE A PRÓPRIA VIDA...."]

"Ana Karenina era uma grande dama e esposa de uma das personalidades mais importantes de São Peterburgo". Mas Dolly fareja algo de podre no reino dos Karênin: "havia qualquer coisa de falso na maneira de viver daquela família". Logo depois de conhecer Vronski e inflamar-se por ele - combustão espontânea de material inflamável - ela julga seu próprio marido, em contraste, como o cúmulo do ridículo. Numa das cenas mais cômicas do romance, deixa escapulir, estando já encantada por seu futuro amante, a repulsa pelo marido: 'Meu Deus! Por que lhe terão crescido tanto as orelhas?'" (90) A paixão, repentina, violenta, faz com que ela apareça como "o terrível resplendor de um incêndio numa noite escura" (124).

Já Vronski é descrito, a princípio, como um boêmio um tanto fanfarrão: "As pessoas do seu meio dividiam a humanidade em duas categorias opostas: a primeira, de gente vulgar, estúpida e sobretudo ridícula, supõe que os maridos devem ser fiéis às suas mulheres, as donzelas puras, as mulheres castas, os homens corajosos, firmes e moderados, e que devem educar os filhos, ganhar a vida, pagar as dívidas e outras frioleiras do mesmo gênero. Esta era a gente antiquada e ridícula. A segunda, pelo contrário - a gente da 'alta' -, à qual eles se vangloriam sempre de pertencer, preza a elegância, a generosidade, a audácia, o bom humor, entrega-se sem pudor a todas as paixões e ri-se de tudo o mais." (98) Ademais, vê heroísmo e nobreza nesta "tentativa de conquista": "homem que persegue uma mulher casada e que tudo arrisca para a seduzir tem algo de belo e grandioso e nunca pode parecer ridículo." (112)

Mas, conforme as relações com Ana se intensificam, o sentimento de Vronski passa a uma paixão cruciante "à la Werther": "esta mulher me é mais preciosa que a própria vida" (155), garante. E o narrador o confirma: "O amor que Ana lhe inspirava não era um entusiasmo passageiro destinado, como tantas outras ligações, a desaparecer sem deixar mais vestígios que algumas recordações, alegres ou penosas. Sentia vivamente a falsidade da situação, amaldiçoava as obrigações mundanas que os constrangiam, para salvarem as aparências, a levar uma vida de dissimulação e hipocrisia, a preocuparem-se constantemente com a opinião pública, quando era verdade que todas as coisas estranhas à paixão em que se abrasavam se lhes tinham tornado de todo indiferentes." (155)

"Todas as suas forças, relaxadas e dispersas até então, se enfeixavam e tendiam como que para um fim único e maravilhoso. Vê-la, ouvi-la, viver junto dela, a vida já não tinha para ele outro sentido." (91) Quanto ao marido, esse obstáculo penoso no caminho da consumação de um amor tão desejado, ele o enxerga "com a sensação de um homem que, morto de sede, encontra umas nascente de água pura conspurcada pela presença de um cão, de um carneiro ou de um porco. (...) A ninguém reconhecia o direito, salvo a ele próprio, de amar Ana." (91) Que ímpeto, que energia, que ousadia a paixão não é capaz de despertar num homem!

Mas Ana Karenina, apesar de não ter podido resistir à tentação de entregar-se à essa paixão, não é uma adúltera com boa consciência: ela sofre terrivelmente com seu ato, sentindo-se conspurcada, suja, imoral, como se tomasse para si a opinião da sociedade. "Ana sentia-se tão culpada, tão criminosa, que nada mais lhe restava senão humilhar-se e pedir-lhe perdão. Como já não tinha mais ninguém na vida a não ser Vronski, a ele implorava que lhe perdoasse. Ao fitá-lo, a humilhação a que descera parecia-lhe tão palpável que não sabia pronunciar outra palavra. Quanto a ele, sentia-se como um assassino diante do corpo inanimado da vítima: o corpo por ele imolado era o seu amor, a primeira fase do seu amor. (...) A nudez moral em que caíra esmagava Ana e comunicava-se a Vronski. Seja qual for, porém, o horror do assassino diante da vítima, jamais aquele deixa de sentir a necessidade de esconder o cadáver, de o cortar em pedaços, de colher os benefícios do crime cometido. Então, com uma raiva frenética, lança-se sobre o cadáver e arrasta-o para o despedaçar. Assim Vronski cobria de beijos o rosto e os ombros de Ana." (128)

[ KARÊNIN: UM AUTÔMATO MINISTERIAL]

O marido? "Todos os minutos da sua existência eram contados, e, para poder cumprir o que diariamente lhe competia, via-se obrigado a observar uma pontualidade estrita." (94) Karênin é um homem profundamente egocêntrico, workaholic, incapaz de empatia e em larga medida insensível. É somente o choque da suspeita que surge da infidelidade de Ana que o obriga a pensar no coração da esposa: "Pela 1a vez na vida a imaginação lhe apresentou a vida da mulher, as necessidades do seu espírito e do seu coração: a idéia de que ela teria uma vida pessoal impressionou-o tão vivamente que tratou logo de a sacudir do espírito. Eis o abismo que ele não ousava medir com o olhar. Penetrar pelo pensamento e o sentimento na alma de outrem parecia-lhe uma fantasia perigosa..." (123)

Quanto ao trabalho, ele representa para ele um modo de auto-cegueira voluntária: "ele próprio inventava esse trabalho, que era uma das maneiras de que dispunha para não abrir o cofre onde jazia o afeto para com a família e os pensamentos a respeito dela, pensamentos esses tanto mais terríveis quanto por mais tempo lá permaneciam encerrados." (169) "Meu marido alimenta-se de mentiras!", pensa Ana (174). "Não é um ser humano, é um boneco, um autômato ministerial!", xinga Ana.

Quando Ana revela a verdade – ama outro homem... - o verdadeiro (e horrendo) caráter de Karênin vêm à tona. "A brutal confissão de Ana, confirmando as piores suspeitas de Karênin, ferira-o em pleno coração. (...) No entanto, com uma satisfação em que havia o seu quê de surpresa, sentiu a mesma sensação de alívio do homem a quem acabam de extrair o dente que o fazia sofrer há muito: o choque é terrível, o doente tem a impressão de que lhe extirparam da maxila uma coisa imensa, maior ainda que a sua própria cabeça, mas ao mesmo tempo, sem acreditar muito na felicidade, verifica o desaparecimento dessa coisa abominável que por tanto tempo lhe envenenara a existência." (232)

E, claro, escolhe o caminho mais comum para um marido traído: condenar a esposa adúltera ("é uma mulher perdida, sem coração, sem honra, sem religião!") ao invés de se auto-questionar sobre as razões que fizeram com que ela se sentisse tão mau-amada e solitária a ponto de ir procurar sua felicidade junto a outro coração. Ana transforma-se, aos olhos dele, numa mulher viciosa, depravada, corrupta e suja de lama; enquanto ele, é claro, conserva intacta sua auto-imagem de homem cristão e direito, apesar de ser extremamente óbvio, para o leitor, de que se trata de um marido sem carinho, pouquíssimo afetuoso, gélido e distante, que jamais seria capaz de fazer uma mulher feliz. Em resumo: um homem incapaz de amar. Como não perdoar Ana por tentar, estando dentro dessa jaula, escapar?! Ainda mais quando Vronski lhe promete que não deseja nada além disso: "consagrar minha vida à tua felicidade!" (260)

Tolstói aqui também é brilhante psicólogo: o orgulho ferido de Karênin transforma-se em sadismo, desejo de vingança, ânsia de punição. É a velha história de um marido que diz: "prefiro que ela seja infeliz comigo do que feliz com ele". "A confissão de Ana fizera-lhe nascer no fundo do coração um sentimento que ele não ousava confidenciar a si próprio, isto é, o desejo de a ver expiar no sofrimento o atentado contra o seu repouso e a sua honra" (234). E ainda consegue racionalizar um sentimento tão horrendo de CAUSAR DOR NO OUTRO, dizendo: "ajo de acordo com os preceitos da nossa religião: não repudio a mulher adúltera, dou-lhe a oportunidade de se emendar e até mesmo consagro parte do meu tempo, das minhas energias, à sua reabilitação". Ora, ora, quanta nobreza, santo Karênin! Mereces ser canonizado! (235)


["NUNCA SERIA LIVRE PARA AMAR...]

Ao receber esta terrível carta, Ana "sentiu-se esmagada por uma desgraça terrível, imprevista", que ia "muito além das suas mais negras previsões" (242). O trecho é magistral: "Oh, como é desprezível e vil um homem assim! E pensar que ninguém o compreende e só eu o compreendo. Elogiam-lhe a piedade, a probidade, a inteligência, mas não vêem o que eu vi; todos ignoram que durante oito anos asfixiou tudo que em mim palpita, sem nunca se ter apercebido de que eu sou uma criatura viva e que tinha necessidade de amor; ignoram que me feria a cada momento, que com isso mais satisfeito ficava consigo mesmo. Não procurei eu, com todas as minhas forças, dar uma finalidade à minha existência? Não fiz o possível para amá-lo? E, quando vi que não conseguia, não transferi todo esse amor para o meu filho? Mas chegou uma altura em que comrpeendi que não podia continuar a iludir-me, que era de carne e osso. Tenho culpa de que Deus assim me haja feito? Se preciso de amar e viver?... Esta vida foi sempre um tormento. (...) Ele sabe-o, sabe que eu não posso me arrepender de respirar, de amar; ele sabe que, de tudo o que exige, só mentira e falsidade pode resultar, mas quer a todo transe prolongar a minha tortura. Nada na mentira como um peixe na água..." (243). Cai como uma pedra tumular sobre o Ana, enterrada viva, essa dolorosa certeza: "Nunca seria livre para amar" (243).

A essência da tragédia toda talvez seja essa: o casamento entre Ana e Karênin, que era obviamente uma relação envenenada, insatisfatória e aprisionante, não é desfeito mesmo quando os cônjugues chegam aos mais extremos cumes de ódio e mágoa. Aliás, no romance inteiro não há um só divórcio consumado - também Dolly, quando é traída por Oblonski, acaba por perdoá-lo. Talvez por isso Ana Karenina seja uma personagem tão marcante na história da literatura dos últimos séculos: é o protótipo máximo da mulher infeliz no casamento que, por mais que procure buscar sua felicidade fora dele, não consegue escapar dessa prisão sem se machucar, ser ferida pela sociedade ou se auto-destruir. Nada mais complicado do que escapulir de um matrimônio mortificante, ainda mais numa conjuntura histórica do século 19, onde ainda levava-se muitíssimo a sério o "até que a morte os separe!" com que os padres sagravam aquela relação.

Ana, apesar de "acreditar firmemente na verdade da religião", o que nos leva a supor que também acreditava-se culpada perante o Criador por ter querido romper esse matrimônio sacramentado pelos Poderes Superiores, não consegue evitar o dilaceramento de questionar: "esta religião não lhe impunha, antes de mais nada, a renúncia ao que representava para ela a única razão de vida?" (239) A religião, obrigando-a a permanecer grudada a um homem que não ama, não a condenava ao pior destino humano possível: estar longe do homem que verdadeira ama, só por não ser este seu marido?

O grande vilão talvez seja esse Monstro de Mil Cabeças chamado A Opinião Pública. Muitas ladies "já tinham guardada a lama que lhe atirariam quando chegasse o momento" de "despejar sobre Ana todo o seu desprezo" (147). O maridão corneado, ao receber a confissão de infidelidade da esposa, ao invés de agir dominado pela fúria assassina (um sangrento crime passional poderia muito bem ser o desenlace!), age como um um circunspecto e controlado homem da elite, que tem muito mais pavor de ver manchada sua reputação do que feridas por ver seu coração partido. Olhem só o que Karênin diz a Ana: "Estou ciente, mas exijo que guardes as aparências, até que tome medidas para salvaguardar a minha honra...". Karênin, sendo um cristãozinho ortodoxo, escreve a Ana, depois da confissão desta: "não me reconheço com o direito de romper vínculos que um poder mais alto consagrou. A família não pode estar à mercê de um capricho, de um ato arbitrário, ou seja, do crime praticado por um dos cônjugues..." (235).

O sofrimento é tão intenso e recorrente em Ana que a morte a ronda por muito tempo: no parto do filho de Vronski, por exemplo, ela estava certa de que não iria sobreviver. E é nessa ocasião de agonia que, pela primeira vez, Karenin aparece ao leitor com uma feição mais humana, nobre e compassiva. "Junto ao leito da mulher agonizante, pela primeira vez na vida se abandonara a esse sentimento de comiseração pelas dores alheias contra que sempre lutara como se luta contra uma fraqueza perigosa". É o que Tolstói batiza, lindamente, como "esse enternecimento que a vizinhança da morte facilita" (344). Mas isso não dura. Sobrevivendo, Ana retorna a uma vida que lhe é terrível: algemada e acorrentada a um casamento que lhe tira a vida, gota a gota. "Sou como uma corda tensa que tem de acabar por partir" (350), profetiza.

Ela decerto ensaia muitos levantes e planos de fuga. Por momentos até suspeitamos que ela vá vencer situação tão opressora e conquistar, com o amante, a felicidade que jamais possuiu com o marido. Quando Ana e Vronski viajam, há uma efêmera lua-de-mel idílica, em que Ana "sentia-se muito feliz e era grande a sua alegria de viver. (...) Sentia o que costuma sentir uma pessoa que, prestes a afogar-se, consegue libertar-se de outra que se lhe agarrou ao pescoço, deixando-a morrer. De fato, aquilo não estava certo, mas era a única maneira de se salvar" (379). Mas...

* * * * *

["AQUELE AMOR SOMBRIO E PENOSO..."]

Tolstói também conhece muito bem o drama da Desilusão que assombra os desejos de amor. É com a maestria de um Grande Psicólogo sem diploma, que compreende como poucos as engrenagens do coração humano, que ele espalha pela obra todas as nuances e possibilidades do amor. Quando é jovem e fresca a paixão entre Ana e Vronski, eles acreditam numa extasiante felicidade que os aguarda no radioso futuro que terão juntos. Mas, uma vez reunidos, têm que lidar com as difíceis e amargas realidades. Por exemplo o ciúme: "Aqueles acessos de ciúmes, que ultimamente acometiam Ana com mais frequência, horrorizavam-no. Claro que ainda eram provas de amor, mas nem por isso o assustavam menos, e, conquanto ele não lho mostrasse, arrefeciam o amor que sentia por ela. Muitas vezes dissera para si mesmo que o amor de Ana constituía para ele a felicidade, e agora, que ela o amava como pode amar uma mulher que tudo sacrificou à sua paixão, sentia-se mais longe da felicidade que na época em que abandonara Moscou para a seguir. É que então uma promessa de felicidade brilhava no meio do seu infortúnio, enquanto presentemente os dias de felicidade pertenciam ao passado..." (297)

A famosa "thin line between love and hate" está presente em vários momentos do romance, por exemplo, quando Dolly descobre as infidelidades de Oblonski e desabafa: "É horrível que tudo se haja modificado na minha alma; em ver de amor e de ternura, já não tenho dentro de mim senão ódio, sim, é ódio que eu sinto. Era capaz de matá-lo..." (63).

Ana permanece, o tempo todo, ainda vinculada legalmente ao marido que odeia e considerada "culpada" de adultério e corrupção aos olhos da sociedade. Sem falar que é uma mãe mortificada de saudades por seu filho, a quem chegaram até mesmo a dizer que estava morta. Como não chegaria às raias do completo desespero, amando dois homens - Vronski e seu primogênito - que não pode de modo algum possuir juntos? "Quero que compreendas que amo estes dois seres, creio qqe ama tanto a um como a outro, a Sieroja e Vronski, mas a ambos mais do que a mim mesma. (...) Só quero a estes dois seres e um deles exclui o outro. Não posso reuni-los e são a única coisa de que preciso." (515)

As tragédias se acumulam sobre os pobres ombros da pequena Ana, incapaz de suportá-los por muito tempo. "Vronski olhava-a agora como se olha para uma flor murcha, em que não encontrava já a beleza que o levara a colhê-la." (297) É uma das ocorrências mais tristes de todo o romance - que não possui poucas: o naufrágio das esperanças de Ana (e também das esperanças do leitor!) de que a Bem-Aventurança perfeita fosse se fazer ao lado de Vronski. "Eterno equívoco de quantos julgam a felicidade a satisfação de todos os desejos, também ele [Vronski] apenas obtivera algumas poucas parcelas da ventura com que sonhara. (...) O encantamento foi de curta duração: o tédio o veio substituir." (380) Quando, como remate para uma procissão de sofrimentos, Ana percebe o arrefecimento da paixão de Vronski, esse é como um golpe final que faz desabar todo o seu aparelho psíquico.

"Embora convencida desse arrefecimento no amor de Vronski, Ana não se julgava capaz de remediar esse mal senão oferecendo-lhe um amor cada vez mais ardente e encantos sempre renovados. Aliás, só as ocupações múltiplas durante o dia e as doses frequentes de morfina durante a noite eram capazes de amortecer o medonho pensamento que a torturava: um dia, talvez, Vronski deixaria de a amar, e então que seria dela?" (535)

Essa mulher, profundamente deprimida e atormentada, separada do filho, unida legalmente a um homem que abomina, com a reputação queimada frente à sociedade, nada mais que uma dama perdida e corrupta que se sujou na lama do adultério, tem ainda que suportar isso: ver Vronski, o homem por quem é apaixonada, cada vez mais incomodado por sentir-se "preso" à relação e tolhido em sua liberdade - chegando a fulminá-la com um olhar "glacial e mau, como o de um homem exasperado por uma perseguição" (537)!

Quão mais desesperadora se torna a situação de Ana, mais aumenta o grau de dependência emocional em relação à Vronski - o que chega às raias da loucura, como provam os delírios de ciúme que ela passa a ter quando se aproxima o fim. "Para Ana, Vronski, todo ele, com os seus costumes, os seus pensamentos, os seus desejos, a sua constituição física e a sua maneira de ser, era amor pelas mulheres. E esse amor, uma vez que esmorecera por ela, tinha de estar concentrado algures. No seu ciúme cego via em todas as mulheres a rival. (...) Os ciúmes enchiam Ana de indignação, e ela, aliás, não fazia outra coisa senão procurar motivos para se indignar..." (594)

Tolstói atinge assim um clímax tão intenso de sofrimento como poucas vezes se conseguiu na história da literatura. Os momentos finais da vida de Ana são algumas das cenas mais desesperadas, angustiantes e asfixiantes de se ler dentre tudo que já foi criado pelo espírito humano. Dominada por uma "estranha força maligna" (567), Anna Karenina é totalmente engolfada e subjugada por uma maré de negro e incurável niilismo suicida. Transformada numa sádica por tanto ter sofrido, quer punir Vronski com sua morte, decerto: "quando eu estiver morta, ele há de arrepender-se da sua conduta, há de chorar por mim, amar-me-á...".

"Ana compreendeu que o destino estava jogado. A morte representou-se-lhe então como a única maneira de castigar Vronski, de lhe reconquistar o amor, de triunfar na luta que o espírito maligno que se lhe havia alojado no coração travava com aquele homem. (...) O essencial era o castigo. (...) Abandonou-se a esse lúgubre cismar. Que pensaria ele quando ela tivesse desaparecido? Que remorsos sentiria? 'Como pude falar-lhe tão duramente, como pude deixá-la sem uma palavra afetuosa? E agora desapareceu para sempre, abandonou-nos para nunca mais!..." (603)

Com uma trágica fisionomia, com o coração desgrenhado, a auto-estima atingindo o poço mais profundo possível, Ana dá o passo fatal quando, ao invés de ir procurar a amiga Dolly para desabafar, para ter ao menos um ombro onde chorar, faz a decisão mortífera: "Mais vale calar-me" (608). O mundo inteiro é recoberto pelo fel que Ana espalha por todo canto: todos os seres humanos odeiam-se, o amor não tem nada de alegre, tudo é horroroso! O universo, opressor como um pesadelo, aparece-lhe inteirinho pintado "sob cores hediondas". "Não nos encontramos todos à superfície da terra para nos odiarmos e nos atormentarmos uns aos outros?..." (612). Em meio à "ruidosa multidão de gente absurda" que formigava pela estação, esmagada por uma solidão indizível e absoluta, com o coração completamente esvaziado de amor, Ana sucumbe ao niilismo completo: "Tudo é mentira, tudo é falso, só há engano e maldade..." (614).

"E a vela, à luz da qual Ana lera o Livro da Vida com todos os seus tormentos, todas as suas traições e todas as suas dores, resplandeceu, de súbito, com uma claridade maior do que nunca, alumiando as páginas que até então haviam estado na sombra. Depois crepitou, estremeceu e apagou-se para sempre." (616)

* * * * *

[SOB O IMPACTO DA MORTE: ´”TUDO NOS PARECE NINHARIAS...”]

“Em grandes momentos, bastante raros – em geral momentos de morte -, abre-se ao homem uma realidade na qual ele vislumbra e apreende, com uma fulgência repentina, a essência que impera sobre ele e ao mesmo tempo em seu interior, o sentido de sua vida. Toda a vida pregressa submerge no nada diante dessa vivência, todos os seus conflitos, sofrimentos, tormentos e erros por eles causados manifestam-se inessenciais e rasteiros. O sentido é manifestado, e os caminhos rumo à vida viva são franqueados à alma. E aqui outra vez, com a implacabilidade paradoxal do verdadeiro gênio, Tolstói põe a descoberto a profunda problemática de sua forma e dos fundamentos dela: são os grandes momentos da morte que prodigalizam essa felicidade decisiva...” - GEORG LÚKACS, "A Teoria Do Romance", in: “Tolstói e a extrapolação das formas sociais de vida”, pg. 156, da edição da 34.

Tolstói viveu sob o signo da morte: aos 2 anos de idade, perdeu a mãe. Aos 9, o pai. Já na infância, pois, “compreende pela primeira vez a amarga verdade que preenche sua alma de desespero” (Infância, capítulo XXVII). O fantasma que ainda na velhice o assombrava, fazendo-o escrever A Morte de Ivan Ilitch, já o rondava desde os tempos da meninice. Em Ana Karenina, é seu Liêvin que encarna os grandes dramas do homem em confronto com sua própria fragilidade mortal.

Com a aproximação da morte de seu irmão Nicolau, Liêvin começa a ficar obcecado com a idéia da morte. "Tudo em que pensava se resumia num só pensamento: a morte. A morte inevitável, fim de todas as coisas, surgia-lhe pela primeira vez com uma força invencível. (...) Quanto a saber o que era esse morte inevitável, não só o ignorava e não sabia o que fosse, como nem sequer se atrevia a conjeturá-lo. (...) Esquecera-se de considerar um pequeno pormenor da vida: que a morte chegava e tudo acabaria, que não valia a pena empreender coisa alguma e que contra isso nada se podia fazer." (287)

Quando olha-se de frente para a morte, o grande perigo é ser sugado pelo niilismo. E Liêvin certamente é tentado por esse demônio: "Tudo é vaidade, mais vale morrer!", diz a certo ponto (310). Apesar de amante do trabalho e do esforço, e desejoso de levar uma vida produtiva, ele não está imune aos acessos de desânimo.

"Para te falar com franqueza, gosto muito do meu trabalho e das minhas idéias, mas, quando penso que este universo não é mais que uma camada de bolor na crosta do mais insignificante dos planetas, quando penso que as nossas idéias, as nossas obras, tudo que julgamos fazer de grande, equivale, pouco mais ou menos, a alguns grãos de poeira! (...) Sim, quando nós o compreendemos a fundo tudo se nos afigura sem importância. Quando chegamos à conclusão de que hoje ou amanhã teremos de morrer e que nada ficará, tudo nos parece ninharias..." (310)

Frente a Nicolau agonizante, Liêvin é inteirinho pasmo, confusão e inação - só sabe meditar sombriamente sobre "o mistério terrível da morte que os grandes espíritos haviam tentado sondar, tal como ele, com todas as forças da sua alma" (404). Enquanto ele, ensimesmado e padecente, se debate contra os insondáveis mistérios, é Kitty que, compadecida e ativa, trata dos detalhes materiais (higiene, medicação, socorro) de que necessita o adoentado.

Liêvin, de todos os personagens do romance, é o único que mergulha fundo nas dúvidas existenciais, põe em xeque os dogmas da religião e medita sobre as maiores charadas universais. É ele quem, no começo do romance, chega fazendo aos sábios e eruditos questões metafísicas "infantis", que revelam todo o seu pasmo existencial, deixando todos "chocados" por ser tão "rústico"! "Quando meus sentidos se aniquilam e o meu corpo morre, não há mais existência possível?" (27), pergunta aos “eruditos”, que o desprezam por suas tolas dúvidas. Ah! Mas que belas são as dúvidas dos rústicos e das crianças! Como dizia Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, as perguntas realmente filosóficas são aquelas que uma criança é capaz de formular...

"O meu pecado principal é a dúvida", diz esse homem que, incapaz de acreditar em Deus, ainda assim não escapa dos condicionamentos religiosos - como aquele que nos contou essa imensa lorota que duvidar é sinônimo de pecar... "Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui lançado a este mundo", dizia ele com seus botões. "E, visto que não poderei chegar a sabê-lo, torna-se-me impossível viver. No tempo infinito, na infinitude da matéria, no espaço infinito forma-se um organismo como uma borbulha, mantém-se por algum tempo, depois rebenta. Essa borbulha sou eu!" (633)

Em Ana Karenina, convêm notar, Deus jamais se manifesta: deixa Nicolau agonizar em meio aos mais terríveis padecimentos, “observa” o doloroso parto de Kitty sem fazer com que desçam dos céus anestesias e consolos, e nada faz para desviar o trem que vem para dilacerar Ana em mil pedaços. Bem simbólico deste estado de coisas é esta bela frase: "Ao seu olhar interrogativo, o céu respondia com um altivo silêncio." (231)

E é justamente frente à morte que a tentação de se agarrar à religião é mais forte e difícil de resistir. Tanto que Nicolau, um descrente, em seu leito de agonia, ao receber a extrema-unção, passa por uma sintomática reviravolta e retorna à fé, rezando com fervor. "...havia uma súplica tão veemente e tão esperançada em seus olhos que Liêvin, ao olhar para ele, sentiu-se aterrado. Liêvin sabia que aquela súplica e aquela esperança apenas contribuiriam para tornar mais dolorosa a separação dessa vida que o irmão amava tanto. Conhecia a maneira de pensar de Nicolau, constava-lhe que a sua falta de fé não se dera pelo fato de lhe ser mais fácil viver sem ela, mas apenas porque, a pouco e pouco, as explicações científicas dos fenômenos do universo o tinham afastado dela. Tampouco ignorava, portanto, que aquele regresso à fé não era o resultado de qualquer meditação; não era sincero, mas momentâneo, egoísta, produto de uma desatinada esperança em curar-se." (406)

Que seja absolutamente compreensível, psicologicamente falando, que um ser humano dilacerado de angústia frente à morte se agarre a uma crença consoladora, é fato. Tolstói, como grande psicólogo que foi, não ignora o salto da descrença para a fé que a psique humana tantas vezes realiza quando ameaçada de entrar em colapso por excesso de angústia. Mas isso obviamente não faz com que a realidade seja menos cruel. E Tolstói, como todo grande artista, não tem medo de desenhar com as cores mais pungentes a tragédia da absoluta inutilidade da fé para vencer concretamente a morte. Nicolau pode rezar ardentemente, como nunca havia rezado na vida, mas isso não o impedirá de morrer. Deus, se existiu, jamais abriu uma exceção e permitiu que uma de suas criaturas ficasse na Terra eternamente - o máximo que o cristianismo faz é prometer a eternidade para o além-túmulo, mas jamais para o aqui-agora. Tanto que chega um momento em que o doente "não podia aspirar a outra coisa que não fosse libertar-se do princípio mesmo dos seus males, seu corpo torturado" (409).

O episódio "renova na alma de Liêvin aquele sentimento de horror ante o enigma e a proximidade da morte inevitável. (...) Ainda se sentia menos capaz de compreender o significado da morte e com mais clareza ainda se capacitava de que ela era inevitável. No entando, graças à presença da mulher, esse sentimento não lhe causava desespero; em que pesasse a morte, sentia a necessidade de viver e de amar. Sentia que o amor o salvara do desespero e que perante aquela ameaça o amor se tornava mais forte e mais puro." (410)

O último suspiro do agonizante quase coincide com o primeiro desabrochar da gravidez de Kitty. Se a morte varre, impiedosa, os homens para dentro do nada, o amor, batalhando do seu lado, traz sempre soldados novos em folha para que continue o drama, a comédia, a dilacerante aventura do coração humano! O paralelo que Tolstói traça entre morte e nascimento, como se fossem duas faces da moeda da vida, fica claro quando Liêvin está à espera do filho que Kitty lhe vai dar:

"...estava na mesma situação que um ano antes junto ao leito de agonia do seu irmão Nicolau. Mas então tratava-se de uma desgraça e agora de uma alegria. Tanto aquela desgraça como esta alegria estavam, porém, fora das condições normais da vida, eram como que uma clareira em que vislumbravam perspectivas sobre o além. O que ia acontecer chegava difícil e dolorosamente, tal como quando a alma se elevava, perante esse fato sobrenatural, a alturas inacessíveis, em que nunca se encontrara antes e onde a razão não podia chegar." (573)

Frente à "intensa sensação de impotência" que sente no aguardo do filho, bem similar à que sentia quando aguardava a morte do irmão, Liêvin também se abandona à fé, suplicando para que tudo corresse bem. E ocorre: "como a chamazinha de uma vela", "vacilando", vem ao matadouro chamado mundo a vida de um novo ser... (576)

Liêvin, ao dar o salto para a fé, reconhece a estranheza do fato: "ele, incrédulo, rezara e rezara com uma fé sincera" (631). Mas ao "analisar friamente" esse fenômeno, "o ímpeto para Deus desfazia-se em pó" (632). Está aí a grande contradição da fé: intensamente desejada pelo coração, mas incapaz de ser aceita ou comprovada pela razão, ela causa esse dilaceramento interno em que batalham duas forças, em tumulto, sem possibilidade de paz.

"Desde que vira morrer o seu querido irmão, Liêvin dera-se a examinar pela primeira vez os problemas da vida e da morte através de idéias a que ele chamava novas. (...) Liêvin sentira horror, menos da morte que da vida, por não poder compreender de onde vinha, que era, para que existia ou que representava. O organismo, a sua destruição, a indestrutibilidade da matéria, a lei da conservação da energia e a evolução, eis os termos que tinham substituído a sua antiga fé. Esses termos e os conceitos que lhe andavam ligados serviam para dins de ordem intelectual, mas não explicavam a vida. Liêvin encontrou-se, de súbito, na situação de um homem que houvesse trocado uma peliça que muito bem o agasalhasse por um traje de musselina e que pela primeira vez se sentisse gelar, não graças a raciocínios, mas como todo o seu ser, convencendo-se de que estar assim vestido era o mesmo que estar nu, e que seria inevitável morrer no meio de grandes tormentos. (...) Tinha o sentimento confuso de que as suas pretensas convicções, em vez de dissiparem as trevas em que vivia, ainda as tornavam mais espessas. " (631)

Sob o impacto da certeza de uma morte inelutável, Liêvin "compreendera pela primeira vez que mais nada existia para todos, inclusive para ele próprio, além do sofrimento, da morte e do esquecimento eterno. E decidira ser impossível viver assim, ser preciso encontrar uma explicação qualquer para a vida, de sorte que esta se lhe não apresentasse como uma ironia maligna e diabólica e não o levasse a estourar os miolos." (638)

No fim do romance, Liêvin parece ter uma espécie de "epifania", em que percebe "o milagre permanente que nos rodeia por todos os lados", abraçando não exatamente o cristianismo, mas uma espécie de religião pessoal, simples e singela, baseada em princípios simples: privilegiar a "vida da alma" e “fazer o bem”. "A única manifestação evidente e indiscutível da Divindade está nas leis do bem", filosofa (653).

A mim fica a impressão de que não se deu de fato uma "conversão" do incrédulo Liêvin à fé, mas sim uma compreensão global de que a existência, rodeada por todos os lados pela ameaça da morte, que sempre há de vencer a batalha final e nos lançar no "esquecimento eterno", não possui sentido algum a não ser se for vivida sob a égide dessas forças que propulsionam adiante a aventura humana: o amor e o bem, que são a mesma coisa e as únicas “entidades” dignas de serem amadas como um deus. Por isso, após toda a tragédia terrível que culmina no suicídio de Ana, uma mulher que sucumbe ao niilismo, Liêvin (e Tolstói com ele!) ergue um grito final de sabedoria: "Cada minuto da minha existência terá um sentido inconstestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir!" (654)

domingo, 12 de abril de 2009

:: tolstói ::

:: "O QUE É ARTE?", de Tolstói ::
(ed. Ediouro, 304 pg., trad; Bete Torii)

:: NOTAS DE LEITURA E OUTRAS VIAGENS ::

Depois de ter me deliciado com Anna Karenina, Sonata a Kreutzer, A Morte de Ivan Ilitch e A Felicidade Conjugal, todos eles livros magníficos, corri atrás dessa "polêmica" obra onde Tolstói se mete a teorizar sobre arte - principalmente a dos outros. Tenho a sensação de que é muito melhor botar fé no que fala sobre arte um grande artista, que deu à humanidade algumas das melhores obras literárias que ela já conheceu, do que nos grandes críticos de arte, estes que quase sempre jamais pariram uma obra que preste. Incrível como esses "trabalhos teóricos" de certos artistas iluminam e tornam mais compreensível o trabalho desses grandes mestres! Lembro, por exemplo, do Camus, que escreveu aquele genioso tratado filosófico-existencialista, O Mito de Sísifo, para justificar seu romance O Estrangeiro. Ou de Victor Hugo, que acabou escrevendo um dos mais magníficos e geniais manifestos literários do século XIX com seu William Shakespeare, livro que têm momentos de brilhantismo que se equiparam àqueles de Os Miseráveis.

Mais do que um tratado de estética ou uma coleta de ensaios de crítica de Arte, este "O Que É A Arte?" do Tolstoi é um irado manifesto, ao mesmo tempo demolidor e construtivo, cáustico e utópico. Aqui ataques furibundos contra a arte de seu tempo convivem com sugestões de melhores caminhos a seguir. “A arte do nosso tempo e meio se tornou uma prostituta: está sempre em roupas extravagantes, está sempre à venda; é igualmente sedutora e perniciosa. (...) Há um fluxo imundo dessa arte depravada e lasciva que nos está afogando” (247), lamenta o rabugento Tolstói, este gigante da literatura russa que surge, nestas páginas, vomitando de nojo frente à produção artística de seu tempo e julgando (todo russo é megalomaníaco?) que foi o primeiro e único pensador na história da Estética a descobrir a Verdadeira Essência da Arte!

Radicalmente anti-elitista e anti-burguês, Tolstoi maltrata sem dó a arte das camadas superiores da sociedade - das quais ele parece orgulhosamente se suprimir, como se dissesse: “não pertenço a essa gentalha imunda que é essa gentinha rica e culta!” De modo algum ele aceita que "a arte admirada pelas elites" seja sinônimo de "arte boa":

“Quaisquer que sejam os desatinos cometidos na arte, uma vez que são aceitos na camada superior de uma sociedade, elabora-se imediatamente uma teoria para explicar e legitimar esses desatinos, como se nunca tivesse havido época na história em que certos círculos excepcionais de pessoas que tivessem aceitado e aprovado arte falsa, feia e sem significado, que não deixou traço e foi totalmente esquecida mais tarde.”
(67)

[UM ÓRGÃO DA VIDA DA HUMANIDADE]

Claro que a demolição não é gratuita: ele quer construir algo por cima dos escombros. O livro só é tão raivoso por ser o livro de um idealista, que trucida tudo aquilo que não se harmoniza com o ideal que ele defende e encarna. Para Tolstói, “a arte não é prazer, consolação ou divertimento; é algo grandioso. Ela é um órgão da vida da humanidade, que transmuta a consciência racional das pessoas em sentimento” (271).

A verdadeira e genuína arte certamente não é, para Tolstói, nem aquela que visa fornecer prazer e entretenimento aos seus destinários, nem aquela que procura erigir monumentos à Deusa Beleza, criando objetos que nos encantem os sentidos. Trata-se de escapar da limitação e do mutilamento que seria definir a arte como algo subordinado ao “agradável”, ao “belo” e ao “entretivo”, ao mesmo tempo que se evita o perigo de ver a arte como um fim em si mesmo – o que só pode nos fazer derrapar para o lodaçal da “arte pela arte” que assombra tantos maus capítulos da História das Artes.

A arte, diz Tolstói, é certamente apenas um meio, que deve servir a um Bem maior que ela. Mais ou menos como a canoa do budismo, que nos serve para atravessar os mares turbulentos, mas que não passa de um veículo: o importante de verdade é o que atinge-se na outra margem.

É o Bem, e não a Beleza, o verdadeiro ídolo de Tolstoi. E este Bem, para Tolstói, jamais vai se unir à Beleza – são duas ordens opostas, inimigas: “O conceito de beleza não apenas não coincide com o de bem, mas é até o oposto a ele, porque o bem, na maioria das vezes, coincide com um triunfo sobre nossas predileções, enquanto a beleza é a base de todas as nossas predileções. Quanto mais nos damos à beleza, mais distantes estamos do bem” (96).

A definição de Beleza, por sua vez, é a seguinte:

"Chamamos de beleza, no sentido subjetivo, aquilo que nos traz um certo tipo de prazer. No sentido objetivo, chamamos de beleza algo absolutamente perfeito que existe fora de nós. Mas, como reconhecemos o absolutamente perfeito que existe fora de nós e o percebemos como tal somente porque recebemos um certo tipo de prazer da sua manifestação, significa que a definição objetiva não é senão a subjetiva expressa diferentemente. De fato, ambas as noções de beleza se reduzem a um certo tipo de prazer que recebemos, o que significa que reconhecemos como beleza aquilo que nos agrada sem despertar nosso desejo.”
(64)

Palavras curiosas vindas de um homem que, afinal de contas, escreveu livros tão belos! Pois Tolstói não é Céline, não é Beckett, não é Burroughs, não é Cioran: não escrevia querendo ser feio, grotesco, obsceno, mórbido ou chocante. Dizer que ele não procurava criar coisas belas é só meia verdade: ele via a beleza, na verdade, no contágio. Na empatia. Na união de almas que a arte possibilita e consagra.

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[CONTÁGIO E COMUNHÃO]

As palavras chave na definição dos propósitos da arte, segundo Tolstói, deixam de ser “beleza”, “prazer” e “encantamento dos sentidos”. A arte passa a ter como objetivos o “contágio”, a “empatia”, a “transmissão de sentimentos”. Ela deve ser a expressão que faz o artista de um sentimento íntimo que deseja compartilhar com os outros humanos. Em Tolstói, a arte deixa ser uma oficina onde fabrica-se beleza para tornar-se um campo de batalha onde os artistas (ao menos os genuínos!) procuram unir os homens uns aos outros na mesma corrente fraterna. “Para definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para ela como veículo de prazer e considerá-la como uma das condições da vida humana. Ao considerá-la dessa forma, não podemos deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas.” (72)

Taí a palavra chave: um MEIO DE COMUNHÃO! E como é mais bonito isso em comparação com as hóstias, as missas e as rezas! É através da arte que comungamos, e não na Igreja! Através da arte, criamos pontes que nos salvam dos tormentos do isolamento e das geleiras da solidão. Só através dela, escapo por momentos do fechamento no meu próprio eu, e abro-me para experimentar sentimentos que outros experimentaram, e para imaginar o que outros imaginaram, e para chorar e para rir pelas razões que a outros contentaram ou entristeceram... enfim, abro-me à alteridade, ao renovador e rejuvenescedor contato com o outro, já que nossa mente, como diz a Julia Kristeva, é um “sistema aberto” e relacional, só “renovável” sob a condição de estar em diálogo e em troca afetuosa com outrem.

Donde a definição clássica: “arte é a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também.” (76) A importância dela é incalculável, pois, como um dos principais agentes ou soldados na batalha pela Fraternidade Humana! Pois a Arte é “um meio de intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em direção ao bem de cada homem e da humanidade, unindo-os em um mesmo sentimento.” (77)

Não mais emparedados e enjaulados no nosso próprio eu, pulamos na piscina de outros seres, neles nos banhamos, deles conhecemos os aposentos íntimos, os sentimentos secretos, as idéias inconfessadas, as imagens subjetivas, sendo que a arte “proporciona ao homem acesso a tudo que a humanidade experimentou antes dele no domínio do sentimento e aos sentimentos vivenciados por seus contemporâneos e por outros homens de milhares de anos antes.” (77) “Toda obra de arte, se for verdadeira, é a expressão dos sentimentos mais íntimos do artista” (172).

A arte, portanto, é na verdade um importantíssimo meio na construção da Grande Utopia: a Fraternidade Humana Universal, que diz Tolstói ser o máximo dos máximos em matéria de Ideal, seguindo bem fielmente, neste sentido, a mensagem cristã. E não é de pouca monta, nem pouco impressionante, a conexão que ele estabelece entre esses dois fenômenos: a arte e a utopia da fraternidade humana.

Para Tolstói, uma utópica sociedade onde vigesse uma perfeita fraternidade humana jamais existiria se não houvesse a Arte para nos conduzir neste sentido e em direção a este destino. Só a arte é capaz, se algo o for, de nos conduzir à concretização desse sonho talvez inconcretizável: a irmandade de todos os homens. Quando Tolstoi diz que a “consciência religiosa” de seu tempo baseava-se nisso, queria dizer, talvez, que este Ideal da Fraternidade era o que norteava as opiniões sobre o sentido da vida naqueles idos anos.

Pois então arte não é algo “excepcional”, que fazemos só de vez em quando: somos todos naturalmente artistas, e fazemos arte sem saber, sendo que ela, a Arte, “permeia toda a nossa vida” (78). Quando choramos, querendo contagiar o outro com nossa tristeza, seja ela isca para a compaixão, seja uma farpa de vingança, seja uma súplica da solidão, somos de fato artistas engajados na arte do contágio. Pois fazer arte é querer contagiar: que o outro sinta o que sinto! Que o outro sofra o que sofro! Que ria com o que rio! Que se angustie com meus tormentos! Que pulse comigo, na mesma batida, como se tivéssemos a mesma corrente sanguínea!

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[A RELIGIÃO E O SENTIDO DA VIDA]
Até aí, perfeito. Acompanho Tolstói com muito prazer e assino embaixo de seus ditos. A grande treta entre nós começa quando, depois de ter definido a Arte em termos tão belos – sólidos, materiais, nascendo da necessidade humana de superar o isolamento existencial e ir em busca de uma utópica fraternidade, que é um Sol que convida ao vôo de Ícaro, de baixo para cima, na ascendente, como manda o marxismo! - ele vai e desanda... ele vai e nos trai... ele vai e... mete a Religião no meio!

Por um lado, confia no progresso incessante do conhecimento humano, neste sentido sendo discípulo do Iluminismo: “A humanidade move-se incessantemente de um entendimento mais baixo, mais parcial e menos claro da vida, para um que seja mais alto, mais amplo e mais claro. E, como em todo movimento, nesse também existem líderes – aqueles que entendem o significado da vida mais claramente do que outros – e entre estes há sempre um que, em suas palavras e em sua vida, tenha manifestado de forma mais vívida, acessível e vigorosa, esse significado da vida” (81) – e podemos supor que, como exemplos, ele pensa em Jesus, em Buda e em Sócrates.

Aí vem a polêmica: “As religiões são indicadores da mais alta compreensão da vida acessível em uma dada época” (81), e aí a bagunça está instaurada. Quem falou? O que prova? Concordo que as religiões são poderosíssimas, historicamente falando, e que é verdade que, em quase todos os casos, a idéia sobre o “Sentido da Vida” que faz uma certa sociedade depende diretamente da religião dominante nesta sociedade. Miséria da filosofia. Miséria do homem. Deixar nas mãos de uma dama tão velha, tão cega e tão iludida, a Religião, uma questão de suma importância feito o Sentido da Vida?!? Sai pra lá! Nem morto!

Até porque Tolstoi sabe muito bem o quanto a Relatividade das Culturas impede qualquer certeza inabalável sobre qual seria a “verdade” sobre “o que estamos fazendo aqui”. O que um tempo histórico considera que é o Sentido da Vida define o que este tempo pensa sobre a estética. A boa arte é aquela que serve à esse Sentido da Vida, que vai sempre mudando, de época em época, já que a humanidade, engatinhando e tateando, vai lentamente clarificando o imenso nevoeiro de brumas e sombras do Universo.

“Se a religião coloca o sentido da vida na adoração de um Deus único e no cumprimento do que é considerado Sua vontade, como no judaísmo, os sentimentos transmitidos pela arte e que resultam do amor a esse Deus e à sua lei – a poesia sagrada dos profetas, os Salmos, as histórias no livro do Gênesis – constituem arte boa e elevada. Tudo que se opõe a isso, como por exemplo transmitir o sentimento da adoração de outros deuses, ou sentimentos discordantes da lei de Deus, será considerado arte ruim. Se a religião coloca o sentido da vida na felicidade terrestre, na beleza e na força, a arte que transmite regozijo e o gozo da vida será considerada boa arte, enquanto a que transmite sentimentos de fragilidade e depressão será arte ruim, como se pensava entre os gregos. Se o sentido da vida está no bem da nação ou em em continuar o modo de vida dos ancestrais e reverenciá-los, a arte que transmite o sentimento de alegria no sacrifício do bem pessoal pelo bem da nação ou pela glorificação dos antepassados e manutenção de sua tradição será considerada boa arte, enquanto a arte que expressa sentimentos contrários a esses será considerada ruim, como entre os romanos e os chineses. Se o sentido da vida está em liberar-se do jugo da animalidade, a arte que transmite sentimentos que elevam a alma e humilham a carne será boa, como se considera no budismo, e tudo que transmite sentimentos que acentuam as paixões do corpo será ruim.” (82)


[OS ESCRAVOS DO CAPITAL!]
“Verifica-se, sem exagerar de modo algum, que entre os pensadores contemporâneos nenhum, nem mesmo Karl Marx ou Nietzsche, abalou de tal forma milhões e milhões de homens, para conduzi-los, incontestavelmente, nas direções mais diversas... Nenhum dos revolucionários russos do século XIX franqueou tanto a caminho a Lênin e Trotsky quanto este conde anti-revolucionário, que foi o primeiro a se opor ao Czar e que, perseguido pela excomunhão do Santo Sínodo, deixou a Igreja... Nenhum homem contribuiu tanto para radicalizar a Rússia quanto o radicalismo intelectual de Tolstói; nenhum encorajou tanto seus compatriotas a não recuar diante de nenhuma ousadia. A despeito de sua oposição interior, merece Tolstoi um monumento na Praça Vermelha. Assim como Rousseau é o precursor da Revolução Francesa, Tolstoi foi o precursor, o verdadeiro predecessor da Revolução Russa. (...) Todo homem de Estado, todo sociólogo, descobrirá, na sua crítica aprofundada da nossa época, visões proféticas; e todo artista se sentirá entusiasmado pelo exemplo deste poeta que torturou sua alma por querer pensar por todos e combater, pela força da palavra, a injustiça da terra.” - STEFAN ZWEIG (em "O PENSAMENTO VIVO DE TOLSTÓI")


“Libertem os escravos do capital e será impossível produzir uma arte tão refinada!”, esbraveja Tolstói, soando quase como um inflamado bolchevique da Revolução de 1917. Tanto que não soa nada absurdo a Zweig ver nele um precursor de Lênin: já que Tolstói foi um artista que se levantou contra os privilégios da nobreza, contra as pretensões das elites culturais, esmagando grandes ícones da arte admirada e bajulada pelos ricaços, reduzindo a pó grande parte dos artistas mais amados por aqueles que se fazem de entendidos!

“A maioria das obras de arte das classes superiores (...) nunca foi mais tarde entendida nem admirada pelas grandes massas e permaneceu o que sempre foi: uma diversão para as pessoas ricas de seu tempo” (103). “Para a vasta maioria dos trabalhadores, nossa arte, inacessível a eles em razão de seu preço, também lhes é estranha em seu próprio conteúdo, pois transmite os sentimentos de pessoas muito afastadas das condições de vida de grande parte da humanidade” (104). É surpresa que a Revolução Russa tenha explodido justamente na nação por onde passou mais forte o furacão Tolstoi?!

O elitismo é o grande inimigo deste defensor entusiástico de uma arte que seja simples, singela e compreendida por todos - já que dizer que uma obra é boa mas incompreensível é o mesmo que dizer que um tipo de alimento é muito bom, mas as pessoas não conseguem comê-lo” (136). A boa arte é sempre arte compreensível pela gente mais simples – e Tolstói cita como exemplos as parábolas do Evangelho, as narrativas homéricas da Ilíada e da Odisséia, os contos de fada, as canções populares, os hinos védicos etc. Talvez valha a pena perguntar: mas e a Educação Estética e o Desenvolvimento do Gosto, não existem? A sensibilidade humana não é passível de ser apurada, aperfeiçoada e expandida? Não é muita temeridade dizer que “a arte afeta as pessoas independentemente de seu grau de desenvolvimento e instrução” (138)? Isso quando sabemos, por exemplo, que é preciso muito “treino do ouvido” para que sejamos capazes de ouvir Mozart e Beethoven depois de termos passado a vida soterrados pela música pop! Ou muito “apuramento do olhar” para que, depois de tantos hollywoodianos, sejamos capazes de degustar um Bergman, um Kieslowski ou um Resnais...

Tolstói jamais sugere, neste tratado sobre a arte, que é possível ensinar alguém a “fruir” uma obra de arte, a perceber suas nuances, seus conteúdos implícitos, seus mistérios, como se o camponês mais rústico e sem cultura, ao não entender as grandes obras-primas da humanidade, estivesse absolutamente certo em taxá-las de “ruins”. “Dizer que um homem não é tocado por minha arte porque ele ainda é muito ignorante, o que é ao mesmo tempo muita presunção e muita desfaçatez, é perverter os papéis e tirar a culpa do doente para pôr no são” (141).

Tolstói sente ódio e repugnância pela arte das elites, especialmente aquela ultra refinada e cheia de ornamentos, feita de modo cerebral e desapaixonado, que é absolutamente incompreensível pelas grandes massas e jamais retrata a “verdadeira vida popular” em seus conteúdos. Analisando a arte de seu tempo, Tolstói diagnostica que ela foi se tornando “cada vez mais incompreensível para um número cada vez maior de pessoas” e “atingiu um ponto em que é compreendida por um número muito pequeno de eleitos” (cujo número continua a diminuir) (135).


E sente piedade dos milhares de trabalhadores que estão se sacrificando diariamente nos ofícios técnicos vinculados às artes, sem jamais poderem usufruir delas. “Para compor, imprimir, montar e encapar esses livros, milhões e milhões de dias de trabalho são gastos – não menos, penso eu, do que para construir uma grande pirâmide. (...) Milhões de dias de trabalho são gastos para produzir objetos igualmente incompreensíveis na pintura, na música, no teatro.” (129) Nada pior que esses poemas e quadros que “precisam ser decifrados como charadas” (149) mas que não contagiam ninguém com sentimentos e sensações!

Esse lado de revolucionário político de Tolstói, que beirou o anarquismo radical, foi muito bem analisado por Stefan Zweig, que chamou-o de um “franco-atirador resoluto” e de “adversário da coletividade mais apaixonado da época contemporânea” (15). Tolstói é um dos maiores dentre os escritores “revoltados”, mas preconiza “uma revolução de almas e não de punho”, como diz Zweig: “uma revolta vinda da consciência, uma revolta realizada pela renúncia espontânea dos ricos às riquezas, dos ociosos à inação”, sendo que o luxo é visto como a “flor venenosa deste charco, fazendo-se mister extirpá-la, pelo amor da igualdade entre os homens”, na expressão de Zweig.

Este chega mesmo a arriscar o hiperbólico dito: “Tolstói trava contra a propriedade um combate cem vezes mais encarniçado que o de Marx e Proudhon. 'A propriedade é hoje a raiz de todo o mal. Ela causa o sofrimento dos que a possuem e dos que não a possuem. O perigo dum conflito entre os que dispõe do supérfluo e os que vivem na pobreza é inevitável. Todo o mal começa com a propriedade'.” A diferença está nisso: “o nivelamento social não deve – é a idéia central de Tolstoi – vir de baixo, como querem os revolucionários, que expropriam à força os possuidores, mas do alto, por uma renúncia espontânea” - isto é: “o rico deve doar sua riqueza, o intelectual abandonar o seu orgulho, o artista preocupar-se exclusivamente em criar obras acessíveis à massa...” (22)

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[A OBSCURIDADE TRANSFORMADA EM DOGMA]

Tolstói também odeia obscuridades propositais, poemas indecifráveis, pinturas incompreensíveis. Xinga Baudelaire, Verlaine e Mallarmé por terem transformado a “obscuridade” em dogma. Estes escrevem, diz o russo, poemas tão misteriosos, tão enigmáticos, que decerto só poderão ser compreendidos por uma minúscula elite, que certamente se achará muitíssimo inteligente e superior ao resto da humanidade por tê-los entendido, ou ao menos ter fingido entendê-los. “Guiados por Nieztsche e Wagner, eles acreditam que não há necessidade de que sejam compreendidos pela plebe rude, que é suficiente que evoquem estados poéticos nos 'homens mais bem nutridos'...” (118)

Contra Baudelaire, diz de “As Flores do Mal” que ali “não há nenhum poema que seja simples e que possa ser entendido sem algum esforço – um esforço poucas vezes recompensado, porque os sentimentos transmitidos pelo poeta não são sentimentos bons, mas bastante torpes.” (120) O poeta francês, diz Tolstoi, “tinha visão de mundo que consistia em egoísmo rude transformado em teoria e na suplantação da moralidade pelo conceito de beleza” (124). Ah, como conseguem ficar furibundos esses, como Tolstói, que se vêem como arautos do Bem e da Moralidade! Reduz à titica estes dois gigantes da poesia francesa, Baudelaire e Verlaine, dizendo: “ambos são não apenas destituídos de ingenuidade, sinceridade e simplicidade, mas cheios de artificialidade, originalidade forçada e presunção.” (125)

Já contra Wagner, ele é especialmente demolidor e intransigente. A tentativa de unir música e poesia em obras monumentais e espetaculares, como “O Anel dos Nibelungos”, é visto como uma “falsificação poética, grosseira a ponto de ser ridícula” (175).

Tolstói, que viu em Moscou a representação, saiu dela soltando fogo pelas ventas: “a falsidade do que acontece no palco é tão repulsiva!”, xiou. “Trata-se somente do mau tom e mau gosto limitados e auto-confiantes de um alemão cujas idéias de poesia são absolutamente falsas e que quer, da maneira mais grosseira e primitiva, transmitir essas falsas noções de poesia a mim” (175). Como se não bastasse de bordoadas, ele chama a obra de “algaravia totalmente incoerente”, dizendo que “é difícil imaginar até mesmo uma criança de mais de 7 anos que pudesse se distrair com essa lenda estúpida e incoerente” (182). “Em nenhuma outra falsificação artística de meu conhecimento”, e vem aí a machadada final e impiedosa no pescoço trucidado de Richard Wagner, “estão combinados com tanta maestria e força todos os métodos de falsificação da arte, que são: o empréstimo, a imitação, o efeito e o desvio.” (184)

Não faltam farpas lançadas contra outros gigantes, de Beethoven e Shakespeare a Dante e Goethe. Ele chega até mesmo a dizer que a Nona Sinfonia é “sem nenhuma dúvida” uma “obra de arte ruim” (!!!). Mas há também os elogios: Tolstói assina embaixo da obra de Dostoiévski, Victor Hugo, Charles Dickens, Molière, entre outros.

Diz ele ainda que grande parte das pessoas que fazem parte do “círculo artístico” (os críticos, os poetas, os romancistas, os pintores, os escultores, os frequentadores de óperas, de museus e teatros), ignoram ou desconhecem “aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com seu sofrimento e misturemos nossas alma à dele, e que constitui a essência da arte...” (199).

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[MISTURA DE ALMAS NO CALDEIRÃO DA ARTE]

Donde “um sinal irrefutável que distingue a arte verdadeira da falsificada é o contágio”: a verdadeira arte desencadeia um sentimento de “felicidade e de união espiritual com outro (o autor) e com outros (ouvintes ou espectadores) que percebem a mesma obra artística” (201).

“...aquele que percebe o trabalho artístico se funde ao seu autor de tal maneira que lhe parece que o objeto percebido foi feito não por outra pessoa, mas por ele mesmo, e que tudo o que é expressado por esse objeto é exatamente o que ele há muito vem querendo expressar. O efeito da verdadeira obra de arte é abolir, na consciência do receptor, a distinção entre ele mesmo e o artista. (...) É essa libertação da pessoa de seu isolamento e de sua solidão que constitui a principal força atrativa e propriedade da arte.”
(202)

A arte é cimento social. Mais que isso: é uma oportunidade de encontro. É um complexo sistema de pontes, de janelas, de portas, que nos permite ir conhecer outras almas, investigar o que pensaram outras mentes, sentir o que sentiram outros corações, vencendo o tormento e a limitação de ser um eu fechado na jaula de si mesmo.

“De repente uma história, uma apresentação, um quadro, mesmo um prédio ou, com maior frequência, uma música, une a todos com uma fagulha elétrica e, em lugar de seu distanciamento anterior, todos sentem união e amor mútuo. Cada um fica feliz porque o outro sente a mesma coisa que ele, feliz com essa comunhão que foi estabelecida, não somente entre ele e os outros presentes, mas com todas as pessaos vivas que receberão a mesma impressão. Mais ainda: há a misteriosa alegria de uma comunhão além-túmulo, com todos no passado que viveram o mesmo sentimento e os que no futuro o viverão” (217). “O observador fica mais satisfeito quanto mais claramente está expressado o sentimento que, conforme lhe parece, ele conhece e experimenta já por muito tempo, e para o qual só agora encontra expressão.” (203)

A criação deve nascer não do exterior (como acontece quando o artista está em um conservatório musical ou uma escola de artes, quando possui um patrocinador ou mecenas, quando cria sob encomenda dos poderosos reinantes etc.), mas sim de uma urgência de expressão interior, irrepresável e irresistível. “O artista deve experimentar uma necessidade íntima de expressar o sentimento que transmite” (203), diz Tolstói, e é o mesmo espírito de Rilke, que nas Cartas a um Jovem Poeta sugeria que só tem direito de criar aquele que sente que não seria capaz de viver se não criasse.

O Bem Maior ao qual a Arte deve servir, segundo Tolstói, é uma versão bem simples e singela da mensagem cristã: “o nosso bem, material e espiritual, individual e geral, temporal e eterno, consiste na vida fraterna, em nossa união de amor uns aos outros” - e é essa percepção, segundo ele, que serve como um “fio condutor” para os "trabalhos da humanidade", que deve estar sempre Rumando em direção a este ideal – a Fraternidade Universal.