O BEIJO DO FOGO E DA PÓLVORA
- analisando Romeu e Julieta -
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Confesso ruborizado: nunca tinha lido. Apesar de idolatrar Shakespeare, que deve mesmo ser o maiorial entre todos os escritores que já vieram a este mundo cheio de som e fúria, eu me abstive de ler Romeu e Julieta e me dediquei mais à leitura de outras tragédias – Hamlet, Otelo, Macbeth... - e aos estupendos e magníficos e (adicione aqui o adjetivo bombástico que se empresta à beleza suprema de seu gosto!) Sonetos. É que Romeu e Julieta é um casalzinho tão pop, tão hype, tão na-boca-do-povo, um clichê tão disseminado, um mito cultural tão entranhado em nossas mentes, que quase todo mundo acha que sabe de cor do que se trata e nem pensa que vale a pena voltar à sua fonte original, o texto shakespeariano, que é (nenhuma surpresa!) magistral. Voltei à nascente, pois, um pouco pra me livrar da vergonha de nunca ter lido algo tão obrigatório, e um pouco pra tentar sacar onde está tamanho poder de sedução nesta história sanguinolenta e de desfecho macabro de Julieta Capuleto e Romeu Montecchio, um dos diamantes mais imortais da literatura universal. E aí vão algumas digressões:
* * * * *
FOGO CONTRA FOGO!
A primeira coisa que me chamou a atenção, e que as pessoas raramente se lembrar de notar, é que Romeu já começa a peça soturno e macambúzio pois está apaixonado por uma certa Rosalinda, moça que não corresponde a seus ardores. O pequeno Montecchio, desinteressado dos descalabros marciais que ocupam o tempo de seus parentes que guerreiam os Capuletos, é visto a perambular sozinho nos bosques, desconsolado. “Muitas manhãs já foi ele encontrado, aumentando com lágrimas o fresco orvalho matutino e acrescentando novas nuvens às nuvens com seus profundos suspiros...”. Indiferente aos assuntos dos adultos, só têm olhos para seu amor e sua dor – e conta-se que frequentemente “se aprisiona em seu quarto, fecha as janelas, expulsa o belo dia e para si faz uma noite artificial”.
É importante frisar isso: que Romeu já era um mocinho “apaixonável” bem antes de se encontrar com Julieta, já com predisposições aos amores platônicos e dramáticos, com alma de poeta e uma certa atração pelo masoquismo. Da mesma maneira que, como dizia Sêneca, “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”, também nenhuma paixão toma conta de alguém que não se tenha predisposto a na paixão cair. Há pessoas que não se apaixonam jamais: parecem ter o coração congelado. Há outras que se apaixonam todo o tempo e estão sempre cantando, como Jeff Tweedy: “I'm worried, I'm worried, I'm always in love...”. Romeu é do segundo tipo.
“Que o amor, cuja vista é sempre vendada, encontre, sem os olhos, caminho franco para sua vontade!" - grita um ardoroso Romeu no começo da peça, mas não é para Julieta, é para Rosalinda... E suas digressões demenciais e poéticas sobre o amor também são todas motivadas por Rosalinda: “Oh! Informe caos de sedutoras formas! Plumas de chumbo, fumaça luminosa, flama gelada, saúde enferma, sono em perpétua vigília, que não é o que é! Tal é o amor que sinto, sem sentir em tal amor, amor nenhum. Não ris?” (...) “O amor é fumaça formada pelos vapores dos suspiros. Purificado, é um fogo chispeante nos olhos dos amantes. Contrariado, um mar alimentado pelas lágrimas dos amantes. Que mais ainda? Loucura prudentíssima, fel que nos abafa, doçura que nos salva...”
É nesse infeliz estado que Romeuzinho se encontra no começo da peça: na posição do apaixonado não-correspondido que sofre pois vê que sua amada “não se deixa atingir pela seta de Cupido” e que, “protegida por uma castidade bem armada, vive fora do alcance do infantil e débil arco do amor”. Seu amigo Benvólio só lhe recomenda que vá ao baile dos Capuletos, onde ele é persona non grata, a fim de “examinar outras belezas” e achar um ídolo de substituição para o mau ídolo feminil que o prendia à tamanha desolação. Pois no chiquérrimo castelo dos Capuletos, algumas das maiores beldades de Verona desfilariam - “prepara-te para contemplar estrelas que pisam a terra, eclipsando a luz do céu”... - e não era nada impossível que Romeu, garoto que cai fácil em encantamento, se deixasse fisgar por alguma outra divindade celestial em visita às baixas esferas...
Falando por experiência própria: poucas ocasiões são mais propícias a um encantamento amoroso do que estar sofrendo por causa de um amor não correspondido, por causa de um desejo que entrou num beco-sem-saída, com o coração endoidecido por essa cisão entre um ardente desejo de amar e a incapacidade de dar esse amor porque a porta da eleita está fechada. Neste estado de espírito, não é incomum que corramos a bater em outra porta! “Um fogo apaga outro fogo!”, diz a Romeu o amigo Benvólio. E uma frase dessas, tão absurda segundo a lógica natural, tão contrária às leis da física, é a mais pura verdade nos assuntos do coração. Shakespeare sabia das coisas. O amigo de Romeu receita uma estranha medicina para seu mal de paixão: adquirir uma “nova infecção”!
Pois bem, então não é Julieta sozinha que faz mágica no coração de Romeu, que traz de volta dos mortos o coração frio de Romeu (ele sempre foi fervente!), que insufla vida à apatia de Romeu (ele nunca foi apático!) – não! Julieta não é o estopim de uma extrema revolução espiritual em Romeu, como se ele passassse súbito de um estado de indiferença e gelidez a um estado de inflamado desejo e ardor. Não! Ele já vai ao baile (onde verá Julieta pela primeira vez) completamente intoxicado de paixão (mas por Rosalina!), e Julieta aparece como uma substituta em quem ele pode atirar as flechas de fogo que ele já trazia tensionadas em seu arco. Julieta é um fogo que apaga outro fogo. Em termos freudianos, daria até pra dizer: uma libido incendiada sofreu uma mera migração súbita de um objeto a outro. Julieta não molha com álcool o coração de Romeu e o acende com um fósforo: ele já chega em chamas!
* * * * *
ALUMBRAMENTO
Romeu fazia de sua visão um sentido digno de culto: se deixaria convencer a qualquer coisa se assim quisesse a “sacrossanta religião de seus olhos”. Seu encantamento por Julieta é, antes de tudo, visual – não uma sensação de intimidade, de proximidade espiritual, de personalidades compatíveis, de partilha alegre de sentimentos, elementos que constituem amores bem mais sólidos. Antes mesmo de falar com ela, cegado pelo furor da ilusão, ele já está inventando mil qualidades para aquela pessoa que não conhece. Antes mesmo de ir checar se aquela mocinha tão linda era uma pessoa interessante ou uma bestinha fútil qualquer, ele já está se derretendo todo:
“Oh! Ela deve ensinar às tochas a brilharem esplendidamente! Dir-se-ia que pende da face da noite como rica jóia da orelha de um etíope! Beleza riquíssima para ser usada e cara demais para a terra! Como nívea pomba entre corvos, assim aparece aquela dama no meio de suas companheiras... Porventura meu coração amou até agora? Jurai que não, meus olhos! Porque até esta noite jamais conheci a verdadeira beleza...”
A paixão de Romeu ascende como um foguete, rápida e explosiva, e poucos momentos depois de ter visto a moçoila pela primeira vez ele já está pulando muros da casa alheia (“com as leves asas do amor transpus estes muros, porque os limites de pedra não servem de empecilho para o amor...”), arriscando a ter o pescoço montecchiano degolado por alguma capuletice furiosa, só para ficar observando de longe sua bambina na sacada:
“Duas das mais resplandecentes estrelas de todo o céu, tendo alguma ocupação, suplicaram aos olhos dela que brilhassem em suas esferas até que elas voltassem. Que aconteceria se os olhos dela estivessem no firmamento e as estrelas na cabeça? O fulgor de suas faces envergonharia aquelas estrelas, com a luz do dia a de uma lâmpada! Seus olhos lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que cantariam as aves acreditando chegada a aurora!... Olhai como apóia o rosto na mão! Oh! Fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar naquele rosto!”
Romeu, que chega no baile encantado por uma, sai dele encantado por outra - “jaz o antigo desejo em seu leito de morte e uma nova paixão aspira a ser herdeira”. E tudo por causa do “feitiço dos olhares”.
Julieta, por sua vez, é praticamente uma pré-adolescente (14 aninhos!), uma moçoila onde se mistura a ingenuidade romântica de uma criança, daquelas que ainda não foi ferida pela vida, com o furor rebelde de uma adolescente que começa a desabrochar. Eu imagino Julieta Capuleto como uma daquelas garotinhas magricelas e pálidas, insuportavelmente mimadinha por seus papis ricos, educada na gaiolinha de rigores morais extremos, com “lábios constantemente ruborizados pelo puro e virginal pudor”. Enfim: o tipo de criatura extremamente inocente, ignorante e infantil que encanta por parecer tão pura e meiga, mas que vive num estado de completa alienação da realidade. Só mesmo um coração que nunca antes se quebrou conseguiria se entregar com tamanho abandono a um sentimento intenso como este.
Que tais encantamentos aconteçam de verdade, não há dúvida, e ninguém poderia acusar Shakespeare de ter sido inverossímil. Sim, as pessoas se apaixonam à primeira vista; constroem imensos castelos de fantasia logo depois de terem visto um ser pela primeira vez; deixam seus corações explodirem de repente do modo mais insensato; mas todo mundo que tem um bocadinho de experiência de vida bem sabe o quão frágil é esse laço que une duas pessoas que mal se conhecem e que loucamente decidem que estão apaixonadas. Todo mundo sabe, no fundo, que isso não é amor: é um delírio, em que cada um ama não uma pessoa de real, mas uma imagem fabricada e idealizada que não tem correspondente algum na realidade. Cada um ama só um sonho seu.
Julieta, com toda a inocência de seus 14 anos de idade, e que admite ser “muito apaixonável”, também se inflama pelo proibido Capuleto poucos instantes depois de vê-lo pela primeira vez, sem saber nada sobre a personalidade dele e na completa cegueira sobre as possibilidades que os gênios dos dois teriam de se harmonizar bem. Cedo demais ela já fez dele um ídolo (“tua graciosa pessoa é o deus da minha idolatria”). Cedo demais já está doidinha pensando em casamento e exigindo juras de amor eterno (“não jures pela Lua, a inconstante Lua que muda todos os meses em sua órbita circular, a fim de que teu amor não se mostre igualmente variável...”). O único empecilho grave no caminho dos dois são os nomes de família que carregam – e que ela, Julieta, numa frase clássica, está determinada a não levar em consideração: “o que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o mesmo perfume tão agradável...”. Romeu Montecchio, com outro nome, seria ainda Romeu.
Mas que há muita beleza poética nas declarações que os dois se fazem, não há dúvida – que bonitinho é Julieta dizendo, para incentivar Romeu a se ir embora (difícil é a despedida dos apaixonados!): “se você fosse meu pássaro, eu te mataria por excesso de carinhos”. Uma boniteza só é ela dizendo do amor outra frase imortal: “quanto mais te dou, mais tenho”. E as metáforas shakespearianas postas na boca de sua personagem, apesar de melosas, são todas encantadoras:
“Quisera que partisses, mas que não fosses mais longe do que o pássaro que uma criança travessa solta, deixando que brinque um pouco, como pobre prisioneiro preso aos seus grilhões, e, com um fio de seda, o atrai para si outra vez, amorosamente ciumento de sua liberdade...”
É dela, também, a magnífica empolgação lírica que faz do amor algo tão intenso que chega ao inefável (que palavras para descrevê-lo?), tão valoroso que não se pode mensurá-lo (quantos séculos para contar fortuna tão gigante?):
“O sentimento, mais rico em matéria do que em palavra, se glorifica de sua substância e não de seu ornamento. Só os mendigos podem contar suas riquezas. Meu verdadeiro amor cresceu até o excesso, de tal modo que não mais posso somar a metade de meu tesouro.”
* * * * *
O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA
“...o amor corre para o amor, como os escolares fogem dos livros; mas o amor se afasta do amor, como as crianças se dirigem para a escola com olhos entristecidos...” - ROMEU
Mas, como todos sabem, este é um amor que nasce “sob adversa estrela”, desde o começo condenado ao fracasso, protótipo de todas as paixões que são barradas por impedimentos maiores. A guerra cruel e sangrenta entre os Montecchios e Capuletos, que constitui quase uma guerra civil em Verona, exigindo até mesmo a intervenção do Príncipe, que faz ameaças de castigos extremados caso as duas famílias não parem de se agredir, torna o caso de amor entre a pequena Capuleta e seu amado Montechio uma impossibilidade. Os arredores que cercam essa história de amor são sombrios: é como se Romeu e Julieta tentassem encenar uma paixão sobre um solo escorregadio demais devido ao excesso de sangue derramado por seus parentes, que “apagam o fogo de seus furores insensatos com purpúreas torrentes que brotam de suas veias”.
É um procedimento comum das crianças: quando perguntamos qual brinquedo elas querem que a gente compre, elas quase sempre querem aquele que não podem ter. E, como a paixão está sempre recheada de infantilidade, quase sempre segue o mesmo mandamento: e frequentemente queremos justamente quem não podemos ter. Do mesmo modo que a gente, quando criança, sente ímpetos libidinosos muito mais furiosos quando somos proibidos de assistir filme pornô ou comprar Playboy, também o amor se inflama quando é proibido, difícil, cheio de obstáculos. Romeu e Julieta, como Tristão e Isolda, não é exatamente uma história de amor: é a história de trágicas e mau-sucedidas tentativas de concretizar um amor que nunca se torna de fato real. São histórias sobre a perseguição de um sonho de amor que está sempre no fim do túnel, mas para se chegar até ele mil monstros e adversidades precisarão ser enfrentados, nem sempre com o desenlace mais feliz.
Romeu e Julieta, por mais que seja uma das histórias mais clássicas da literatura universal, daqueles que atingiu status mítico, e prova inconteste de que Shakespeare era mesmo dos maiores gênios da humanidade, não deve ser lido como um Evangelho – e não devemos deixar esse livro tão poderoso e persuasivo nos inundar de ilusões. Seria ilusão pensar que essa paixão louca e alucinada entre essas duas crianças seja algo que merece o nome de “verdadeiro amor” - não! De jeito nenhum! Os dois pirralhos mal se conheciam, tiveram pouquíssimos momentos de união ou de intimidade (corporal ou espiritual), não partilharam muita coisa (memórias, idéias, pensamentos, momentos...), não tiveram uma longa história juntos – nada disso.
Dá até pra dizer que o estado psicológico desses dois pombinhos era grave, merecendo ambos, se vivessem em tempos mais cultivados, uma consulta ao psicoterapeuta. Hoje em dia, nós, de um século ao mesmo tempo tão avançado, tão cínico e tão superficial quanto este 21, vemos com outros olhos essas paixões. Ao ouvirmos alguém dizer “ó, não consigo viver sem ela! Vou me apunhalar se não pudermos ficar juntos!”, dificilmente dizemos “Que bonitinho!”. É mais provável que digamos: “Xi, esse aí tá louco... interna! Chama a carrocinha do hospício! Liga correndo pro psicólogo!”
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FOGO CONTRA FOGO!
A primeira coisa que me chamou a atenção, e que as pessoas raramente se lembrar de notar, é que Romeu já começa a peça soturno e macambúzio pois está apaixonado por uma certa Rosalinda, moça que não corresponde a seus ardores. O pequeno Montecchio, desinteressado dos descalabros marciais que ocupam o tempo de seus parentes que guerreiam os Capuletos, é visto a perambular sozinho nos bosques, desconsolado. “Muitas manhãs já foi ele encontrado, aumentando com lágrimas o fresco orvalho matutino e acrescentando novas nuvens às nuvens com seus profundos suspiros...”. Indiferente aos assuntos dos adultos, só têm olhos para seu amor e sua dor – e conta-se que frequentemente “se aprisiona em seu quarto, fecha as janelas, expulsa o belo dia e para si faz uma noite artificial”.
É importante frisar isso: que Romeu já era um mocinho “apaixonável” bem antes de se encontrar com Julieta, já com predisposições aos amores platônicos e dramáticos, com alma de poeta e uma certa atração pelo masoquismo. Da mesma maneira que, como dizia Sêneca, “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”, também nenhuma paixão toma conta de alguém que não se tenha predisposto a na paixão cair. Há pessoas que não se apaixonam jamais: parecem ter o coração congelado. Há outras que se apaixonam todo o tempo e estão sempre cantando, como Jeff Tweedy: “I'm worried, I'm worried, I'm always in love...”. Romeu é do segundo tipo.
“Que o amor, cuja vista é sempre vendada, encontre, sem os olhos, caminho franco para sua vontade!" - grita um ardoroso Romeu no começo da peça, mas não é para Julieta, é para Rosalinda... E suas digressões demenciais e poéticas sobre o amor também são todas motivadas por Rosalinda: “Oh! Informe caos de sedutoras formas! Plumas de chumbo, fumaça luminosa, flama gelada, saúde enferma, sono em perpétua vigília, que não é o que é! Tal é o amor que sinto, sem sentir em tal amor, amor nenhum. Não ris?” (...) “O amor é fumaça formada pelos vapores dos suspiros. Purificado, é um fogo chispeante nos olhos dos amantes. Contrariado, um mar alimentado pelas lágrimas dos amantes. Que mais ainda? Loucura prudentíssima, fel que nos abafa, doçura que nos salva...”
É nesse infeliz estado que Romeuzinho se encontra no começo da peça: na posição do apaixonado não-correspondido que sofre pois vê que sua amada “não se deixa atingir pela seta de Cupido” e que, “protegida por uma castidade bem armada, vive fora do alcance do infantil e débil arco do amor”. Seu amigo Benvólio só lhe recomenda que vá ao baile dos Capuletos, onde ele é persona non grata, a fim de “examinar outras belezas” e achar um ídolo de substituição para o mau ídolo feminil que o prendia à tamanha desolação. Pois no chiquérrimo castelo dos Capuletos, algumas das maiores beldades de Verona desfilariam - “prepara-te para contemplar estrelas que pisam a terra, eclipsando a luz do céu”... - e não era nada impossível que Romeu, garoto que cai fácil em encantamento, se deixasse fisgar por alguma outra divindade celestial em visita às baixas esferas...
Falando por experiência própria: poucas ocasiões são mais propícias a um encantamento amoroso do que estar sofrendo por causa de um amor não correspondido, por causa de um desejo que entrou num beco-sem-saída, com o coração endoidecido por essa cisão entre um ardente desejo de amar e a incapacidade de dar esse amor porque a porta da eleita está fechada. Neste estado de espírito, não é incomum que corramos a bater em outra porta! “Um fogo apaga outro fogo!”, diz a Romeu o amigo Benvólio. E uma frase dessas, tão absurda segundo a lógica natural, tão contrária às leis da física, é a mais pura verdade nos assuntos do coração. Shakespeare sabia das coisas. O amigo de Romeu receita uma estranha medicina para seu mal de paixão: adquirir uma “nova infecção”!
Pois bem, então não é Julieta sozinha que faz mágica no coração de Romeu, que traz de volta dos mortos o coração frio de Romeu (ele sempre foi fervente!), que insufla vida à apatia de Romeu (ele nunca foi apático!) – não! Julieta não é o estopim de uma extrema revolução espiritual em Romeu, como se ele passassse súbito de um estado de indiferença e gelidez a um estado de inflamado desejo e ardor. Não! Ele já vai ao baile (onde verá Julieta pela primeira vez) completamente intoxicado de paixão (mas por Rosalina!), e Julieta aparece como uma substituta em quem ele pode atirar as flechas de fogo que ele já trazia tensionadas em seu arco. Julieta é um fogo que apaga outro fogo. Em termos freudianos, daria até pra dizer: uma libido incendiada sofreu uma mera migração súbita de um objeto a outro. Julieta não molha com álcool o coração de Romeu e o acende com um fósforo: ele já chega em chamas!
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ALUMBRAMENTO
Romeu fazia de sua visão um sentido digno de culto: se deixaria convencer a qualquer coisa se assim quisesse a “sacrossanta religião de seus olhos”. Seu encantamento por Julieta é, antes de tudo, visual – não uma sensação de intimidade, de proximidade espiritual, de personalidades compatíveis, de partilha alegre de sentimentos, elementos que constituem amores bem mais sólidos. Antes mesmo de falar com ela, cegado pelo furor da ilusão, ele já está inventando mil qualidades para aquela pessoa que não conhece. Antes mesmo de ir checar se aquela mocinha tão linda era uma pessoa interessante ou uma bestinha fútil qualquer, ele já está se derretendo todo:
“Oh! Ela deve ensinar às tochas a brilharem esplendidamente! Dir-se-ia que pende da face da noite como rica jóia da orelha de um etíope! Beleza riquíssima para ser usada e cara demais para a terra! Como nívea pomba entre corvos, assim aparece aquela dama no meio de suas companheiras... Porventura meu coração amou até agora? Jurai que não, meus olhos! Porque até esta noite jamais conheci a verdadeira beleza...”
A paixão de Romeu ascende como um foguete, rápida e explosiva, e poucos momentos depois de ter visto a moçoila pela primeira vez ele já está pulando muros da casa alheia (“com as leves asas do amor transpus estes muros, porque os limites de pedra não servem de empecilho para o amor...”), arriscando a ter o pescoço montecchiano degolado por alguma capuletice furiosa, só para ficar observando de longe sua bambina na sacada:
“Duas das mais resplandecentes estrelas de todo o céu, tendo alguma ocupação, suplicaram aos olhos dela que brilhassem em suas esferas até que elas voltassem. Que aconteceria se os olhos dela estivessem no firmamento e as estrelas na cabeça? O fulgor de suas faces envergonharia aquelas estrelas, com a luz do dia a de uma lâmpada! Seus olhos lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que cantariam as aves acreditando chegada a aurora!... Olhai como apóia o rosto na mão! Oh! Fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar naquele rosto!”
Romeu, que chega no baile encantado por uma, sai dele encantado por outra - “jaz o antigo desejo em seu leito de morte e uma nova paixão aspira a ser herdeira”. E tudo por causa do “feitiço dos olhares”.
Julieta, por sua vez, é praticamente uma pré-adolescente (14 aninhos!), uma moçoila onde se mistura a ingenuidade romântica de uma criança, daquelas que ainda não foi ferida pela vida, com o furor rebelde de uma adolescente que começa a desabrochar. Eu imagino Julieta Capuleto como uma daquelas garotinhas magricelas e pálidas, insuportavelmente mimadinha por seus papis ricos, educada na gaiolinha de rigores morais extremos, com “lábios constantemente ruborizados pelo puro e virginal pudor”. Enfim: o tipo de criatura extremamente inocente, ignorante e infantil que encanta por parecer tão pura e meiga, mas que vive num estado de completa alienação da realidade. Só mesmo um coração que nunca antes se quebrou conseguiria se entregar com tamanho abandono a um sentimento intenso como este.
Que tais encantamentos aconteçam de verdade, não há dúvida, e ninguém poderia acusar Shakespeare de ter sido inverossímil. Sim, as pessoas se apaixonam à primeira vista; constroem imensos castelos de fantasia logo depois de terem visto um ser pela primeira vez; deixam seus corações explodirem de repente do modo mais insensato; mas todo mundo que tem um bocadinho de experiência de vida bem sabe o quão frágil é esse laço que une duas pessoas que mal se conhecem e que loucamente decidem que estão apaixonadas. Todo mundo sabe, no fundo, que isso não é amor: é um delírio, em que cada um ama não uma pessoa de real, mas uma imagem fabricada e idealizada que não tem correspondente algum na realidade. Cada um ama só um sonho seu.
Julieta, com toda a inocência de seus 14 anos de idade, e que admite ser “muito apaixonável”, também se inflama pelo proibido Capuleto poucos instantes depois de vê-lo pela primeira vez, sem saber nada sobre a personalidade dele e na completa cegueira sobre as possibilidades que os gênios dos dois teriam de se harmonizar bem. Cedo demais ela já fez dele um ídolo (“tua graciosa pessoa é o deus da minha idolatria”). Cedo demais já está doidinha pensando em casamento e exigindo juras de amor eterno (“não jures pela Lua, a inconstante Lua que muda todos os meses em sua órbita circular, a fim de que teu amor não se mostre igualmente variável...”). O único empecilho grave no caminho dos dois são os nomes de família que carregam – e que ela, Julieta, numa frase clássica, está determinada a não levar em consideração: “o que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o mesmo perfume tão agradável...”. Romeu Montecchio, com outro nome, seria ainda Romeu.
Mas que há muita beleza poética nas declarações que os dois se fazem, não há dúvida – que bonitinho é Julieta dizendo, para incentivar Romeu a se ir embora (difícil é a despedida dos apaixonados!): “se você fosse meu pássaro, eu te mataria por excesso de carinhos”. Uma boniteza só é ela dizendo do amor outra frase imortal: “quanto mais te dou, mais tenho”. E as metáforas shakespearianas postas na boca de sua personagem, apesar de melosas, são todas encantadoras:
“Quisera que partisses, mas que não fosses mais longe do que o pássaro que uma criança travessa solta, deixando que brinque um pouco, como pobre prisioneiro preso aos seus grilhões, e, com um fio de seda, o atrai para si outra vez, amorosamente ciumento de sua liberdade...”
É dela, também, a magnífica empolgação lírica que faz do amor algo tão intenso que chega ao inefável (que palavras para descrevê-lo?), tão valoroso que não se pode mensurá-lo (quantos séculos para contar fortuna tão gigante?):
“O sentimento, mais rico em matéria do que em palavra, se glorifica de sua substância e não de seu ornamento. Só os mendigos podem contar suas riquezas. Meu verdadeiro amor cresceu até o excesso, de tal modo que não mais posso somar a metade de meu tesouro.”
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O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA
“...o amor corre para o amor, como os escolares fogem dos livros; mas o amor se afasta do amor, como as crianças se dirigem para a escola com olhos entristecidos...” - ROMEU
Mas, como todos sabem, este é um amor que nasce “sob adversa estrela”, desde o começo condenado ao fracasso, protótipo de todas as paixões que são barradas por impedimentos maiores. A guerra cruel e sangrenta entre os Montecchios e Capuletos, que constitui quase uma guerra civil em Verona, exigindo até mesmo a intervenção do Príncipe, que faz ameaças de castigos extremados caso as duas famílias não parem de se agredir, torna o caso de amor entre a pequena Capuleta e seu amado Montechio uma impossibilidade. Os arredores que cercam essa história de amor são sombrios: é como se Romeu e Julieta tentassem encenar uma paixão sobre um solo escorregadio demais devido ao excesso de sangue derramado por seus parentes, que “apagam o fogo de seus furores insensatos com purpúreas torrentes que brotam de suas veias”.
É um procedimento comum das crianças: quando perguntamos qual brinquedo elas querem que a gente compre, elas quase sempre querem aquele que não podem ter. E, como a paixão está sempre recheada de infantilidade, quase sempre segue o mesmo mandamento: e frequentemente queremos justamente quem não podemos ter. Do mesmo modo que a gente, quando criança, sente ímpetos libidinosos muito mais furiosos quando somos proibidos de assistir filme pornô ou comprar Playboy, também o amor se inflama quando é proibido, difícil, cheio de obstáculos. Romeu e Julieta, como Tristão e Isolda, não é exatamente uma história de amor: é a história de trágicas e mau-sucedidas tentativas de concretizar um amor que nunca se torna de fato real. São histórias sobre a perseguição de um sonho de amor que está sempre no fim do túnel, mas para se chegar até ele mil monstros e adversidades precisarão ser enfrentados, nem sempre com o desenlace mais feliz.
Romeu e Julieta, por mais que seja uma das histórias mais clássicas da literatura universal, daqueles que atingiu status mítico, e prova inconteste de que Shakespeare era mesmo dos maiores gênios da humanidade, não deve ser lido como um Evangelho – e não devemos deixar esse livro tão poderoso e persuasivo nos inundar de ilusões. Seria ilusão pensar que essa paixão louca e alucinada entre essas duas crianças seja algo que merece o nome de “verdadeiro amor” - não! De jeito nenhum! Os dois pirralhos mal se conheciam, tiveram pouquíssimos momentos de união ou de intimidade (corporal ou espiritual), não partilharam muita coisa (memórias, idéias, pensamentos, momentos...), não tiveram uma longa história juntos – nada disso.
Dá até pra dizer que o estado psicológico desses dois pombinhos era grave, merecendo ambos, se vivessem em tempos mais cultivados, uma consulta ao psicoterapeuta. Hoje em dia, nós, de um século ao mesmo tempo tão avançado, tão cínico e tão superficial quanto este 21, vemos com outros olhos essas paixões. Ao ouvirmos alguém dizer “ó, não consigo viver sem ela! Vou me apunhalar se não pudermos ficar juntos!”, dificilmente dizemos “Que bonitinho!”. É mais provável que digamos: “Xi, esse aí tá louco... interna! Chama a carrocinha do hospício! Liga correndo pro psicólogo!”
Nós, que não nos sentimos mais capazes desses intensos transbordamentos de paixão, nesses tempos ultra-liberais onde todo mundo beija e trepa adoidado mas quase ninguém se ama, vemos com uma certa desconfiança e arrogante superioridade a história desses dois ingênuos. O que para séculos passados podia parecer a expressão suprema duma “paixão avassaladora” hoje parece simplesmente um exemplo literário de “personalidades patologicamente predispostas à dependência emocional”. Romeu e Julieta nada tem de admiráveis, para o olhar clínico e frio de um psicanalista demolidor de ilusões (como é, opr exemplo, o Flávio Gikovate em "Uma Nova Visão do Amor"): não só não devemos imitá-los, como é ultra-recomendável fugir desse estado de extrema infantilidade, dependência e falta de maturidade que caracteriza esses dois louquinhos...
Pois a paixão de Romeu e Julieta não é daquelas que plenifica, que acalma, que traz bem-estar, que deixa em estado de graças... não! É uma paixão que dilacera, que causa insônia, que atormenta, que inquieta, que machuca, que dói muito mais do que sara. É o tipo de paixão que não foi feita para durar. Primeiro, pois há mesmo uma linha tênue entre a paixão e o ódio – e Julieta é testemunha disso, já que a primeira reação que ela tem ao saber que Romeu atacou e matou um Capuleto é de ferocidade:
“Oh, coração de serpente, oculto debaixo de um semblante de flores! (...) Cordeiro com entranhas de lobo! Desprezível substância da mais celestial aparência! (...) Oh! Natureza! Que tinhas a fazer no fundo do inferno, quando alojaste a alma de um demônio no paraíso mortal de corpo tão belo? Qual foi o livro que algum dia conteve matéria de tal modo vil, tão ricamente encadernado? Semelhante mentira pode habitar um palácio tão maravilhoso?”
E depois desses ataques de furor, inconstante como toda mulher apaixonada, ela já está de novo se derretendo de paixão, chorando torrentes ao ver Romeu desterrado, arquitetando seu próprio suicídio ao notar que dificilmente poderia escapar do casamento que os pais lhe arranjavam com alguém mais conveniente aos Capuletos...
Também por isso Romeu & Julieta é o tipo de história um tanto datada, que só poderia acontecer em tempos históricos onde ainda vigorava o casamento por interesse e a humanidade achava normalíssimo que duas pessoas tivessem matrimônio arranjado pelos pais, sem nenhum afeto envolvido. O casamento por amor, é bem sabido, é uma invenção bem recente na história. E nada impede que na personalidade de Julieta tenha entrado um certo elemento de rebelião feroz contra esse sistema social e a imposição que os pais faziam de um noivo à donzela. Na peça, Shakespeare carrega pesadamente nas tintas com que descreve a tirania do papai Capuleto. Quando o paizão fica sabendo que Julieta não vê com bons olhos o casamento com Páris, ele tem um ataque psicótico daqueles:
“...te levarei à igreja arrastada numa carreta! Fora da minha presença, carcaça doentia! Fora daqui, libertina! Cara sebenta! Enforca-te! Criatura desobediente! Ouve o que te digo: ou vais à igreja na quinta-feira, ou jamais me olhes em face! (...) Deus só nos havia enviado esta única filha, mas, agora, vejo que esta única é demais e que nós a tivemos para nossa maldição. Sai de minha vista, ordinária! (...) Agora que lhe havíamos conseguido um gentil-homem de família principesca, cheio de riqueza, jovem, educado com o maior esmero, recheado, como dizem, de belas qualidades; um homem, enfim, como alguém pudera desejar, vem esta miserável e estúpida chorona, esta boneca gemedora, quando lhe sorri a fortuna, exclamar por toda resposta: “Não quero casar”. (...) Em minha casa não porás mais os pés! (...) enforca-te, mendiga, consome-te de fome e miséria, morre no meio da rua. Por minha alma, nunca te reconhecerei e nada que me pertence jamais te pertencerá!”
Quando Julieta se suicida, parece ser, além da manifestação súbita do terror de ver o seu amado perdido pela sempre, vencido pelo veneno, também um modo de punir os próprios pais pela tirânica imposição de um casamento que ela não queria. Quantas Julietas de verdade não devem ter existido história afora, que se lançaram ao túmulo só para fugir à cadeia em que os pais queriam lhe meter!
* * * * *
PAIXÃO E MORTE
A Marina Colasanti, brilhante como sempre, comenta:
“Não haveria de ser por puro sadismo dos escritores que tantos venenos, tantos punhais, tantas tuberculoses encerraram para sempre a carreira amorosa de nossos mais românticos heróis. Nem a morte foi posta ali porque o autor não sabia como acabar a história. Mas sim porque ela representa o supremo encontro, o mais insuperável dos orgasmos. (...) Ela serve também para estabelecer a eternidade do amor. (...) Como preservar para o leitor a beleza estética desse amor, obrigando-o a acompanhar os pouco edificantes achaques da velhice, a doença, até a morte? Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas. Ao autor, portanto, não restava outro recurso de narrativa senão o de matar seus protagonistas no auge do amor, no momento mesmo do reencontro com que culminava a vitória sobre o obstáculo. Era a morte em pleno momento de beleza, cristalizando essa beleza para a eternidade...”
Não sei ao certo se Shakespeare concordaria com esses ditos, mas eles são instigantes. Em Romeu e Julieta, a morte serve mesmo para “estabelecer a eternidade do amor”, como diz a Marina, ou a morte é muito mais uma prova de que essa paixão dos dois não tem absolutamente nada de eterna e que viveu sempre sob o signo da efemeridade e da adversidade? Como recurso literário, a morte dos pombinhos é de fato uma ótima pedida para fixar na mente do leitor a imagem de uma paixão arrebatadora, que sobe como um foguete e explode no ar como um fogo de artifício, sem ser necessário que o escritor, pelo bem do realismo, descreva tudo o que há de pouco espetacular e grotesco nas relações amorosas reais. No livro de Shakespeare, os detalhes menos edificantes de uma história amorosa são omitidos e não dá tempo da gente saber mais sobre a relação da pequena Capuleto e seu amado Montecchio. De fato, como diz a Marina, “Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas”. E Shakespeare, gênio do tamanho que era, certamente sabia disso.
Uma boa idéia para um humorista desilusionista seria escrever uma peça sarcástica chamada Romeu e Julieta Depois do Casamento – mais ou menos no molde do filme francês simpático e altamente corrosivo Branca de Neve Depois do Casamento. Romeu se casa com Julieta, e aí? Continua fazendo as declarações de amor lindíssimas que ele fazia, mesmo depois de descobrir as pequenas manias aporrinhantes da esposa no dia-a-dia? Continua a compará-la a um anjo celeste ao descobrir o bafo de onça que ela tem ao acordar de manhã? Continua a idolatrá-la como uma divindade mesmo nos dias de T.P.M.? E ela, amaria tanto o seu maridão ao lavar suas cuecas sujas ou ao ouvi-lo berrar frente ao jogo de futebol, bêbado e fedorento? Bem provável que não. O que não quer dizer que devemos saltar para a conclusão fácil de que “o casamento é o túmulo do amor”. Que haja casamentos com amor, apesar de raríssimos, até acredito. Mas neles as pessoas se amam com um amor bem diferente do de Romeu e Julieta, muito mais pé-no-chão, muito mais realista, e que talvez seja muito mais heróico e mais belo do que a dessas loucas crianças shakespearianas.
Frei Lourenço, um dos poucos personagens moderados e sensatos da peça, diz a frase perfeita como epitáfio para esta, a mais triste história que já houve, de Romeu e Julieta: “Esses transportes violentos têm um fim igualmente violento e morrem em pleno triunfo, como o fogo e a pólvora que, ao se beijarem, se consomem.”
Pois a paixão de Romeu e Julieta não é daquelas que plenifica, que acalma, que traz bem-estar, que deixa em estado de graças... não! É uma paixão que dilacera, que causa insônia, que atormenta, que inquieta, que machuca, que dói muito mais do que sara. É o tipo de paixão que não foi feita para durar. Primeiro, pois há mesmo uma linha tênue entre a paixão e o ódio – e Julieta é testemunha disso, já que a primeira reação que ela tem ao saber que Romeu atacou e matou um Capuleto é de ferocidade:
“Oh, coração de serpente, oculto debaixo de um semblante de flores! (...) Cordeiro com entranhas de lobo! Desprezível substância da mais celestial aparência! (...) Oh! Natureza! Que tinhas a fazer no fundo do inferno, quando alojaste a alma de um demônio no paraíso mortal de corpo tão belo? Qual foi o livro que algum dia conteve matéria de tal modo vil, tão ricamente encadernado? Semelhante mentira pode habitar um palácio tão maravilhoso?”
E depois desses ataques de furor, inconstante como toda mulher apaixonada, ela já está de novo se derretendo de paixão, chorando torrentes ao ver Romeu desterrado, arquitetando seu próprio suicídio ao notar que dificilmente poderia escapar do casamento que os pais lhe arranjavam com alguém mais conveniente aos Capuletos...
Também por isso Romeu & Julieta é o tipo de história um tanto datada, que só poderia acontecer em tempos históricos onde ainda vigorava o casamento por interesse e a humanidade achava normalíssimo que duas pessoas tivessem matrimônio arranjado pelos pais, sem nenhum afeto envolvido. O casamento por amor, é bem sabido, é uma invenção bem recente na história. E nada impede que na personalidade de Julieta tenha entrado um certo elemento de rebelião feroz contra esse sistema social e a imposição que os pais faziam de um noivo à donzela. Na peça, Shakespeare carrega pesadamente nas tintas com que descreve a tirania do papai Capuleto. Quando o paizão fica sabendo que Julieta não vê com bons olhos o casamento com Páris, ele tem um ataque psicótico daqueles:
“...te levarei à igreja arrastada numa carreta! Fora da minha presença, carcaça doentia! Fora daqui, libertina! Cara sebenta! Enforca-te! Criatura desobediente! Ouve o que te digo: ou vais à igreja na quinta-feira, ou jamais me olhes em face! (...) Deus só nos havia enviado esta única filha, mas, agora, vejo que esta única é demais e que nós a tivemos para nossa maldição. Sai de minha vista, ordinária! (...) Agora que lhe havíamos conseguido um gentil-homem de família principesca, cheio de riqueza, jovem, educado com o maior esmero, recheado, como dizem, de belas qualidades; um homem, enfim, como alguém pudera desejar, vem esta miserável e estúpida chorona, esta boneca gemedora, quando lhe sorri a fortuna, exclamar por toda resposta: “Não quero casar”. (...) Em minha casa não porás mais os pés! (...) enforca-te, mendiga, consome-te de fome e miséria, morre no meio da rua. Por minha alma, nunca te reconhecerei e nada que me pertence jamais te pertencerá!”
Quando Julieta se suicida, parece ser, além da manifestação súbita do terror de ver o seu amado perdido pela sempre, vencido pelo veneno, também um modo de punir os próprios pais pela tirânica imposição de um casamento que ela não queria. Quantas Julietas de verdade não devem ter existido história afora, que se lançaram ao túmulo só para fugir à cadeia em que os pais queriam lhe meter!
* * * * *
PAIXÃO E MORTE
A Marina Colasanti, brilhante como sempre, comenta:
“Não haveria de ser por puro sadismo dos escritores que tantos venenos, tantos punhais, tantas tuberculoses encerraram para sempre a carreira amorosa de nossos mais românticos heróis. Nem a morte foi posta ali porque o autor não sabia como acabar a história. Mas sim porque ela representa o supremo encontro, o mais insuperável dos orgasmos. (...) Ela serve também para estabelecer a eternidade do amor. (...) Como preservar para o leitor a beleza estética desse amor, obrigando-o a acompanhar os pouco edificantes achaques da velhice, a doença, até a morte? Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas. Ao autor, portanto, não restava outro recurso de narrativa senão o de matar seus protagonistas no auge do amor, no momento mesmo do reencontro com que culminava a vitória sobre o obstáculo. Era a morte em pleno momento de beleza, cristalizando essa beleza para a eternidade...”
Não sei ao certo se Shakespeare concordaria com esses ditos, mas eles são instigantes. Em Romeu e Julieta, a morte serve mesmo para “estabelecer a eternidade do amor”, como diz a Marina, ou a morte é muito mais uma prova de que essa paixão dos dois não tem absolutamente nada de eterna e que viveu sempre sob o signo da efemeridade e da adversidade? Como recurso literário, a morte dos pombinhos é de fato uma ótima pedida para fixar na mente do leitor a imagem de uma paixão arrebatadora, que sobe como um foguete e explode no ar como um fogo de artifício, sem ser necessário que o escritor, pelo bem do realismo, descreva tudo o que há de pouco espetacular e grotesco nas relações amorosas reais. No livro de Shakespeare, os detalhes menos edificantes de uma história amorosa são omitidos e não dá tempo da gente saber mais sobre a relação da pequena Capuleto e seu amado Montecchio. De fato, como diz a Marina, “Romeu e Julieta desdentados e catarrentos dificilmente se aguentariam como personagens românticas”. E Shakespeare, gênio do tamanho que era, certamente sabia disso.
Uma boa idéia para um humorista desilusionista seria escrever uma peça sarcástica chamada Romeu e Julieta Depois do Casamento – mais ou menos no molde do filme francês simpático e altamente corrosivo Branca de Neve Depois do Casamento. Romeu se casa com Julieta, e aí? Continua fazendo as declarações de amor lindíssimas que ele fazia, mesmo depois de descobrir as pequenas manias aporrinhantes da esposa no dia-a-dia? Continua a compará-la a um anjo celeste ao descobrir o bafo de onça que ela tem ao acordar de manhã? Continua a idolatrá-la como uma divindade mesmo nos dias de T.P.M.? E ela, amaria tanto o seu maridão ao lavar suas cuecas sujas ou ao ouvi-lo berrar frente ao jogo de futebol, bêbado e fedorento? Bem provável que não. O que não quer dizer que devemos saltar para a conclusão fácil de que “o casamento é o túmulo do amor”. Que haja casamentos com amor, apesar de raríssimos, até acredito. Mas neles as pessoas se amam com um amor bem diferente do de Romeu e Julieta, muito mais pé-no-chão, muito mais realista, e que talvez seja muito mais heróico e mais belo do que a dessas loucas crianças shakespearianas.
Frei Lourenço, um dos poucos personagens moderados e sensatos da peça, diz a frase perfeita como epitáfio para esta, a mais triste história que já houve, de Romeu e Julieta: “Esses transportes violentos têm um fim igualmente violento e morrem em pleno triunfo, como o fogo e a pólvora que, ao se beijarem, se consomem.”
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