terça-feira, 31 de maio de 2005

we like planets that go "boom!"

Posto aí embaixo um textículo APAVORANTE do titio Koestler, no qual ele se põe a mostrar, numa argumentação bastante plausível, por que é que a raça humana, essa lindeza, is going bye bye. Tudo bem que foi escrito nos anos 70, em plena Guerra Fria, época de pesadas nóias que faziam temer uma hecatombe nuclear, com a possibilidade sempre palpável de que os EUA ou a União Soviética apertassem o botão da Máquina do Apocalipse, mandando todas as formas de vida sobre a face da Terra de volta para o nada... Não foram poucos os artistas que, naqueles tempos em que se temia que a Guerra Fria esquentasse muito além do recomendável, soltaram gemidos de pavor frente às perspectivas sombrias para a humanidade no tempo da bomba de hidrogênio. Só pensar no “Doutor Fantástico” de Stanley Kubrick, na “A Hard-Rain’s A–Gonna Fall” do Bob Dylan ou nos escritos meio apocalípticos do Norberto Bobbio... Mas não acho que seja somente uma doentia paranóia causada pelo espírito dos tempos. O grande Koestler – que, além de seus excelentes trabalhos literários (destaque supremo para “O Zero e o Infinito” e “Cruzada sem Cruz”), também era um puta dum filósofo e dum estudioso de ciência e política - também se levantou para manifestar uma opinião bastante pessimista sobre o futuro da humanidade nesse seu excelente livro que é o “Jano”. A humanidade, muito provavelmente, não vai durar mais muito tempo, diz K., e mesmo que se saiba bem que não vamos fazer muita falta para o Universo, que conosco ou sem nosco vai seguir fazendo o que sempre fez, sei lá pra quê, não deixa de ser angustiante pensar que a história humana está prestes a ser tragada pelo nada... Ah, vaidade das vaidades, foi tudo em vão!... Tudo em vão!

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“Se me pedissem para mencionar a data mais importante da história e da pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação: o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. Desde o alvorecer da consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em que a primeira bomba atômica sobrepujou o brilho do Sol em Hiroshima, a humanidade como um todo deve conviver com a perspectiva de sua extinção como espécie.

Aprendemos a aceitar a efemeridade da existência pessoal, ao mesmo tempo em que tínhamos como certa a potencial imortalidade da raça humana. Essa crença deixou de ser válida. Precisamos rever nossos axiomas. (...) A partir do instante em que abriu a caixa nuclear de Pandora, nossa espécie tem vivido com os dias contados... Em nenhuma época anterior tribo ou nação alguma possuiu o instrumental necessário para tornar este planeta inadequado para a vida.

(...) Infelizmente, uma invenção, uma vez realizada, não pode ser desinventada. A arma nuclear veio para ficar; integrou-se na condição humana. O homem terá que viver com ela permanentemente: não apenas durante a próxima crise de confrontação e a seguinte, não apenas durante a próxima década ou o próximo século, mas para sempre, isto é, por todo o tempo em que a humanidade sobreviver. Mas tudo leva a crer que isso não será por muito tempo.

Duas razões principais alicerçam esta conclusão. A primeira delas é a técnica: à medida que os instrumentos da guerra nuclear se tornam mais potentes e mais fáceis de construir, torna-se inevitável sua disseminação tanto entre as nações jovens e imaturas como entre as nações antigas e arrogantes, ficando impraticável o controle global de sua produção. Num futuro previsível, essas armas serão fabricadas e estocadas em grandes quantidades, pelo mundo inteiro, por nações de todas as cores e ideologias, e a possibilidade de que a centelha que inicia a reação em cadeia será ateada cedo ou tarde, deliberada ou acidentalmente, aumentará na mesma proporção, até se aproximar, a longo prazo, da certeza. Pode-se comparar tal situação a uma aglomeração de jovens delinquentes presos numa sala repleta de material inflamável, aos quais se dá uma caixa de fósforos - com a piedosa recomendação de não brincarem com fogo.

A segunda razão principal que aponta para uma curta probabilidade de vida para o Homo Sapiens na era pós-Hiroshima é o elemento paranóico revelado pelos registros de seu passado. Um observador imparcial, vindo de um planeta mais evoluído, que pudesse abranger de um só relance a história humana desde a caverna de Cro-Magnon até Auschwitz, certamente chegaria à conclusão de que a nossa raça, embora seja admirável sob alguns aspectos, é sob a maioria dos aspectos um produto biológico muito deteriorado. Além disso, as consequências de sua enfermidade mental sobrepujam em muito suas realizações culturais, se consideradas as oportunidades criadas pela prolongada existência. O som mais persistente que ecoa ao longo da história do homem é o rufar dos tambores de guerra. Guerras tribais, guerras religiosas, guerras civis, guerras dinásticas, guerras nacionais, guerras revolucionárias, guerras coloniais, guerras de conquista e de libertação, guerras para prevenir e para terminar todas as guerras seguem-se umas às outras numa cadeia de repetição compulsiva a perder-se nas brumas do passado, persistindo fundadas razões para crer que essa cadeia se estenderá para o futuro. Durante os primeiros 20 anos da era pós-Hiroshima (1946-1966), o Pentágono registrou quarenta guerras combatidas com armas convencionais. E pelo menos em duas ocasiões - Berlim em 1950 e Cuba em 1962 - chegamos à iminência de uma guerra nuclear. Se deixarmos à parte o confronto de piedosos pensamentos, devemos supor que os focos de potenciais conflitos continuarão a se acumular pelo globo terrestre, como regiões de alta pressão num mapa meteorológico. E a única salvaguarda precária contra a escalada de conflitos locais para guerras totais e retaliações mútuas dependerá sempre, por sua própria natureza, do autocontrole ou temeridade de falíveis homens-chaves e regimes fanáticos. A roleta russa é um jogo que não pode ser tentado durante muito tempo.

O mais impressivo indício da patologia de nossa espécie manifesta-se no contraste entre suas incomparáveis proezas tecnológicas e sua também incomparável incompetência em resolver os problemas sociais....” (15-17)

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“...o Homo sapiens não é um ser razoável - pois se o fosse, jamais teria transformado sua história em tamanho descalabro sanguinolento. Aliás, não há o mínimo indício de que o homem tenha iniciado o processo de se tornar razoável.” (19)

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“O Homo sapiens é praticamente o único ser do reino animal carente de salvaguardas instintivas contra a matança de seres da mesma espécie, isto é, de membros de sua própria espécie. A Lei das Selvas só conhece um único motivo legítimo para matar: a necessidade de alimentação. E isto apenas sob a condição de que o predador e a presa pertençam a espécies diferentes. No seio da mesma espécie, a competição e o conflito entre indivíduos ou grupos resolvem-se por simbólicas posturas de ameaça ou por cerimoniosos duelos que terminam com a fuga ou gesto de rendição de um dos oponentes, raramente provocando ferimentos mortais. As forças inibidoras - tabus instintivos - contra a morte ou ferimentos graves causados a seres da mesma espécie são tão fortes na maioria dos animais - inclusive nos primatas - como os instintos de fome, sexo, medo. O homem é o único (afora alguns controvertidos fenômenos observados entre ratos e formigas) a praticar a matança de seres de sua espécie, em escala individual e coletiva, de maneira espontânea e organizada, por motivos que variam desde os ciúmes sexuais até sofismas de doutrinas metafísicas. O permanente estado de guerra entre coirmãos é uma características básica da índole humana.” (21)

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“Os contínuos desastres registrados na história humana originam-se principalmente da excessiva capacidade e ânsia do homem para identificar-se com uma tribo, nação, igreja ou causa, esposando o seu credo com muito entusiasmo mas sem o mínimo senso crítico... o problema de nossa espécie não é um excesso de agressividade, mas uma excessiva capacidade para devotamente fanático. (...) As guerras não são feitas para obter ganhos pessoais, mas por lealdade e devotamento ao rei, ao país ou à causa. Em todas as culturas, incluindo a nossa, os homicídios cometidos por razões pessoais constituem uma raridade estatística.” (28)

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“...tanto a glória como a patologia da condição humana derivam de nossos poderes de autotranscendência, capazes igualmente de nos transformarem em artistas, santos ou assassinos, mas preferentemente em assassinos. Apenas uma pequena minoria é capaz de canalizar os ímpetos autotranscendentes para ideais criativos. Para a esmagadora maioria, ao longo de toda a história, a única realização de sua necessidade de entregra, de seus anelos de comunhão, tem sido a identificação com um clã, uma tribo, nação, igreja, ou partido, a submissão a seus líderes, a veneração de seus símbolos, a aceitação pueril e não crítica de seu sistema de crenças emocionalmente saturado.” (106)

(arthur KOESTLER. "jano".)

quinta-feira, 26 de maio de 2005

DLMSONGS

esqueci de avisar, mas já estão downloadáveis os seguintes álbuns:





DEVIN DAVIS - "Lonely People Of The World, Unite!" (2005)
JIMI HENDRIX - "Band Of Gypsys" (1970)
DINOSAUR JR. - "You're Living All Over Me" (1987)
SUPERGRASS - idem (1999)
JULIE DELPY - idem (2003)
WEEZER - "Make Believe" (2005)
mêmo esquema: www.gmail.com, u:dlmsongs, p:queromp3.

terça-feira, 24 de maio de 2005

em verdade vos digo que hoje sei quem sou muito melhor do que sabia antes pois no meu caminho passou o abençoado oráculo...


Googlism, a invenção do século, é a solução perfeita para as crises de identidade. Digite teu nome e ele irá pescar nos mares da Internet tudo que há de mais profundo, relevante e INCOMENSURAVELMENTE ESCLARECEDOR sobre ti e irá te fazer enfim TRANSLÚCIDO PARA TI MESMO.

Eu descobri, por exemplo, que "Eduardo é um dos grandes dançarinos de tango no estilo milonguero de sua geração", que "Eduardo não é exatamente um cavalo de corrida fenomenal", que "Eduardo é um jogador defensivo 100% melhor que eu", que "Eduardo está mudando o menu logo logo para adicionar TAPAS", que "Eduardo é o mais cool dos ghostbusters de todos os tempos", que "Eduardo é o ducentésimo nonagésimo sexto nome mais popular nos EUA", que "Eduardo é um daqueles que estará viajando para a Noruega pela terceira vez para ensinar para as crianças a excitante arte brasileira da capoeira", que "Eduardo é música para os subúrbios"... Puxa vida.

Descobri ainda que "Lúcio está morto", que "Lúcio não está à venda", que "Lúcio é um refúgio saboroso de dois dormitórios para aqueles desejosos de aproveitar a única e rica experiência de Bali", que "Lúcio é uma religião", que "Lúcio está sempre ajudando a Igreja Católica Romana", que "Lúcio é um fornecedor de armas", que "Lúcio será obrigado a casar com a prostituta que engravidou", que "Lúcio é um órfão siciliano que nos fez uma oferta que não pudemos recusar", que "Lúcio é um típico", que "Lúcio é o nome de um garoto"... Puts grila.

Vasculhando no Googlism sobre a verdade sobre o meu passado, descobri também que a "Watchtower está mentindo sobre sua relação com os nazis", que a "Watchtower não é um pecado", que a "Watchtower é muito mais do que uma organização religiosa", que a "Watchtower é um culto de controle de informação que deliberadamente confunde as pessoas", que a "Watchtower é a única verdadeira religião e que o demônio está solto para desencaminhar-vos do caminho dela", que a "Watchtower é o único canal que Deus está usando para dirigir seu povo sobre a Terra", que a "Wacthtower é fundamentalmente uma má idéia", que a "Watchtower está levando milhões de seguidores direto para a morte" e que a "Watchtower está dizendo que todo mundo no mundo de hoje é um completo idiota". Óia só.

Mas nem tudo é perfeito: "Sorry, Google doesn't know enough about DIRTY LITTLE MUMMIE yet...".

Ainda sim, salve Googlism!

Googlism forever!

Googlism para PAPA!

quinta-feira, 19 de maio de 2005

FUGAZI. breve história de uma das mais importantes bandas punk dos anos 90.

F U G A Z I
não é o nome de um partido político.


"Se a História for simpática com o Fugazi, os discos da banda não serão obscurecidos pela reputação e métodos de trabalho deles. Ao invés de serem conhecidos por seu ativismo comunitário, shows a cinco dólares, CDs a dez dólares, resistência às ordens do mainstream e risível folclore fictício cercando seus estilos de vida, eles serão identificados por terem fixado um grande nível para excelência artística que é frequentemente buscado mas raro de ser conquistado. Durante sua existência, o quarteto criou algumas das mais inteligentes, revigorantes e indubitavelmente musicais canções de pós-hardcore. Lado a lado com sua ética underground - que se baseava mais em pragmatismo e modéstia do que qualquer outra coisa - eles ganharam um culto global numeroso e extremamente leal. Para muitos, o Fugazi significava tanto quanto Bob Dylan tinha significado para seus pais. (...) Mais que qualquer coisa, o Fugazi inspirou; eles mostraram que a arte podia prevalecer sobre o comércio." ALL MUSIC GUIDE

É no modo-Fugazi-de-ver-as-coisas que se torna mais virulenta aquela ideologia que poderíamos chamar de Ortodoxia Indie: a certeza de que as grandes gravadoras são como Igrejas de Satã instaladas sobre o planeta Terra para conspurcar e empodrecer nossos ouvidos com lixo, a crença de que o mainstream é palco privilegiado para o desfile de tudo o que há de risível e deplorável no ramo da música, a convicção de que estar com um clipe em alta rotação na MTV ou subir ao topo da parada da Billboard é sinal de demonismo, canalhice e falta de caráter... Tudo aquilo que procure vincular a música à engrenagem capitalista de multiplicação de capital, tudo o que tem a ver com fabricação de estrelas a serem amadas de joelhos nos altares pop, tudo o que é feito com vistas ao sucesso e aos bolsos cheios de verdinhas é absolutamente repudiado pelo Fugazi. A salvação, não cansam de dizer eles, é a Independência, o do-it-yourself, o montar sua gravadora e produzir a si mesmo, a publicidade boca-a-boca, o redemoinho de indie-zines. Estejam certos: esses caras NUNCA irão assinar um contrato com a Warner Brothers, NUNCA estarão sendo anunciados no topo do Disk MTV, NUNCA venderão mais de um milhão de cópias de qualquer de seus álbuns, NUNCA vão permitir que seus CDs sejam vendidos por mais de 10 dólares, nem que a entrada para seus shows custe mais do que o proletariado pode pagar, e nem por isso deixarão de ser considerados como uma das mais influentes, incendiárias e inspiradoras bandas dos anos 90.

O modo de trabalho do Fugazi praticamente resume o Evangelho Indie: fuja do mainstream e das majors, funde tua própria gravadora (nesse caso, a já lendária Dischord), venda seus discos a 10 paus e seus ingressos a 5, dê entrevistas quilométricas para zinões toscos de fundo de quintal enquanto levanta o dedo médio pra Rolling Stone e pra NME, e nunca se esqueça de denunciar toda a podridão que se esconde por trás do Esquema do Pop capitalista - que é ganancioso, fútil, burro, farsário e alienante (pra dizer o mínimo).

A Dischord, nascida para que o Teen Idles, antiga banda de Ian MacKaye, pudesse auto-lançar seu material, hoje já tem mais de 20 anos de idade e está devidamente consolidada como um pilar fundamental para o rock independente americano nas últimas décadas. "É difícil de imaginar onde milhares de bandas estariam hoje - Rage Against the Machine, Nirvana, Beastie Boys, Sleater-Kinney - se a Dischord não tivesse emergido no horizonte cultural nos anos 80", diz matéria na SALON. "Diferente de muitas gravadoras independentes, a Dischord não se comporta como um gravadora major em miniatura. Nenhuma das dezenas de bandas que lançaram discos com MacKaye o fez sob qualquer obrigação contractual com o selo. CDs, vinis e outros lançamentos recebem um preço congruente com os custos de produção e distribuição".

Ou seja, a Dischord é quase uma empresa sem fins lucrativos atuando muito mais por amor ao punk rock do que por ganância financeira. O próprio MacKaye esclarece: "um aspecto dessa gravadora que resultou em nossa longevidade é que eu odeio a indústria de discos. Eu nunca quis possuir uma gravadora em si. Eu queria lançar discos e eu odiava tanto a indústria que não conseguia suportar a idéia de qualquer outra pessoa lançando os discos... pois eu nunca pude confiar neles." Uma boa amostra do que fez a gravadora nessas duas décadas de vida pode ser encontrado no BOX 20 Years Of Dischord, recentemente lançado nos EUA, que resume em 3 CDs o que de melhor foi gravado nos estúdios do selo.

Além dessa radical tomada de posição anti-capitalista, o Fugazi também é famoso por seguir e "propagandear" o estilo de vida Straight-edge, que não deve ser familiar àqueles que não estão inteirados com os subterrâneos da cena punk, valendo a pena então dar uma clareada no seu significado. "Straight Edge" é, antes de mais nada, uma música do Minor Threat, a banda de hardcore que Ian MacKaye chefiava na segunda metade dos anos 80, música esta que serviu para batizar um "movimento comportamental" dentro da cena punk. Os mais fanáticos seguidores vêem nele muito mais do que uma modinha ou do que o nome de uma tribo urbana: para eles, Straight Edge é uma seríssima filosofia de vida seguida com uma ortodoxia digna de um religioso fervoroso. Para os detratores, os punks straight-edge representam a parcela mais "puritana" e "moralista" dentre os punks, mas não há poucos que ressaltam o fato de que o straight-edge foi importante para provar que ser um punk não era sinônimo de ser imoral, violento, vândalo e/ou nazistóide...

A filosofia straight-edge solicita de seus seguidores que não consumam nenhuma droga (nem mesmo o álcool), que não se entreguem a relações sexuais casuais e promíscuas, que pensem com uma "mentalidade comunitária", que não se deixem nunca arrebatar pela violência, dentre outros preceitos. Há até mesmo aqueles que se pronunciam convictos vegetarianos! Apesar de haver uma série de bandas underground que se dizem straight-edge, o Fugazi e o Minor Threat permanecerão sempre como as duas bandas-símbolo do movimento e Ian MacKaye, queira ou não, como o messias dessa religião laica...

Não é difícil de simpatizar com a banda só por isso que ficou dito, e não foram poucos os que manifestaram sua empatia com a luta fugaziana (Kurt Cobain, por exemplo, declarou que muito admirava a "integridade" do Fugazi). Mas por enquanto ainda não saímos do domínio da política, do comportamento, da atitude frente ao capitalismo e à indústria cultural, e não chegamos ao que também interessa checar: a música. "Se a História for simpática com o Fugazi, os discos da banda não serão obscurecidos pela reputação e métodos de trabalho deles", disse o simpático sujeito que escreveu a bio da banda para a AMG. E é fato que a banda chega a ser mais célebre pela ideologia indie ortodoxa e pelo modo-de-viver straight-edge do que pela própria música que fazem.

As mitologias que circulam por aí sobre os membros da banda beiram a lenda folclórica e acabam desviando a atenção pra longe do som. "Uma vez que a banda não dava entrevistas para publicações grandes, alguns jornalistas foram deixados livres para improvisar e optaram por tomar licença criativa. As fofocas entre a base de fãs era igualmente imaginativa. De fato, alguns dos caras que iam aos shows poderiam se surpreender de ver a banda chegar aos locais em vans, e não num comboio de camelos. Aqueles que falavam com membros da banda ficavam surpreendidos de ouvir que eles viviam em casas - e não em monastérios - com calefação funcionando... e que suas dietas não eram estritamente à base de arroz", diz o bem-humorado cara da AMG.

Enfim, é preciso ir à música, e é isso o mais importante. É chegado o tempo de começar a ouvir o som do Fugazi ao invés de só reconhecê-los pela política frente à indústria cultural e a moralidade rígida que seguem. Que os holofotes finalmente iluminem a música do Fugazi e não só a desgraçada da Atitude!

Pois bem: abanda começou sua caminhada em 1987, na capital americana Washington, formada das ruínas de algumas bandas importantes na consolidação do hardcore e do emo americano. Do Minor Threat, banda de rápida carreira que é hoje considerada uma das mais importantes da história do hardcore (lado a lado com os Dead Kennedys, o Husker Du, o Discharge...), saiu o vocalista Ian McKaye. Do Rites Of Spring, o guitarrista e vocalista Guy Picciotto. Foram complementados pelo baixista Joe Lally e pelo baterista Brendan Canty. Através dos anos 90 e 00, lançaram (sempre via Dischord) os seguintes álbuns: 13 Songs (que reúne os dois primeiros EPs lançados pela banda, o auto-entitulado de 1988 e o Margin Walker de 1989), Repeater (1990), Steady Diet Of Nothing (1991), In On The Kill Taker (1993), Red Medicine (1995), Instrument (trilha-sonora, 1998), End Hits (1999) e The Argument (2001).

Descrever a música com palavras sempre é tarefa complicada, mas tentemos. O Fugazi sempre me pareceu a irmã menor do Gang Of Four na família que tem por papai o The Clash e por mamãe o pós-punk ao estilo PiL (se bem que com uma violência sônica mais brutal). Como o Gang e o Clash, o Fugazi também é uma banda profundamente política, engajada, militante, mas a analogia não pára por aí. A música do Fugazi compartilha com o Gang of 4 e com o pós-punk em geral alguns elementos clássicos: a preferência dada ao fator rítmico sobre o melódico, a gravidade dos instrumentos solo (que faz com que as guitarras tenham aquele som quase de baixo e que quase nunca saiam fazendo solinhos agudos), a ausência quase completa de lá-lá-lás cantaroláveis. O Fugazi é muito mais um monstro rítmico barulhento do que uma fábrica de doces melódicos, caindo vez ou outra num experimentalismo que beira a atonalidade e o sonic-youthianismo. Bandas como o ...Trail of Dead, o Mission of Burma, o Jesus Lizard, o Jawbox, o Plastic Constellations e o Giddy Motors seguem o mesmo evangelho e são outros parentes próximos na família Fugazi.

Em resumo: tanto pela música empolgante e contagiosa quanto pela atitude muito elogiável, o Fugazi é tipo um MODELO. A heróica banda que segura a bandeira do underground com a mais firme das mãos e que conduz o mastro da Dischord por mares turbulentos sem naufragar. Os corajosos punks que ousaram questionar todos os estereótipos e sugerir que ser punk poderia ser outra coisa que não somente destruição, anarquia e niilismo (e que podia se basear em espírito comunitário, ativismo político, construção de valores alternativos...). Enfim: a banda-emblema dos anos 90 a provar que "a arte podia prevalecer sobre o comércio". Uns HERÓIS, esses caras.

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DisCOgRaFia PrInCIPal
álbum + ano + avaliação minha sem muito pensamento:

13 Songs (1988/89) ---- 9.2
Repeater (1990) ---- 8.0
Steady Diet Of Nothing (1991) ---- 7.5
In On The Kill Taker (1993) ---- 9.4
Red Medicine (1995) ----- 9.8 (BAixÁVEL No DLmSOnGS!)
End Hits (1999) ----- 8.8
The Argument (2002) --- 8.1

terça-feira, 17 de maio de 2005

tó aê um bô dê lér, ó

pra continuar a campanha de tacação de tomates sobre o Capitão Sorriso:


"Anjo todo alegria, conheceis a desgraça,
A vergonha, o remorso, os soluços, o tédio,
E nas noites de pasmo, o terror sem remédio,
Que comprimem o coração como um papel que se amassa?
Anjo todo alegria, conheceis a desgraça?

Anjo todo bondade, conheceis o rancor,
Punho cerrado à sombra e lágrimas de fel,
Quando a vingança bate e o seu chamado cruel
De nosso pensamento é o único senhor?
Anjo todo bondade, conheceis o rancor?

Anjo todo saúde, conheceis os Delírios
Que, pelo corredor do hospital descorado,
Como exilados vão, com seu passo arrastado,
Os lábios a mover, buscando a luz dos círios?
Anjo todo saúde, conheceis os Delírios?

Anjo todo beleza, conheceis estas rugas
Do horror de envelhecer como tormento infausto
De ler o obscuro horror de penoso holocausto
Nestes olhos que sempre subjugas?
Anjo todo beleza, conheceis estas rugas?

Anjo todo ventura, alegria e clarões,
Davi a agonizar teria retornado
Só às emanações de seu corpo encantado.
Mas de ti só imploro as tuas orações,
Anjo todo ventura, alegria e clarões!"


(charles baudelaire. "as flores do mal". canto XLVII.)

sexta-feira, 6 de maio de 2005

conto novo

"A ILHA DA FELICIDADE"

Ah, a felicidade, essa coisa de que tanto falam os infelizes!... perpétuo sonho das almas oprimidas pela dor!... louca aspiração humana que, tão pouco presente, brilha mais por sua ausência!... ah, Felicidade, existes tu?... ou sempre fomos nós, pobres homens, tolos o bastante para passar toda uma vida a desejar o impossível?...

Houveram, nos tempos de trás, numerosas tentativas de fabricar um paraíso terrestre onde nos refugiaríamos das tempestades e dos trovões da vida e encontraríamos enfim aquele estado mitológico, de que tanto nos falam e que tão pouco experimentamos, A Felicidade... Como nos garantem as propagandas televisivas de margarina, as canções adocicadas das FMs, os mui sábios conselheiros matrimoniais e os abundantes finais felizes dos filmes americanos (que são os melhores do mundo, como todos sabem), é sim possível ser feliz, e todos seremos, no fim. É o que prometem. Engolimos essa promessa açucarada e deixamos que se derreta no intestino, enquanto esperamos que chegue o tal do fim para checar se era verdade ou não. Esperamos e esperamos e esperamos... Semana que vem as coisas vão melhorar! Ano que vem a alegria irá invadir meu coração! Quando eu me aposentar, será uma belezura de vida! E aí um dia morremos.

Mas será possível fazer o Sol da felicidade brilhar acima de toda uma comunidade? Muitos já tentaram, mas se conhecem muitos mais fracassos do que sucessos. Porém... (sobe trilha sonora otimista) Capitão Sorriso, mais novo aspirante a concretizador da utopia, estava certo de que estava destinado à glória.

A ilha era paradisíaca, cheia de coqueiros e palmeiras aprazíveis, canteiros cheirosos de rosas e margaridas, areia fina e branca como açúcar, clima tropical caloroso na medida certa, ameno sem dar calafrios, quente sem tostar a pele... gaivotas brancas espiralavam pelo céu brilhante, e a água azul transparente era cheia de cardumes de peixinhos pacíficos... aquela velha história. Capitão Sorriso tudo arranjou com seu prodigioso capital: acomodações luxuosas de hotel cinco estrelas, sacadas com inebriantes vistas para o mar, redes espaçosas estendidas nas matas, fontes de água-doce jorrante, barcos para expedições marítimas aventurosas, frutos suculentos abundando nos pomares...

Não teriam tevê, jornais ou revistas porque nessas coisas só há desgraceiras, chacinas, massacres, misérias, fomes, sanguinolências, filha-da-putagens, guerras, cruz credo. Não! Deixariam tudo isso pra trás. Não queriam mais saber. Música sim, é claro, pois sem música a vida seria um erro. Mas só sonoridades doces, meigas, incentivadoras do espírito comunitário e das ligações humanas harmoniosas. Seriam vegetarianos, pela saúde forte que decorre desse tipo de dieta, mas também para que se poupassem do espetáculo sempre entristecente de precisar matar animaizinhos e rasgá-los com uma faca, e abrir-lhes as tripas, e assá-los no fogo, molhados em sangue, ai que nojo. Não queriam nada que lembrasse morte ou putrefação. Estavam indo em direção a uma ilha virgem de morte, virgem de podridão, onde ser humano algum havia ainda perecido. Não teriam cemitérios. Não teriam lágrimas a derramar pelos que se foram. A morte não existiria. Só a delícia de viver. Começariam de novo, ano 1 pós C.S., e criariam na Terra um reino à imagem e semelhança do Reino dos Céus. Ó sim.

E no mundo normal, este nosso, Capitão Sorriso pôs-se a procurar pelos moradores adequados àquele mundo de alegria e bem-aventurança que estava a construir. Não queria ter por companhia ninguém que tivesse propensões mórbidas, personalidade melancólica, semblante triste. A Ilha teria entrada interditada para todos aqueles que fossem sorumbáticos, macambúzios e meditabundos; estavam proibidos de embarcar todos que tivessem algo a reclamar da vida. O nobre Capitão queria preencher sua Arca somente com sorridentes obsessivos, alegres espontâneos, gente de bem com a vida e consigo. Queria adentrar a Ilha da Felicidade com uma procissão de felizes que refletiriam os raios do Sol com o marfim de seus dentes e que alegrariam os ouvidos da Lua com o coro de suas risadas. Com essa luz e com essa doce música a ilha seria batizada e a beatitude começaria. Ó sim.

Se mudaram, 500 pessoas, muito bem selecionadas, havia até famílias inteiras e casaizinhos apaixonados, e desembarcaram todos num dia radioso de verão, muito adequado ao início da nova era. Escapuliram do mundo normal, o nosso, bem escondidinhos... não queriam ser seguidos. Infelizmente, não cabia todo mundo na Ilha da Felicidade, que se podia fazer? Só podiam lá morar os eleitos. Se sabe bem, desde o começo dos tempos, que o Inferno é quatrocentas e noventa cinco mil vezes mais povoado do que o Céu. Logo, o Paraíso terrestre tinha que seguir o molde de seu símile transcendente.

Capitão Sorriso, apesar de seu fulgurante idealismo e sua confiança rígida no bom sucesso de sua empreitada, não confiava na anarquia como sistema político, mesmo no interior da Ilha da Felicidade. Viu-se então na necessidade de assumir o posto de Imperador para trabalhar em prol da Causa. Em seu discurso de posse, anunciou as regras muito simples que passariam a vigorar naquele canto abençoado da Terra. Policiais sorridentes fariam a vigília da ilha com o único intuito de manter a chama da alegria sempre acesa. Aqueles que fossem flagrados cometendo os crimes vergonhosos e imundos de chorar, de se entristecer, de se angustiar, de maldizer, de reclamar, de blasfemar contra a vida, seriam levados à cadeia para assistirem a constantes sessões de palhaçadas e a filmes de Charlie Chaplin, a fim de retornarem ao único estado aceitável naquele território. Aqueles que porventura não conseguissem reconquistar suas alegrias na "prisão" (que eles gentilmente chamavam de Centro Médico Para o Restabelecimento do Sorriso) seriam gentilmente condenados a se retirar da Ilha por violar seu dogma mais fundamental. O governador reconheceria seu erro de julgamento anterior e diria ter errado na seleção daquela pessoa, que demonstrava não ser verdadeiramente uma eleita.

A princípio, tudo correu docemente na Ilha da Felicidade e só se viam sorrisos pintando os semblantes dos ilhados. Com o tempo, porém, certos acontecimentos que não tinham sido previstos pelo otimismo de Capitão Sorriso começaram a se desenrolar. Os casais de namorados, por exemplo, que tinham chegado à Ilha em meio aos furores da paixão, foram lentamente brochando como flores sem água. A chama foi perdendo seu vigor como se faltasse lenha a queimar. O hábito foi lambendo o amor com sua língua asquerosa e fazendo-o tornar-se... habitual. Começaram a se sentir entediados uns com os outros, e a descobrir quem o outro era de verdade, no correr lento do dia-a-dia, tendo que sepultar todas suas ilusões... e muito não demorou para que desejos conspícuos surgissem... e, em seguida, atos de adultério... e, claro, vinganças sangrentas e ciumeiras brutais.

Outras pessoas, que nos primeiros dias haviam experimentado os mais doces dos prazeres na Ilha recém abraçada como nova casa, com o tempo começaram a se acostumar com aquilo até que tudo tivesse se tornado muito normal e muito cotidiano. Perceberam, muito surpresas, que muito desejavam estar nessa Ilha quando estavam no Mundo Normal, mas agora que tinham conquistado o objeto de seus desejos, magicamente, passaram a não mais desejá-lo. Tinham tudo o que desejavam. Mas viver sem mais desejos era de um tédio insuportável!

E também aconteceram - coisa que Capitão Sorriso muito lamentou, fazendo muitos esforços para manter-se com aparência alegre e jovial - alguns pequenos acidentes imprevistos: um menininho de 8 anos, uma gracinha de garoto, havia tentado nadar pelos mares em dia de maré violenta e acabou sendo pego de surpresa por uma tempestade. Foi tragado pelas vagas. Nunca mais foi visto. Outro menininho, esse um pouco menor, foi picado por um estranho mosquito e adoecia de uma doença muito semelhante à lepra, espetáculo pouco agradável aos olhares, razão pela qual foi mantido cuidadosamente escondido em seu quarto. As mães e os pais dos dois garotinhos, como já se suspeita, não puderam evitar suas lamúrias, suas lágrimas, seus sofrimentos. Capitão Sorriso, trabalhando em prol da causa, teve que levá-las para a cadeia e, posteriormente, ao exílio. Infelizmente, tinha que ser severo. A felicidade tinha que ser mantida a todo custo. As duas famílias foram reenviadas à Sibéria, apelido dado dentro da Ilha ao Mundo, o nosso.

Capitão Sorriso não desanimou frente a esses inconvenientes pois viu que, apesar daqueles que sucumbiam às tristezas e às melancolias, havia aqueles que se mantinham firmemente aferrados à sua alegria e nunca eram vistos sem que um sorriso largo lhes pintasse o rosto. O Capitão tirou disso a seguinte conclusão: não havia sido suficientemente severo durante o processo de seleção dos habitantes da Ilha e havia escolhido certas pessoas que não eram verdadeiramente eleitas e que tinham dentro de si "secretas e repulsivas propensões à morbidez", como ele dizia. Tudo o que tinha a fazer, então, era tomar certas medidas drásticas para separar os felizes-de-verdade dos felizes-de-mentira, para então extirpar estes últimos sem piedade, como ervas daninhas que sujavam um jardim, a fim de enfim conquistar a comunidade perfeita de pessoas inteiramente felizes. Ó sim.

Munido de sua autoridade como Imperador, e fazendo tudo em nome da Santa Causa, o Capitão decidiu-se a aumentar os poderes dos policiais-sorriso. Agora eles tinham permissão para fazer execuções sumárias de todos aqueles que fossem pegos infringindo a lei da Ilha. Aos que se levantaram para se opor a essa decisão, dizendo que era moralmente reprovável, o Capitão respondeu que os meios justificavam os fins; prometeu ainda que, no futuro, quando a utopia enfim estivesse concretizada, todos o agradeceriam por ter tomado medidas aparentemente tão cruéis ao notar que tinham sido de muita utilidade. Não faltaram aqueles que mandaram cartas ao Capitão Sorriso alertando-o de que uma tal lei, se fosse efetivamente estendida para a população de todo o planeta Terra, poderia muito bem acabar com a completa extinção da raça humana. O Capitão achou que isso era uma grande bobagem.

A lei passa a vigorar. Eis o que se segue: um certo rapaz teve que receber um implante de bala de pólvora dentro de seu crânio por estar chorando perto do riacho por não ter sido correspondido pela bela garota que estava paquerando. Ai que dó! Mas era preciso! / Um pai de meia idade, que havia exagerado na comida na noite anterior, foi pego a se contorcer de dores de diarréia numa privada, e os policiais-sorriso, vendo prova tão veemente de sofrimento, tiveram que meter-lhe uma bala nariz adentro. / Uma garota, antes considerada como a mais alegre de toda a ilha (havia até ganhado o Troféu Sorrisa do Ano), e que sempre era vista a lamber pirulitos com o semblante iluminado, pegou uma cárie nos dentes e berrava de dor quando foi flagrada por um policial-sorriso, que precisou seguir as ordens do patrão e executá-la imediatamente.

Assim as coisas foram indo, até que o Imperador notasse, muito preocupado, mas sempre sorridente, que enfrentava uma perigosa baixa populacional em sua Ilha. Fazia-se necessário ir até a Sibéria, proceder a novos testes e recrutar mais pessoas felizes para a Ilha da Felicidade.

Não foi tarefa fácil. Devido a uma ironia do destino (ou um sarcasmo da gramática, como queiram), a Ilha da Felicidade tinha adquirido a reputação de ser um local extremamente infeliz. O mundo acompanhava horrorizado, pela TV, o desenrolar da saga de Capitão Sorriso e sua Utopia, e as pesquisas de opinião pública revelavam que 80% das pessoas julgavam ser impossível ser feliz dentro da Ilha da Felicidade, simplesmente pelo fato de que lá a felicidade era obrigatória. Os agentes de publicidade de Capitão Sorriso batiam de porta em porta para expor aos habitantes "da Sibéria" as maravilhas da Ilha e para provar-lhes que muito melhor viveriam por lá. Não foram muitos os que conseguiram convencer, e aqueles que enfim deram seu "sim!" não eram exatamente o tipo de pessoas adequado para o lugar: mendigos, sem-terras, sifilíticos, aidéticos... em suma, infelizes.

Capitão Sorriso muito se surpreendeu. Por que diabos só os infelizes queriam embarcar, cheios de esperança, para aquele lugar distante chamado Ilha da Felicidade? Por que só os infelizes se deixavam convencer de que havia um lugar distante onde, no futuro, encontrariam a beatitude? Por que as pessoas mais felizes da Sibéria não se deixavam convencer de que melhor viveriam se se mudassem para a Ilha?

Desesperado com a baixa populacional e com sua incapacidade em recrutar novos concidadãos, Capitão Sorriso, confuso, cheio de incompreensão, foi bater na porta de um dos mais renomados e inteligentes filósofos da Sibéria em busca de explicações. No dia da entrevista, a situação havia se degringolado imensamente e Capitão Sorriso estava quase só em sua ilha. Perguntou ao sábio, com humildade, se ele desejava se mudar para a Ilha da Felicidade para lhe fazer companhia e lhe dar muitas úteis lições de vida. Ao que o bom filósofo respondeu:

"Não senhor, não tenho um miligrama de desejo, nem uma migalha de vontade, de me mudar para esse lugar asqueroso que foi chamado, muito erroneamente, de Ilha da Felicidade!... Rá! Que importam suas belas arvorezinhas, seus passarinhos meigos, suas águas transparentes, se não se trabalha também sobre a alma?!... Você pode criar o paraíso ao redor de ti, meu amigo, mas nada impede que o inferno vá desabrochar DENTRO de ti... E que cruel tirania é essa que vigora nessa ilha!... Acha que quero me sentir obrigado a me manter sorridente por todo o tempo, a não reclamar de nada, a manter sempre escondidas minhas angústias e dores, escravizado pela ditadura da felicidade hipócrita?... Ó não!... Sombria perspectiva!... Vou fugir desse seu inferninho como os judeus fugiam dos nazistas, como os vampiros fugiam do alho, como o fogo foge da água!... Porque eu desejo manter meu sagrado, meu intocável, meu inalienável, meu IN-CON-TES-TÁ-VEL direito às lágrimas! Pois não é verdade que iremos todos morrer dentro de poucos anos (isso se tivermos a sorte de que não sejam poucos MINUTOS!)? E que morre-se de fome e de doença e de solidão em todos os cantos desse mundo? E que enquanto bilhões morrem de inanição, uma meia dúzia sofre de indigestão? E que furacões, tornados, terremotos, tempestades e tsunamis despencam sobre nós só para provar que nada somos para a Natureza, que nos aniquila como se fôssemos formigas? E não existem todas as pequenas dores desse nosso corpo frágil e precário, as cáries, as úlceras, as diarréias, as prisões de ventre, as enxaquecas, os cânceres, as gonorréias? E não existem as penas que recaem sobre a mente, os medos, as esperanças frustradas, as raivas, as melancolias, os complexos, as neuroses? E você, seu canalha monstruoso, me pede que eu tudo ignore, que fure meus próprios olhos por medo da luz, que finja que tudo está muito bem, que me obrigue a manter sempre na cara um sorriso idiota que só pode sair de dentro de um ser que insiste em se auto-cegar?... Ora, uma vida humana livre de todo sofrimento e de toda angústia é a maior das impossibilidades!... um delírio monstruoso!... uma mentira suja!... Desejar esse tipo de estado é o mesmo que desejar o impossível, e com isso condenar-se à infelicidade!... E não estou dizendo, certamente não!, que nunca se deve sorrir! Não irei construir uma ilha onde será proibido se alegrar! Muito pelo contrário! Adoro a alegria, adoro sorrir, adoro me divertir, adoro o bom-humor... mas não quero fazer disso um evangelho que não se possa infringir, uma regra de vida que não suporte variações!... Quero uma vida cheia de "es", sempre "es", eternos "es", e nunca "ous"... ao inferno com os "ous"! Quero uma vida em que eu possa ser alegre E triste, exultante E melancólico, sorridente E chorão, flutuando de pólo a pólo de acordo com aquilo que pedem e merecem as circunstâncias... Não quero construir uma prisão em um dos pólos e lá me encerrar. Quero dizer o Grande Sim à vida inteira, com tudo o que ela contêm dentro dela!... E, além do mais, há certas situações na vida nas quais chorar não é somente meu direito, mas meu DEVER! Não, não quero morar em sua desgraçada Ilha! Não quero nenhuma felicidade que não possua lágrimas como ingrediente! Não quero! Não quero!..."

Capitão Sorriso, Imperador supremo e despótico da Ilha da Felicidade, lugar extremamente infeliz, recolhe-se em seu paraíso para um período de meditação e sente que se derrama sobre ele, como chumbo derretido, o discurso de seu opositor. Com o maxilar fatigado após tantos esforços para manter os cantos dos lábios colados às orelhas, finalmente se permite um semblante de pessoa normal. Solitário, sobe em seu barco e caminha em frente, sobre as águas, na contramão das ondas, resoluto.

E foi assim que a Ilha da Felicidade se tornou a Ilha Deserta.