sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

:: MILK ::

Saiu um ensaiozito meu sobre "Milk", o novo Gus Van Sant, lá na Revista O Grito! O texto ficou bem mais ou menos (não faz jus ao filme), mas... foi o que deu pra fazer com o deadline apertadíssimo e sem muita chance para pesquisas mais detalhadas. Cola lá!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

THE RAINBOW'S END

talvez o que encontraremos
no fim do percurso
é só a descoberta
de que procurávamos
o inencontrável.

Como quem leva anos
para chegar ao fim do arco-íris
só para descobrir
que não há pote de ouro.
Ou como alguém que cavalga
em seu camelo pelos desertos
sem jamais topar
com o mítico oásis.
Ou um crente que se flagela,
se reprime e se penitencia
só pra notar, ao morrer,
que o céu era um engodo
e que lá, no país sem regresso,
não há nada.
Nada além de nada.


Talvez essa cansativa peregrinação do desejo
em busca do que ele mesmo se imagina
sempre atrás da plenitude que se delira
seja nada mais que lição
que nos ministra o não
mais forte que o sim.

A amarga pedagogia
das travessias vãs.

Vai ver que o prêmio
é descobrir
que não há
prêmio algum.
E assim ser
maravilhosamente
dispensado
desta inútil missão.

Não sou bobo de sair por aí,
com minha rede de borboletas,
à caça de fadas madrinhas
e gnomos da floresta.
Nem tento velejar até a Lua.

E se a vida me provasse,
sem possibilidade de dúvida,
que a Felicidade é como Papai Noel?
uma bobagem para enganar os ingênuos,
um nino para as criancinhas pegarem no sono,
uma chupeta para que os adultos parem de chorar...
talvez seria melhor.
Pois cansei de tentar.
Quero parar de querer.

Que bom seria se a felicidade não existisse!
Que alívio, se fosse certo que o amor é ilusão!
Que descanso, não ter ilhas no horizonte a alcançar!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

:: As Crônicas Marcianas ::


RAY BRADBURY
As Crônicas Marcianas” (1950)

[Martian Chronicles, ed. Globo, 298 pgs.,
trad. Ana Ban e apresentação de Jorge Luis Borges]



“Deve ser um bom passatempo”, pensei comigo antes de embarcar neste livro, não botando muita fé no valor artístico do treco – era pra ser só um aprazível entretenimento natalino o que ele me proporcionaria, depois de um semestre repleto de Kant e chatezas deste naipe. Acabei ficando positivamente chocado com o poder e a qualidade deste clássico de Ray Bradbury, um dos maiores mestres da literatura de ficção científica no séc. XX junto com Kurt Vonnegut, Philip K. Dick e Stanislaw Lem, entre outros. Mais do que um belo livro dentro de seu gênero restrito, este Crônicas Marcianas é um romance fino até mesmo se julgado dentro do universo bem mais vasto da Literatura Fantástica. “Literariamente o próprio Bradbury desenhou sua árvore genealógica em um depoimento: se vê como filho de Julio Verne, sobrinho de H.G. Wells, primo de Edgar Allan Poe e filho de Mary Shelley, a criadora de Frankestein. Sem contar os heróis Flash Gordon e Buck Rogers, que considera seus irmãos”, comenta Donizete Galvão no prefácio.

Não há nada de exagero em colocá-lo lado a lado com tão respeitável panteão: a obra é de fato um pungente retrato imaginativo, sombrio e distópico que soa como um conto fúnebre de Poe ou algum excelente filme de terror de gelar a espinha. O que Jorge Luis Borges chama de “deleitáveis terrores” - que fazem com que o grande escritor argentino se pergunte, inquieto e fascinado: “O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão? Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo?”


As Crônicas Marcianas estão muitíssimo distantes de narrar um tolo confronto entre etzinhos verdes com arminhas a raio laser que digladiam contra os humanos por supremacia na Via Láctea. É, ao contrário, uma obra profundamente dark e tétrica, muito mais low-key do que frenética, que no cinema equivaleria mais a um filme de Tarkovsky ou Lynch do que a uma alegria de criança ao estilo do Tim Burton em Marte Ataca!.

Bradbury, com sua escrita concisa e direta, sem grandes ornamentos mas cheia de ironia e crítica implícitas, vai destilando uma crueldade calma, página e página, de um modo realmente assustador. Lançado em 1950, o livro espelha o estado de espírito paranóico e desconsolado do pós-Segunda Guerra Mundial na América e vem carregado de crítica social: contra o imperialismo, o racismo, o materialismo, a futilidade e a superficialidade do american way of life que ameaça se auto-exportar para Marte. Pobres dos marcianos!

A ameaça de uma hecatombe nuclear pairava então como uma plausível ameaça sobre as cabeças americanas (e humanas). No fim dos anos 40, logo depois do fim de uma sangrentíssima conflagração mundial, viam uma nova rixa tomar o lugar da antiga – e o que garantia que os russos comedores de criancinha, quando lhes desse na telha, não iriam chover as bombas H sobre Washington e Nova Yorke, ainda que como uma vingança tardia por Nagasaki e Hiroshima, tornando o planeta inadequado para a vida? Sim: a Terra podia, a qualquer momento, se tornar um imenso ossário, cemitério a céu aberto, onde as ruínas de uma civilização morta e os cadáveres carbonizados de todas as criaturas estariam como triste memento da estupidez humana. “Qualquer pessoa sensata queria ir embora da Terra”, narra Bradbury, com o “tom” de quem vê um planeta condenado e já pensa que a única salvação para a sobrevivência da humanidade é subir num foguete e ir procurar uma nova morada nas estrelas.

O mais notável nesta obra é a inversão que se opera na balança entre mocinhos e vilãos: pois são os TERRÁQUEOS os verdadeiros bandidos em “As Crônicas Marcianas”! É a raça humana que é descrita como corrompida, bélica, gananciosa, superficial e imoral – um bando de trogloditas e vândalos que vai até Marte com intenções IMPERIALISTAS e COLONIZADORAS, exorbitando de presunção e ignorância, inconscientes do mal que irão gerar. Muitos dos astronautas de Bradbury parecem imprestáveis personagens de Bukowski : “tinham arriscado a vida por uma coisa grande e agora queriam gritar e beber até cair, disparando suas pistolas para demonstrar como eram maravilhosos por terem aberto um buraco no espaço e conduzido um foguete até Marte” (100).

É com ironia cortante que Bradbury descreve os “planos” dos recém-chegados – um bando de trigger-happy yankees - num planeta cheio de ruínas de civilizações aparentemente mortas: “Haveria tempo para lançar latas de leite condensado nos orgulhosos canais marcianos; tempo para os exemplares do jornal New York Times saírem voando e, farfalhando, forrar o leito dos oceanos solitários e cinzentos de Marte; tempo para que cascas de banana e papéis de piquenique se infiltrassem nas delicadas ruínas de antigas cidades dos vales marcianos...” (99).

É brilhante o paralelo que Bradbury acaba estabelecendo entre o colonialismo no nosso passado histórico terráqueo e a possibilidade da aparição de um novo colonialismo, desta vez intergaláctico. “O senhor se lembra do que aconteceu com o México quando Cortez e seus belos amigos chegaram da Espanha? Toda uma civilização foi destruída por pessoas preconceituosas, gananciosas e donas da verdade. A história jamais perdoará Cortez...” (121), comenta o personagem Spender. É esse o paralelismo principal que vai nortear a narrativa de Ray Bradbury. Ele parece reiterar a todo instante que A INVASÃO do HOMEM BRANCO EUROPEU E CRISTÃO à África e às Américas, onde chegou para pilhar, explorar, escravizar, destruir crenças e deixar uma imensa pilha de cadáveres e ruínas, não é muito diferente da atitude desta Humanidade Grotesca que vai se meter a besta e AVANÇAR sobre esta Nova África que é o Pobre Planeta Marte. O imperialismo intergaláctico é o novo colonialismo opressor!

“...e os foguetes [chegando em Marte] esmagavam todos os nomes com marretas, transformando o mármore em argila, despedaçando os marcos de barro que davam nome às antigas cidades, e nesses escombros enfiavam-se postes suntuosos com novos nomes... então chegaram os homens sofisticados da Terra. Vinham em grupos e em excursões de férias, em pequenas viagens para comprar bugigangas, tirar fotografias e sentir a 'atmosfera'; vinham fazer estudos e aplicar leis sociológicas; chegavam com estrelas, condecorações, regras e regulamentações, trazendo um pouco da burocracia que tinha se espalhadop sobre a Terra como uma erva daninha alienígena...” (180-81)

Por isso o grande HERÓI MÍTICO de Crônicas Marcianas, Spender, é um outlaw, um marginal, um astronauta desertor, um aliado de Marte, que percebe o tamanho do MAL que a humanidade causaria ali e tenta SABOTAR a missão de colonização – ainda que, para isso, tenha que se tornar ASSASSINO de seus próprios COLEGAS. “Este planeta, nós vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”, pondera o grande misantropo justificado Spender, lembrando-se com melancolia do destino de seu planeta de origem: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas”. Seu discurso é poderoso:

“A única razão porque não montamos barraquinhas de cachorro-quente no meio do templo de Karnak, no Egito, é porque estava fora de mão e não era uma grande oportunidade comercial. Mas aqui, tudo é antigo e diferente, e precisamos nos fixar em algum lugar para começar a estragá-lo. Vamos batizar o canal de canal Rockefeller e a montanha, de montanha Rei George, e haverá cidades chamadas Roosevelt, Lincoln e Coolidge, coisa sem sentido, porque existem nomes adequados para todos esses lugares... Eles [os marcianos] sabem que estamos aqui para cuspir em seu vinho e imagino que nos odeiem...” (107) “O senhor ouviu os discursos no Congresso antes de partirmos! Se as coisas derem certo, eles querem instalar três centros de pesquisa atômica e depósitos de bombas nucleares em Marte. Isto significa o fim de Marte; todas estas coisas maravilhosas desaparecerão. (...) Eles vão fabricar suas bombas atômicas imundas aqui, brigando por bases para travar guerras. Não basta terem estragado nosso planeta, precisam mesmo estragar outro? (...) Como é que o senhor se sentiria se um marciano vomitasse bebida rançosa no chão da Casa Branca?” (120-21)


Por aí já se vê que o livro é uma obra literária muito mais preciosa do que parece à primeira vista - e que vai muito além de ser passável entretenimento. É muito mais uma crítica à cultura americana do que um exercício de vagas fantasiações sobre o futuro humano. As Crônicas Marcianas é um ode viva ao poder da imaginação humana como uma instância crítica, irônica e alarmista. Tanto que, no meio destes sombrios relatos, sobra espaço para Ray Bradbury realizar quase um Manifesto Literário defendendo a Literatura Fantástica: é o genial “Usher II”, referência ao célebre conto de Poe, “A Queda da Casa de Usher”. Se no clássico Farenheit 451, depois filmado por Truffaut, Bradbury já tinha dizimado com ironia mordaz os “bombeiros” que, portando lança-chamas, reduziam a cinzas o Perigoso Saber contido nos livros, aqui ele volta ao ataque àqueles que atacam o gênero de literatura que ele simboliza.

Ele narra com mordacidade uma Imensa Conspiração para o assassinato de livros fantásticos. Ele é perpetrada por “pessoas com mercurocromo no lugar do sangue”, horrendos estraga-prazeres de “Mente Limpa” e “investigadores de Climas Morais”, membros de uma certa “Sociedade de Prevenção à Fantasia” que dizimou todo o nefasto irrealismo literário...

“Todos os homens, diziam, precisavam encarar a realidade. Precisavam encarar o Aqui e o Agora! Tudo o que não fosse assim precisava ser destruído. Toda a linda literatura que ousasse apresentar a fantasia deveria ser abatida em pleno vôo. (...) Papai Noel, o Cavaleiro Sem Cabeça, Rumpelstiltskin e a Mamãe Ganso, ah, que lamentável... Eles foram abatidos, queimaram seus castelos de papel, os sapos dos contos de fadas, os antigos reis e as pessoas que viveram felizes para sempre (por que, é claro, ninguém de fato vivia feliz para sempre!), e “Era uma vez” transformou-se em “Nunca mais”! E espalharam as cinzas do fantasma Ricksaw com as ruínas da Terra de Oz; fatiaram os ossos de Glinda, a fada boa do Sul, e de Oz, despedaraçaram Policromo em um espectroscópio e serviram João Cabeça de Abóbora com suspiro no baile dos biólogos! O pé de feijão morreu em um emaranhado de burocracia! A Bela Adormecida acordou com o beijo de um cientista e morreu com a picada fatal de sua seringa. E fizeram Alice beber alguma coisa que a reduziu tanto que ela não podia mais gritar 'Que estranho estranhíssimo'...” (...) Fincaram uma estaca no coração do Halloween e disseram aos produtores desses filmes que, se fossem fazer alguma coisa, que filmassem e refilmassem Ernest Hemingway. Ah, o realismo! Ah, aqui, ah, agora, ah, diabos!” (185-188)

Palavras de um grande fantasista que, dando asas à imaginação, provou em sua brilhante obra que consegue ser imensamente mais lúcido que muito “realista” por aí.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

:: what's wrong with the blueberry pie? ::

MY BLUEBERRY NIGHTS
- um conto de reveillon em 8 quadros
e um epílogo poético -


“Floats with the logic of a falling leaf
Sailing in the wind, as logic ends
And love begins again.”

RODDY FRAME




[bridge over troubled water]

O mundo desconhece as angústias deste profissional tão subestimado: o construtor de pontes. São tantas as vezes que ele obra em vão! Tantos dias de esforço, tanto músculo estendido e distendido, tanta energia dispendida, tanto concreto e argamassa!... E quando aquela obra-prima arquitetônica se levanta nos ares, imponente como um herói de pedra, desafiando a soberana força da gravidade, muitas vezes não há quem ponha os pés sobre ela. É medo de que tombe? Assustam as águas lá embaixo que turbilhonam furiosas? Ou é minha ilha, que convido para visitarem, que não tem atrativos, palmeiras e passarinhos? Pelo visto, sou péssimo ponto turístico.

Sei bem da triste sina pois pontes construo desde tempos imemoriais, ainda que não tenha feito faculdade e materiais só os tenha de precária qualidade. Até hoje, só conheci o sabor do fracasso e das ilusões perdidas: não houve ponte que eu construísse que cedo ou tarde não desabasse.

Mas pensa (delira?) este meu coração carnavalesco e teatral, construtor de pontes nesta vida tão cheia de som e fúria, que sua missão é levar por elas embrulhos de presente que tragam dentro felicidades humanas. Construir pontes para exportar e importar presentes e pérolas: por que não estaria aí o sentido da vida? Riquezas guardadas apodrecem. Amor guardado apodrece. Por isso o caminho é abrir todos os baús de tesouros que nós, tão avaros de nossas almas, resguardamos com tanto cuidado. Deixar que o cortejo se vá, saltitante, pontes afora, para outras plagas. Como um circo itinerante, fazendo a alegria viajar. Alegria sentada em casa apodrece.

Não é que esse coração sinta que foi determinado pelos céus que os corações devem ser mártires suicidas, que se entregam em sacrifício e hecatombe para o bem de outra criatura. Se ele se dá, não é porque não quer ser feliz (quer mais que tudo!), mas porque compreende que a única travessia adequada para lá é essa: a do dar-se.

“A vida só se dá pra quem se deu”, diz o Vinicius, e eu acho esta uma das frases mais lindas que existe, uma das que mais traz sabedoria condensada, umas das que mais me guiam como preceito ético. Mas mais que isso: como caminho para a felicidade. É só dando-me que posso ganhar-me. É só esvaziando-me do que tenho de bom, por mandar tudo pra fora, que posso me plenificar. A salvação está no outro e não no eu. Melhor: no laço entre eles, na ponte que entre eles se constrói, no fluxo entre eles que se estabelece. Esta, a única coisa capaz de dar sentido a nossas vidas completamente absurdas, debaixo desse céu sem deuses e que tantas vezes é todo nuvens nubladas e chuva de neve.

Não passo de um modesto construtor de pontes, ainda leigo nesta difícil arte, que às vezes ergue monstrinhos arquitetônicos que nem precisam de terremotos para ruírem. Mas sei que preciso delas para o meu próprio bem, e para o bem de tantos. Não as construo para que possa mandar meus tanques de guerra e meus exércitos, passando por sobre as águas que nos separavam, para pilhar tuas riquezas, espionar teus segredos, reabrir as tuas feridas, mutilar e matar aquilo que amas, tudo pela expansão do meu império. Se as construo, é porque quero levar rosas e borboletas de minha terra para a tua, e quem sabe você possa me presentear com margaridas ou vagalumes que em meu cantinho da terra são escassos. Firmar um pacto de sol. Instalar um fluxo de doçuras. Trata-se de uma ponte para a vantagem mútua, e que tão mais firme será se a construirmos a quatro mãos... Não me deixe só, amiga, construindo minhas frágeis pontes sem auxílio!...

* * * * *

[a angústia dos devaneios primaveris]

Eu e minha tristeza, gêmeos siameses de nascença, nunca rasgados por alguma mágica cirurgia, caminhamos pelo mundo por tanto tempo convictos: não tínhamos nascido para trazer um grama de alegria a mais a este mundo. Os metereologistas, analisando com seus termômetros da felicidade os ares do cosmos, certamente publicariam seus achados nas biografias que sobre mim seriam escritas, se eu as merecesse (mas claro que não!): “foi homem que não trouxe contribuições à quantidade de alegria que se mistura ao oxigênio que nesta atmosfera respiramos...”.

Eu, o menino dos olhos tristes, da estrela apagada, do sorriso difícil, da melancolia teimosa, que mal aprendeu a gargalhar, que nunca é tirado pra dançar pelo êxtase, que jamais será candidato sério a garoto propaganda de creme dental ou margarina, me vi - pura magia! - transbordando de energia naquele dia, como se tivesse ganho de repente um estranho super-poder: o de fazer alguém feliz. Você. Sim, eu posso! - gritei, surpreso de me achar tão potente.

Feliz com o prenúncio de felicidade, já antegozando o deleite que sentiria ao dar de presente a felicidade, fui correndo te contar a boa nova. Revelar que você havia ganho na loteria, mesmo sem ter jogado. Que a era dourada começava... Pousando no seu coração, como em terra incognita que acabei de achar com meu foguete, eu achava que podia, por mera invocação, com a força enérgica do meu desejo, conclamar um sol a nascer. Eu, que tão pouco te conheço, que entrei ainda tão superficialmente nos teus labirintos, com medo de neles me perder, com a vertigem que sentimos frente aos grandes enigmas, pretendia ter já confeccionado a chave que abriria para o teu peito o baú das delícias.

Naquele dia tive certeza de algo que em mim sempre vacila, descrente que sou do meu próprio heroísmo: certeza de ser capaz de ser pra ti o melhor. Tive certeza: ela estará mais contente comigo do que sozinha; viverá uma noite muitíssimo mais memorável e doce na minha companhia do que se escolher a segurança estéril da solidão. Sei que posso fazer de alegrias a oferenda: presente de Reveillon pra ti, meu amor.

Sim, eu achava que tinha embrulhado a felicidade in a heart-shaped box, como diz a canção do Nirvana que você um dia cantou pra mim, e estava a caminho de ir entregá-la pessoalmente - e num dia tão especial, com gosto de novidade, de recomeço, de horizonte que se abre, de folha branca onde rabiscar um destino novo...

E debaixo daquele céu explodente, cheio de estrelas coloridas e novas, que pareciam fazer amor na sala de aquarelas endoidecida do céu, eu te entregaria esse tesouro. Ia como quem tinha bolado um êxtase e acionado a bomba relógio...

Nisso me lancei, com uma temeridade que eu desconheço, com um atrevimento que não é do meu feitio, embrulhando-me pra presente e me auto-enviando pelo correio para a sua casa. E você, talvez por alergia à fofura, por nojo pelo lirismo sentimentalóide, descrente de tanto romantismo com sua exemplar sobriedade, cortou as asinhas do meu infantil entusiasmo saltitante, faminto de felicidade, que te procurava para uma brincadeira de amor debaixo dos fogos...

Eu ali, todo embrulhado em papel de presente, enviado a ti em nobre missão de fabricar felicidade... e você deixou o carteiro a bater e a bater, até que os pulsos dele ficassem vermelhos e caíssem vencidos. E o carteiro largou o pacote ali, no meio da rua deserta. Minha apertada caixa transformada em aquário. Pela felicidade não dada. Pelo presente não aceito. Pela porta encontrada fechada. Por toda essa doçura inútil que ficou em meus lábios e azedou. Por todo esse amor que gostaria de ser onda se derramando, vasta e selvagem, encharcando tuas praias, fertilizando tuas margens, ensolarando teu peito, mas que foi obrigado a permanecer represado, sem espaço para correr, sem um coração que a ele se abrisse...

Um porto onde repousar meu amor: tudo o que peço. Mas ele vaga, errante, sem ser aceito em hospedaria alguma, como um cigano mendigo e maltrapilho, exilado sem pátria mãe, perdido sem mapas, navio à deriva e sem bússolas, navegando sempre em mar de tormenta... E enquanto a vida faz o seu costumeiro trabalho de doer, sonho nas asas de uma frase de Machado: “o coração dela seria o melhor dos hospitais...”


[esperando godot]

"waiting on love ain't so easy to do."
jack johnson

Um dia inteiro perdido na angústia da espera. Espera inútil, como quando vamos ao médico, ficamos na fila por horas e finalmente nos dizem: “volte amanhã, acabou-se o expediente”. E cambaleamos de volta pra casa, com a dor que já tínhamos multiplicada, já que a ela se somou a ilusão perdida de uma cura.

Se, em tempos idos, os moçoilos e moçoilas apaixonados permaneciam plantados ao lado do telefone ou da caixinha do correio, como se fossem samambaias, à espera da ligação da única pessoa no mundo que importa, eu hoje também me planto, ansioso e tenso, no aguardo de um e-mail, de um torpedo, de um scrap – do teu sim.

Ah, a tecnologia não moderniza o coração! Ele é o mesmo bichinho estúpido que sempre foi. Deus, se existisse, teria sido mais sábio se, ao invés de colocar o cérebro no crânio, o instalasse dentro do coração. Como um rei em seu trono ou um capitão em seu navio. Surgiria assim uma novidade no Universo, até hoje desconhecida, por mais que os astronautas viajem para planetas e constelações distantes e por mais que os astrônomos investiguem em minúcias cada canto e buraco dos céus: um coração sensato. Ah se não seria um espanto!

E ah se eu fizesse o inventário de todas as minhas esperas vãs! Quantos rolos de papel higiênico me seriam necessários para relatá-las todas? Eu seria mais sábio se limpasse com eles o bumbum, ou assoasse neles o catarro do nariz, ao invés de sujá-los com essa sujeira tão mais podre: momentos de vida perdidos à espera do que não veio. E foram tantos!

Nem uma palavra. Eu, com o estômago da alma roncando de fome, louco para viver com você os êxtases que só sei sonhar e esperar, me lancei à tentativa desesperada de tornar carne meus delírios e quimeras. Sabendo: dias especiais não se desperdiçam! Sabemos nós se chegaremos vivos até este distantíssimo ponto no futuro, o 31 de dezembro de 2009? Talvez eu morra amanhã, atingido por um tijolo que cai por acidente de uma construção. Ou atropelado por um motoqueiro que acelera no corredor de uma avenida engarrafada. Pode ser até que bombas atômicas estejam pra cair, retornando o planeta à pureza inorgânica. Ou nem façamos tanto drama, nem citemos apocalipses: posso engasgar com um chiclete e tombar assim, besta que só eu, direto no túmulo. Mortes estúpidas são comuns e o inesperado é sempre de se esperar...

Não sou eterno e meu amor também não é. E ainda assim eu, com meu coração tão frágil (uma artéria que se rompa, e lá vou eu ser banquete pros vermes...), eu com minha vida tão rápida, eu com meu tempo tão escasso, fiquei largado a mim mesmo, com minha doçura inútil, com meus presentes embrulhados, com meu calor encarcerado, com minhas carícias estocadas, justo quando faço de tudo a oferenda... Justo quando nós dois, ali, debaixo dos fogos, poderíamos estar fabricando fogo, você preferiu a geleira. Eu com frio aqui, você com frio aí, e ambos, infinitamente tolos, separados debaixo de um céu que explode em cores, rodeados de gente que se beija e congratula, preferindo a solidão ao amor por razões que a razão desconhece e que eu sei que nunca vou entender por completo.


[a hora do sim é um descuido do não]

“A Festa é aquilo que se espera. O que espero da presença prometida é um enorme somatório de prazeres, um festim; me rejubilo como a criança que ri ao ver aquela cuja simples presença anuncia e significa uma plenitude de satisfações; vou ter, diante de mim, a 'fonte de todos os bens'” (...) “Então, não significa nada para você ser a festa de alguém?” BARTHES.

E era só você me ter dito: “vem, vai!” E pronto. Simples assim. Simples como um sim. Mas Vinícius estava certo: “a hora do sim é um descuido do não...”

Eu chegaria a teu apê todo ajeitadinho e cheiroso, vestindo minhas melhores roupas, inclusive a única camisa social chique que tenho, para dar uma impressão de respeitabilidade à minha pessoa punk. Você não sabe de insignificâncias tão tolas como estas: por ti comprei litros de Cepacol extra forte, para cuidar direitinho da minha higiene bucal, investindo no frescor do meu hálito em favor do júbilo do teu paladar. Por ti comprei até um after-shave, um creminho de fresco, muito coisa de plêiba, que a gente passa na pele depois de giletar e a deixa lisinha: rostinho ótimo para te acariciar com as bochechas, moça. Por ti também fiz uma cuidadosa faxina no meu insanamente imundo dormitório, retirando dele sacos e sacos de tralha, varrendo fora carradas de sujeira e pó, deixando tudo brilhante para a remota possibilidade de que você quisesse conhecer my little corner of the world.

Por ti, eu que não tenho emprego, não sou dono de ações e não tenho tostão na poupança, fui à livraria antes do Natal e lá larguei uma grana que não podia gastar, que certamente me faria a maior falta e que dificultaria os meus planos de adquirir os meus sonhos de consumo. Quis fazer esse sacrifício. Antes de nossos encontros, me preparo como se fosse um rock star prestes a subir num palco frente a um estádio lotado: aqueço minha voz lendo poemas em voz alta ou cantando ao violão; tomo longos banhos estouradores de contas de água e luz; só maquiagem que não, que seria muito coisa de mariquinha... Procuro com todo o ardor me tornar a mais decente das pessoas. É como diz o Jack Nicholson para a Helen Hunt naquela cena tão fodidamente comovedora de Melhor É Impossível:

- You make me wanna be a better man.

Ah, se você tivesse dito sim!... Eu chegaria ao seu apê, a taquicardia maltratando as paredes do meu tórax, as mãos suadas e trementes, trazendo um bom vinho em uma mão e o seu presente de Natal, embrulhado em papel dourado, na outra. E você me abriria aquela porta, me recebendo na cozinha deste mundo que pra mim mais tem magia: a cozinha do nosso primeiro beijo; ali, entre a geladeira que tremia (ou éramos nós?) e a mesa cheia de migalhas de panetone, onde, alguns meses atrás, nossos lábios saltaram para o abraço pela primeira vez.

Você estaria linda e nervosa, vestida de modo casual, como quem diz que não liga nada para esses besteiras de Reveillon e que nunca perderia tempo se produzindo ou pondo um vestido todo branco e puro, como mandam as superstições. Nós, como sempre, não saberíamos ao certo o que fazer assim que nos víssemos; eu refrearia a minha vontade de ser selvagem e pular sobre você como um tigre, te lambuzando toda, borrando seu batom, amassando sua roupa bem passada com abraços pouco polidos. Você também, incerta e insegura, não se entregaria a efusões. Cumpriríamos o protocolo, realizando os cerimoniais da convenção de nosso modo tão anti-convencional, weirdos fingindo que são da square society, e nos daríamos beijinhos na bochecha, num máximo um selinho, e ois, tudo bens, como está você.

Talvez você me levasse até o seu quarto, o mais repleto de livros excelentes que já conheci na minha vida (tanto que penso em desencanar da biblioteca da USPe para começar a emprestar só itens da sua coleção!), talvez para me mostrar o seu novo PC ou comentar sobre alguma leitura interessantíssima que você está fazendo de algum russo que não conheço. Você falaria de modo professoral e cheio de autoridade sobre algum conto de Tchekov, alguma peça de Ibsen ou alguma teoria de Vigotsky, me deixando humilde e cauteloso como ficamos frente a um mestre que manja demais e frente a quem não queremos pagar mico. E eu anotaria na minha agenda mental mais alguns nomes de autores e obras que eu preciso urgentemente conhecer, instado pelo desejo de ser aos seus olhos alguém digno, de confirmar comunhões de gosto, de me deixar levar por suas sugestões, todo perdido em admiração...

Talvez você tivesse preparado a TV e o DVD no quarto, como fez naquele dia tão memorável em que me deitei na sua cama pela primeira vez, tão mais confortável e espaçosa que a minha, tão com cara de coisa imperial, que eu até brinquei: “Essa cama tá tão gostosa que não consigo imaginar que você possa ter insônia.” Como se um bom colchão e lençóis fossem o suficiente para afastar de nossas mentes os fantasmas que as assombram, as memórias que levantam de seus túmulos e os pensamentos e desejos que turbilhonam! Você, a princípio, toda tímida, quis a cadeira, me deixou sozinho ali na imensa cama fria, ainda que eu pedisse, sugerisse, tímido também: pode deitar aqui comigo, não tem problema, eu não me importo, tem um espação... E ficamos ali, assistindo episódios clássicos de Arquivo X que você conhece de cor, fingindo que estávamos ali, os dois, sozinhos no quarto, simplesmente assistindo seriados na TV. E claro que não era para isso que estávamos ali. Você, toda bonitinha, foi escovar os dentes e depois se sentiu na obrigação quase de me fazer notar: “quando eu como doce, gosto de escovar os dentes”, ou qualquer bobagem dessas. Como se fosse pra isso que você tinha corrido ao banheiro para espalhar Colgate em sua boca fedendo a comida! E depois você finalmente se deitou, com aquela meiazinha colorida que parecia um memento de infância da Gigi de 8 anos de idade, e eu tive que confessar que aquele sensacional episódio, que você não queria de jeito nenhum que eu perdesse, estava imensamente desinteressante em comparação com a aventura dos teus lábios...

Talvez a gente resolvesse brincar de novo do Jogo da Lulu, como fizemos na pizzaria, você com o óleo preparadinho para me fritar com perguntas cabeludas. Lembro de tudo, até hoje, nos mais mínimos detalhes. Lembro que mandei: “você prefere viver 100 anos a 10km por hora, ou 10 anos a 100km por hora?” E depois a estranha pergunta do Alladin: “se te aparecesse o Gênio da Lâmpada, você preferiria que lhe fossem concedidos quantos desejos: 3 ou 30?” Depois você me fez enfrentar minha própria armadilha e me perguntou: “e você, quais os três pedidos que faria ao Gênio?” Só me lembro que um deles, o que eu compartilhei com mais nervosismo, com medo de que você me achasse ridículo, era esse: um amor plenamente correspondido. Era o mais importante.

Tenho até hoje uma folha de caderno toda amassada, onde rascunhei algumas poéticas questões que eu queria te fazer: "As lágrimas que você na vida chorou, encheriam um prato ou um lago? Teu coração, está mais para mendigo ou milionário? Se fosses pássaro, serias beija-flor ou coruja? E os espelhos, prefere beijá-los ou quebrá-los? Você é uma astronauta ou uma mergulhadora? É uma rede estendida entre palmeiras ou uma montanha-russa? No teu peito, o tambor bate ritmado ou em descompasso? O Universo é obra dum engenheiro ou dum anarquista? Se Deus existisse e te concedesse uma audiência, você lhe daria a mão e um “parabéns” ou um tabefe na cara e uma bronca? E se morresse sem nenhuma cicatriz, acharia isso uma honra ou uma vergonha?”

E talvez, quando desse Meia-Noite, mesmo sem champanhe, sem pular tolas ondinhas, sem ver os fogos no céu, a gente entraria de mãos e lábios dados no Ano do Amor, como eu tanto queria.



[tristeza não tem fim, felicidade sim... ]

E agora me pergunto, interminavelmente, sem achar resposta: por que as pessoas sabotam a própria felicidade desse jeito? Por que dão tiros no próprio pé, de propósito? Por que, quando o amor se aproxima, saem correndo apavoradas e se escondem na caverna escura, aninhando-se no familiar colo pétreo da solidão, ao invés de abraçarem o visitante tão aguardado, que chega carregado de presentes?

Sempre li, sempre me disseram, que a essência de todo e qualquer ser humano é desejar a felicidade, lutar por ela, tê-la sempre no horizonte: como um sol rumo ao qual se veleja, como um sonho que norteia a travessia, como uma missão que se persegue, como uma linha de chegada que nós, maratonistas dos desertos, perseguimos sôfregos, bêbados de desejo por oásis e paraísos...

Hoje descubro, pasmo, que não é bem assim: que a verdade é muito mais complexa, muito mais estranha e muito mais insana. Como é que pode, essas pessoas que parece que não querem ser felizes? Que escolhem de propósito o pior? Que pegam o caminho mais triste, pintam a aquarela com as tintas mais escuras, apagam as luzes e esfriam as lareiras, como se a alegria fosse pecado e o bem-estar proibido? Como é que pode você chegar, estendendo na mão uma rosa, e a pessoa enfiar o dedo justo no espinho e sair correndo com o sangue pingando, largando para trás a flor e a mão que a estendia? Como é que pode você chegar, médico todo transbordante de carinho, oferecendo toda sua energia e todos os seus remédios para tentar curar todas as angústias e solidões, e ela rejeitar, abraçando-se ao que dói, agarrando-se ao que faz mal, rejeitando aquilo que a faria melhor? Como pode, me pergunto, que alguns seres humanos tão lindos, e que tanto merecem a felicidade, que são tão capazes e dignos dela, prefiram carregar suas cruzes, viver na penumbra, cutucar as feridas que já saravam e sabotar os próprios amores?

Talvez isso: há pessoas que não são felizes pois simplesmente não consideram que merecem a felicidade. É como se fosse um prêmio que acham excessivo, um troféu muito pesado, uma honra muito gloriosa, uma medalha que não ousariam carregar no peito. Eles acham-se imperfeitos e pecadores demais, muito cheios de egoísmo e ressentimento e tantos outros vícios... E assim recusam-se à obscena glória de serem felizes. Não aceitariam a felicidade se a trouxéssemos embrulhada de presente e a colocássemos em suas mãos, de graça. Confiam tão pouco em seu próprio valor que não se acham dignos de receber em suas humildes casinhas um hóspede tão nobre, tão imperial e tão puro...

Talvez isso...

* * * * *

[inútil contra buracos]

E agora diz você, descrente, que uma relação comigo não vai te ajudar em nada na cura desse vazio terrível, inexplicável, que você diz também sentir no peito, como eu o sinto no meu? Mas como pode ter tanta certeza assim? Que louca convicção é essa, tão teimosa e de pé-junto, que não quer sequer passar pela prova da experiência? Que curioso isso: recusar uma possibilidade de felicidade, de libertação, de salvação, porque se crê irracionalmente e sem prova alguma, só por causa de um pessimismo de hábito, muito enraizado na personalidade, que esse remédio não funciona? Quem disse que não? Por que não poderia o meu amor ser teu remédio, meu coração ser teu médico, meus olhos serem o espelho que você sempre sonhou, refletindo a linda imagem que você sempre procurou enxergar em vão nos de vidro e nos de água?

Você me diz que sou completamente inútil contra os teus vazios, mas me diz: estavam te machucando os buracos, as angústias e as aflições quando estávamos juntos, enchendo a cara de caipirinha no boteco, dando risada do pimentão que você mascou, toda machona, brincando de ter-mais-colhões-que-Bukowski? E quando estávamos ali, deitados na sua cama, assistindo Arquivo X, você aparentemente tão feliz da vida, podendo demonstrar todo o vasto conhecimento geek sobre a série para seu perplexo admirador, a vida estava doendo?

E quando você gargalhava gostoso, me contando de irresistíveis episódios de South Park, como aquele em que o Cartman descobre a “brown note”, que faz todo mundo peidar simultaneamente, o mundo era então um imenso deserto sem luz? Lembro que você falou num tal de “acorde lactopurga” e eu na hora achei genial: “vou fazer uma música com esse nome! O pessoal da banda vai adorar...”

E era em tristezas que você estava afogada, por acaso, quando me contou, para meu indizível deleite, de um certo episódio dos Simpsons em que o Homer “dá um Boris Yeltsin”? Falei pra mim mesmo: “cara, essa é a mulher mais legal que eu já conheci! E vai me dar de presente pelos menos uns 30 títulos de músicas excelentes...”. E lá fomos nós, mandando goela abaixo as mui bem servidas caipirinhas exquisitas, tentando nós mesmos “dar um Boris Yeltsin” naquela noite tão feliz. E depois você topou uma carona em um carro dirigido por um irresponsável em altíssimo grau etílico, em plena Lei Seca, me contando de proezas alheias: seu amigo com nome de conhaque, que driblou bonito o bafômetro, sabe-se lá com quê feitiçarias...

“Amigos massa tem essa mocinha!”, lembro de ter pensado, o que só se reforçou depois que você me apresentou ao Foda-se A Noiva, depois que pude conhecer também o casal de garotas do Chá com Bolachas - descobrindo assim, de supetão, o que eu sempre procurara por São Paulo: meninas excêntricas e legais que fossem fissuradas no movimento riot grrl e tratavam de fazê-lo acontecer aqui, na maior cidade da América Latina. E por falar em coisas punque, você será eternamente a solução para este enigma: para quem teria o Guitarrista Misterioso enviado um torpedo, de cima do palco, no show de estréia da Liga das Senhoras Católicas, pagando um inesquecível e tão romântico mico?

Em todos esses momentos, que brilham na minha memória, iscas para a minha nostalgia, era por acaso meu coração e minha companhia tão inúteis assim contra as tuas dores? Porque para mim era alegria e pureza: alegria de estar com você, alegria de te ver alegre. E perto de você, o mundo parava de doer, e eu te olhava com aquele olhar atravessado de esperança: que pudesse ser sempre assim!


[meu coração não aguenta ficar sentado]

“from the womb to the tomb,
i guess i'll always be a child.”

devendra banhart

Desejar que algo se complete, será isso coisa de criança? Pois então talvez seja exatamente isso o que sou. Assim sempre me senti. Como o menino que sei que sempre serei, até o túmulo. Sempre tive alergias contra a idéia de crescer. Entendo pouco, mas minha opinião é que psicanálise veio e fez da infância uma sujeira só, emporcalhou-a inteira. Não é porque disse que a criança possui uma sexualidade, já que não acho que haja nada de sujo nisso. Mas a psicanálise fez neurose rimar muitas vezes com regressão e desejos infantis reprimidos, o que tornou a coisa toda culposa.

Querer o retorno da infância virou doença. Querer a felicidade, ingênuamente, passou a ser imaturidade desses neuróticos que não sabem domar o princípio de prazer com o princípio da realidade. Os psicoterapeutas, sóbrios e solenes, diziam: “nos hospícios e nas casas de famílias infelizes encontramos multidões de pessoas que enlouqueceram ou choraram rios por terem desejado com demasiada intensidade o retorno da infância!" Somos ensinados por esta nova escola filosófica, que se chama um tanto pretensiosamente de ciência, que a vida saudável e recomendável se encontra longe desses desejos infantilóides doentios, verdadeiras perversões. É o aspecto da Razão com carra ferrenha, dentes de lobo, solicitando a todo momento: “maturidade, irmão! Maturidade!”

Realmente não vejo as coisas assim... Vejo na Criança muita coisa digna de ser buscada e desejada: o desejo ardente e inocente de felicidade e de deleite, a pressa de fabricar os paraísos terrenos, a brincadeira que é pura fusão no presente, o olhar repleto de espanto e curiosidade, o amor sem máscaras e omissões...

Acho que o desejo de que algo se complete é o que nos move, o que nos empurra pela estrada, o nosso combustível, e é assim que quero viver. Na busca da completude. Na busca da plenitude. Isso não é minha fraqueza, isso é minha força! A solidão não é minha fraqueza: é a força que me impele a sair da prisão horrenda do eu! A angústia não é minha fraqueza: é a força que me injeta na veia a Morte, generosa mestra de vida, me dizendo que o tempo é pouco. E assim me apresso, que os morangos apodrecem, e assim maduros sempre os como. E os corações batem seus tambores só por uma parte mísera da sinfonia do universo, e assim bato ritmado, rápido e rindo.

Não tenho vergonha do meu buraco. Sei que todo ser humano o possui, ainda que o mascare, ainda que minta sua inexistência, ainda que por vezes não o perceba, ainda que alguns há, abençoados, que parecem ter nascido de peito pleno. Isso que falta, isso que suplica por algo que o preencha, esse vazio no centro do peito, essa ausência pulsando na gema da vida, isso não é DOENÇA, isso é SAÚDE!

Como são lindos os pássaros que voam em direção ao que não tem! E que coisa triste é uma andorinha engaiolada... Pior ainda é a andorilha da gaiola de portinhas abertas, que permanece acuada em sua prisão, apavorada de medo de voar, depois de tanto tempo de cárcere, e que não ousa decolar para outras ilhas em busca do que a complete. Pois então fique na gaiolinha, pobre pássaro tímido! Mal imaginas quão longe tuas lindas asas te levariam! Ainda mais se eu te desse carona! I'm a hell of a good flyer, honey babe!

Pra mim só a felicidade é ímã. E quero que seja assim. Que seja sol em direção ao qual eu navegue. Que seja aquilo que me norteie. Que eu o persiga, que esteja sempre virado para ele, este sol que talvez nunca saia do horizonte. Ao menos assim terei vivido a maior parte dos dias aquecido, ainda que de longe, pelo sempre distante sol da felicidade.

A felicidade, para tê-la, acho que a gente precisa primeiro querê-la, querer com muita força, querer com muita garra, pondo toda energia nessa missão, como se fosse a mais importante maratona, o mais glorioso campeonato. Pois é a única guerra que que conta de verdade, a única com prêmio perfeito. E eu quero muito ser feliz. Não vejo vergonha nisso. Quero buscar o que me complete e não vejo nisso fraqueza. Ser incompleto é minha glória maior. Sei que, se completo fosse, morreria a parte em mim que é melhor: aquela que busca o amor e, nesta busca, ama e se perde e ama e sangra e ama e chora e ama e ama e ama...


[voluntário na guerra da tua alegria]

Mas isso, isso jamais alguém me ofereceu: este presente, este tesouro, essa quimera – felicidade. Quem é que batalha pela minha felicidade, a não ser eu? Por isso perco sempre: não se vence guerra alguma com um exército de um homem só. Happiness takes two. At least.

E eu quero me alistar como voluntário desta guerra que você parece estar lutando sozinha: a da tua felicidade. Aceita um aliado? Um Sancho Pança que te faça companhia nas andanças quixotecas? Alguém cuja mão você pode agarrar se tropeçar no caminho? Que te puxe fora do abismo naquela cena do precipício? Eu subo no teu barco, embarco na tua viagem, remo até cansar na direção da ilha que você apontar. Assumo as espadas e os escudos na luta contra os teus fantasmas e monstros. Ainda que eu não os veja, de tão imaginários que são. Sim, lutarei contra os moinhos de vento, fingindo que são gigantes ameaçadores, se isso te faz feliz. Se a minha companhia faz com que sumam, derrotados, e parem de cobrir o Sol que quer te esquentar...

Eu dizia de coração quando dizia: i would love to see you happy. Não é uma frasezinha sentimentalóide arrancada de algum cartão todo coloridinho e cheio de doçuras enjoativas, que se compraria na papelaria mais chumbrega de algum bairro interiorano ingênuo. É a verdade que eu sentia: iria amar te ver feliz. De uma felicidade que eu te desse. De um êxtase de que eu fosse a causa. Não faltava, e não falta, e sei que não faltará, disposição para tentar. Muita.

Lembra do que eu te disse? Você ia, a contragosto, com cara de tristeza prévia por males que ainda nem chegaram, para passar o Natal com a famíila. Conheço o drama: a solidão intolerável dos natais... Tentei o consolo de uma jura: "Não se aflija tanto com o desamor deles, sabendo que pode encontrar amor alhures - que já o possui, aliás, bastando estender a mão (o coração?) para colhê-lo". Pois era assim que eu me sentia: como um pomar cheio de frutos maduros, que ia até ti fazer a oferenda de si mesmo.

A ti, que através da névoa do ideal, eu amava como sempre faço: te achando a mulher mais magnífica que eu já conheci. Linda, divertida, estupendamente inteligente. Suficientemente angustiada para compreender a minha angústia. Que conheceu o sabor da solidão o bastante para compreender a minha. Que enoja-se com a morte tanto quanto eu me enojo com a morte. E que está num mundo sem deus como eu estou num mundo sem deus. E com quem as palavras fluíam tão bem, como só fazem entre aqueles que falam a mesma língua, e não falo da portuguesa.

Ah, você conhece tão bem os amores da literatura! Me fala dos labirintos afetivos de Madame Bovary, narra intrigas sentimentais das criaturas de Jane Austen, comenta sobre as coroas boazudas de Henry James, volta e meia evoca um personagem de Kundera, conta de antigos rolos com imprestáveis bukowskianos... Depois se auto-deprecia se chamando de “balzaca”, vê em mim um novo Werther, foge do amor como se ele fosse sombriamente kafkiano, eu garantindo que está mais pra Lewis Carroll (um alegre nonsense!). É super freudiana perto do meu byronismo, sóbria como Orwell frente à minha embriaguez quase baudelairiana... E damos ambos graças à Spinoza e Malamud, sem quem talvez nunca tivéssemos nos conhecido. Mas e a vida fora dos livros, os amores que são carne e não só letras, não te seduzem com seus cantos de sereia? E se descobríssemos, ambos parasitas de bibliotecas, devoradores de romances alheios, que a vida pode ser bem mais bela que a arte?

Vamos, escapole das engrenagens desse escuro processo em que você, como se gostasse de ser mártir, ou quisesse imitar seu ídolo K., teima em se enredar. De que crime se acusa a senhorita pra que tenha que se auto-punir desse jeito? Que culpa é esta que, para ser expiada, demanda tamanho sofrimento? Eu de pouco te acuso. Só de não levar a sério a linda imagem que vê refletida no espelho dos meus olhos. Só de ser insistentemente cega aos teus próprios encantos. Só de não acreditar-se digna da felicidade, quando a merece – e tanto.

Vai, amoreco, larga essa cruz e vamos lá fora ouvir a sinfonia dos passarinhos. Rolemos na grama, beijemos as rosas, inclusive nossas bocas. Admiremos o fato de sermos milionários de estrelas. Podemos nos deitar debaixo dos astros, de ombros colados, aguardando os asteróides. Nos assombrando com o vasto espaço. Amaldiçoando os deuses por não existirem. Podemos ser Mulder e Scully à caça de OVNIs, à espera do contato.

Se quiser, te abduzo e te levo a meu estranhíssimo planeta...

Os amantes comuns, esses clichês enojantes, sonham com romance nas gôndolas de Veneza, nos campos elíseos de Paris, nas vielas de Viena (só por terem assistido Linklater). Nós podemos dar rolês mais ousados: trepemos num cometa, nos beijemos nos anéis de Saturno, combinemos um ménage à trois com uma marciana, bem verde e bem gostosa... Aliás: troco o Primeiro Mundo inteiro por temporadas no teu quarto...

Te chamo pra embarcarmos juntos para uma terra distante de que ouvi falar, chamada Felicidade, descrita como paradisíaca, e pra onde queria te levar, no colo e de camarote. Talvez seja ela coisa de conto de fadas, talvez eu tenha sido enganado, mas que diabo! Bóra ver com nossos próprios olhos se é mesmo lorota?

Vamos, pega minha mão, e bóra dar um rolê pelo lado fofo da vida!

* * * * *
[epílogo poético]

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,
este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

Fas o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

(...)

É glória, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse,
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropsia d'alma,
da razão uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,
faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,
um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

(...)

Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Um falar por entre dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausências...

(gregório de matos)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009


“No início do amor falamos exaustivamente. Queremos nos explicar, contar o passado, mostrar os retratos de infância, as coisas mais preciosas que temos, entregar nossos pequenos tesouros. Queremos, em poucas horas, preencher com a presença do amado aqueles anos todos em que não o conhecíamos e que de repente, sem a sua presença, correm o risco de perder o sentido.

Falamos, atropelando com nossas palavras as palavras dele, para queimar etapas e chegar logo ao conhecimento recíproco que nos permitirá a paz. Mas a ânsia de chegar pode nos levar a equívocos.

(...) Na embriaguez verbal dos primeiros tempos, começamos mostrando somente o que temos de mais bonito. Oferecemos ao outro os miosótis da nossa alma. Mas logo percebemos que só isso não nos basta. Se ele os conhecer todos, ainda assim nos sentiremos desconhecidos, e permaneceremos em extremo perigo. Pois atrás dos miosótis crescem urtigas espinhentas, e é através delas que queremos ser amados. Amar as minhas belezas qualquer um pode, é fácil demais. Mas para amar os meus defeitos é necessária uma pessoa especial, aquela a quem eu também amarei.

Então, com quanto medo, começamos a oferecer os espinhos, um por um. Mostramos o primeiro, esperamos em ânsia para ver a reação. Se tudo correr bem, se o outro não sair desabalado, damos uma descansada cheia de miosótis. Nem sempre é fácil ir adiante, às vezes leva-se muito tempo até o próximo passo. Mas chega um ponto em que nos sentimos obrigados a recomeçar o desnudamento. E o processo é tanto mais doloroso porque temos certeza de que, nus, somos horrendos. Mas é horrendos que queremos ser amados.”

* * * *

“O amor do outro viabiliza o nosso amor por nós mesmos. Esta é a razão pela qual nos é difícil viver plenamente felizes se estamos conscientemente escondendo do amado os nossos defeitos. Não é o medo de que ele possa vir a nos descobrir e a nos desamar. Esse medo existe, mas é acalmado pela certeza de que podemos controlar os seus passos, nas tentativas em que tenta ampliar seu conhecimento de nós. O que nos impede a felicidade é que, como demonstra o fato de escondê-los, esses defeitos nos parecem abomináveis, suficientes para que ninguém nos ame, suficientes, sobretudo, para que não nos amemos. E sem amar a nós mesmos não há felicidade possível.

Quantas e quantas vezes, presos neste tipo de armadilha, acabamos criando uma situação-limite para obrigar o outro a nos desmascarar e, eventualmente, nos salvar. Assim, embora aparentemente felizes, armamos um sério desencontro, geramos um terremoto na relação, capaz de deixar bem à mostra aqueles defeitos que antes atuavam escondidos. Capaz, sobretudo, de obrigar o outro a nos conhecer realmente, e a estabelecer uma nova escolha que nos inclua como somos, ou nos exclua de todo.

(...) Com defeitos ou qualidades, o conhecimento é a única arma de que dispomos para enfrentar a grande viagem do amor, com esperança de sucesso. É a nossa bússola.”

* * * * *

“Entre tantos órgãos, o coração foi escolhido para simbolizar o amor. Porque bate mais forte quando amamos? Porque é o órgão essencial à vida? Talvez nem por uma coisa nem por outra. Se fosse pelas reações, o amor poderia ser simbolizado pelos joelhos, que tremem e bambeiam quando me aproximo do objeto da minha paixão; ou pelo estômago, que se fecha e dói de ansiedade amorosa. E por que não pela boca, que é palavra e beijo? Quanto a ser essencial, o coração não é mais essencial do que o fígado, nem do que os rins.

Mas é pela nobreza que ele foi escolhido. Os rins, coitados, são filtros prosaicos, fábricas de urina. O fígado, que já foi considerado o órgão da vida, é feio no aspecto, destila humores duvidosos e tem parentesco com a verde bile. E nem se pode pensar em nobreza ao falar em estômago e joelhos. Já o coração é limpo e puro, comanda o sangue que nos faz enrubescer, que intumesce o sexo, que aquece a pele. Como diria um publicitário, o coração tem representatividade.

E embora não mais necessário do que os outros, é ele que simboliza a vida, pois a última de suas batidas é o sinal oficial de que 'a casa' fechou. Associá-lo ao amor foi a maneira de dizer que sem amor não há vida.”

* * * * *

“Certamente, o amor não é fácil. E durante um certo tempo até pensamos poder viver razoavelmente sem ele. Percebemos porém que ao cortar a árvore para evitar o incômodo das folhas que caem, perdemos a sombra e os frutos, perdemos o doce farfalhar. E então estamos recomeçando a plantar.”



(marina colasanti, "e por falar de amor")