quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

:: mais uma das leituras das férias... ::




JOHN STEINBECK
"East Of Eden"

(A Leste do Éden)

(publicado originalmente em 1952.
Penguin Books Classics, 604 pgs.)

(Livro absolutamente sensacional, majestoso e riquíssimo do mestre Steinbeck! Daria para escrever um livro inteiro sobre esse livraço, que só me fez ficar ainda mais fã do autor de As Vinhas da Ira, que já comentei com muitos louvores tempos atrás. Por eqto, me contento em fazer uma espécie de brainstorming com impressões de leitura deste classicão da literatura americana, aproveitando que tudo ainda está fresco na memória, e meu envolvimento emocional com os personagens ainda está pulsando, para registrar toda essa Experiência Existencial (nada menos que isso!) de ler A Leste do Éden. Vou me esforçar pra colocar no papel o máximo possível de idéias e sentimentos e pensamentos que o livro causou em mim porque tenho um certo medo dos Super Poderes do Esquecimento - e se eu deixar para escrever sobre esse livro daqui um mês, muita coisa já terá se perdido nos cafundós escuros da minha caixa craniana. Melhor não arriscar. Não sei se isso aqui vai fazer muito sentido para quem não leu o livro ou não assistiu o filme [Vidas Amargas, de Elia Kazan e com James Dean, que é do caralho!], mas se eu conseguir empolgar alguém o bastante para que essa obra-prima vá ser lida, já foi um bom trabalho. Aí vai então a 1a parte das minhas Meditações Pessoais sobre East of Eden, tratando principalmente da Cathy Ames e do Adam Trask. Façam um grande favor a si mesmos: desliguem esse computador e corram pra biblioteca!)

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“When a child first catches adults out – when it first walks into his grave little head that adults do not have divine intelligence, that their judgments are not always wise, their thinking true, their sentences just – his world falls into panic desolation. The gods are fallen and all safety gone. And there is one sure thing about the fall of gods: they do not fall a little; they crash and shatter or sink deeply into green muck. It is a tedious job to build them up again; they never quite shine. And the child's world is never quite whole again. It is an aching kind of growing.”

A DIABÓLICA CATHY AMES

Somos apresentados a Cathy num capítulo que começa com uma meditação do narrador sobre “os monstros nascidos de pais humanos”. Só isso já demonstra bem que Cathy Ames é desde o início tratada sem perdão pelo narrador: ela é a grande vilã da história - a satânica, a maquiavélica, a manipuladora, a assassina, o bicho-ruim encarnado, Cathy Ames!

Tanta maldade concentrada numa só criatura valeu a Steinbeck a crítica de ter criado uma personagem inverossímil – porque, dizia-se, ninguém é tão ruim assim! Talvez. Às críticas Steinbeck respondeu: “se você pode acreditar em santos, que são totalmente bons, também pode acreditar em alguém que seja totalmente má.” Pois é. Discordo de quem diz que é impossível existir uma pessoa assim, até porque o realismo sóbrio de Steinbeck nunca descamba pr'um enredo de filme de terror, onde a maldade é de fato gratuita e inexplicável. Cathy Ames não deixa de ser humana mesmo quando pratica os atos mais diabólicos. Cathy Ames é uma criação literária tão perfeita, tão crível, tão bem desenhada pela pena do Steinbeck, que ouso dizer que é uma das personagens mais fascinantes da literatura universal. She's a puzzle - let's decipher her!

Cathy é desde o começo descrita como uma aberração da natureza, como se Deus tivesse errado feio ao concebê-la e construi-la (“some balance wheel was misweighted, some gear out of ratio. She was not like other people, never was from birth.” - pg. 74). O narrador sugere até que, séculos atrás, uma garota como Cathy teria sido chamada de “possuída pelo demônio” e “teria sido exorcisada para expulsar o espírito mal, e se depois de muitas tentativas isso não funcionasse, ela teria sido queimada como uma bruxa para o bem da comunidade” (pg. 75).

O atentado contra Adam, uma das cenas mais dolorosas de se ler da história da literatura por mim conhecida, coisa de apertar o coração de qualquer insensível, pode parecer algo claramente injustificável, um ato de pura maldade, uma emanação satânica da alma doentia de Cathy Ames. Mas será realmente tão simples assim? O mais cômodo é mesmo dizer que Cathy Ames já nasceu com propensão para ser demoníaca, que a maldade estava em seus genes, que ela é um daqueles seres humanos que, apesar de não nascerem cegos, mancos ou paralíticos, nascem com uma deficiência ainda mais séria: uma alma mau-formada, totalmente incapaz de qualquer tipo de bondade, de qualquer sinal de grandeza, de qualquer lampejo de amor...

Mas, depois de meditar muito sobre isso, cheguei a uma conclusão bastante simples e com a qual qualquer leitor do livro acho que concordaria: Cathy Ames certamente não se sentia amada de verdade por Adam Trask, que na verdade nada conhecia de verdade sobre ela e estava totalmente cego pela própria idealização.

Adam Trask e Cathy Ames não são um casal de enamorados – na verdade, Steinbeck descreve um clássico caso de amor platônico extremo em que o cara fabrica para si uma deusa, que passa a adorar de joelhos e olhos vendados, mas que não tem lá muito a ver com a pessoa real a quem deveria corresponder. Adam Trask não amava Cathy Ames, eis o ponto – ele estava APAIXONADO. E, como é o caso em quase toda paixão, ele adorava uma criação de seu próprio coração e não um ser humano lá fora, no mundo. Adam Trask nem desconfiava que sua adorada podia ser, por dentro, um demônio; a wolf in sheep's clothes...

A chama da paixão de Adam tinha sido acesa pela visão de uma Cathy frágil, desmantelada e indefesa, que chegou rastejando em sua vida, coberta de sangue e hematomas, ferida como um cachorro atropelado. É a visão daquela mocinha destruída e necessitada que faz com que se erga nele um ímpeto de compaixão e de bondade irresistível... Ele sente que quer ajudar aquela pobre garotinha injustamente maltratada; quer velar o sono dela, levar-lhe remédios, consolar suas dores, insuflar otimismo pelo futuro, oferecer sua mão como acompanhante na longa estrada da convalescença... Em nenhum momento ele se pergunta se Cathy tinha sido espancada quase até a morte daquele jeito por algo de muito ruim que cometera. Adam jamais chegaria a pensar que seu anjinho de asas quebradas pudesse ter merecido aquela sova monumental que tomou! Adam Trask tinha o coração puro demais para sequer conceber as maldades que Cathy Ames já tinha deixado pelo caminho. Enfeitiçou-se, tristemente, pela pessoa errada.

Adam Trask põe sua compaixão e sua paixão no liquidificador junto com altas doses de delírio e põe-se a viver uma doce vida de daydreamer... Ele confessa, num trecho crucial: “I mean to make a garden of my land. Remember my name is Adam. So far I've had no Eden...”. E ele, Adam, pensa ter achado sua Eva e se decide a reconstruir uma réplica do Éden em Salinas Valley, Califórnia. Eles teriam filhos dos mais lindos, iniciando toda uma dinastia dos Trask... Os campos verdejantes, e os moinhos, e os cursos d'água, e as montanhas no horizonte, tudo seria uma beleza de ser ver... E Cathy, sua linda Cathy, o amor de sua vida, estaria lá, angelical, auréolas brilhantes sobre a cabeça, coroando esse Paraíso Terreste que Adam pensa poder construir...

"Burned in his mind was an image of beauty and tenderness, a sweet and holy girl, precious beyond thinking, clean and loving, and that image was Cathy to her husband, and nothing Cathy did or said could warp Adam's Cathy..." (pg. 135)

O grande problema é que ele se engana, e se engana feio. Ele se apaixona mais por compaixão do que por verdadeira “admiração” pela pessoa que ela é. Ele se compadece da fraqueza dela e começa a “amar” uma garota que não conhece, que não tem a mínima idéia de quem é, e isso só porque ela apareceu toda estropiada em sua porta... Se Cathy Ames aceita a proposta de casamento, certamente não é por se sentir amada e reconhecida, pois ela obviamente sabia melhor que ninguém o quanto Adam Trask delirava em sua paixão lunática. Durante o casamento todo, Adam Trask não deixou por um instante sequer de ser um escravo de sua própria alucinação.

Claro que, sem dúvida, não há nada de reprovável ou desprezível nesse súbito enternecimento que leva Adam Trask a querer ser o mais bondoso dos homens com uma criatura desconhecida que se acha em sérios apuros – muito pelo contrário! É bonito e comovedor que ele se sensibilize e se comprometa ao invés de largar a moça à sua própria sorte – ou seja, à sua própria morte, pois ela não teria sobrevivido sem a mãozinha de Adam. E não há dúvida de que o leitor sente um imenso aperto no coração vendo tanta bondade desperdiçada e tanto carinho recebido com indiferença.

Steinbeck nos faz sentir pena da pobre vítima Adam Trask, tão cruelmente dilacerado por esse monstro de frieza e desconsideração que é Cathy Ames... Tanto que a descoberta súbita da “Maldade Incorrigível” da esposa é algo tão traumático que causa quase a morte de Adam. Depois do choque, ele passa a caminhar pelo mundo como um zumbi ou um sonâmbulo, se desinteressando de tudo. Os campos são deixados sem cultivo. Os gêmeos são praticamente abandonados. Nem sequer recebem nomes.

O maior dos ferimentos não é o causado pela bala de revólver – isso sara, cicatriza, esquece-se... - mas a chaga aberta de uma decepção monumental. Quando o véu cai e Adam Trask finalmente vê a verdadeira face da pessoa que ele pensava amar, ele vai a nocaute com o choque. Poucos episódios na literatura universal descrevem tão bem essa dialética fatal entre idealização e desencanto, paixão e decepção... Depois do baque, Adam Trak cai num longo período de patologia psíquica (“seeing the world through grey water”...) que poderia muito bem estar como um “estudo de caso” no Luto e Melancolia de Freud. Adam Trask tinha rasgado a máscara esplêndida e angelical que ele mesmo havia confeccionado para Cathy e pregado ao rosto dela, e o rosto demoníaco que ele viu foi uma punhalada tão grande em seu coração que ele nunca mais se recuperou de fato. Iria certamente morrer de desgosto e deixar os meninos Cal e Aron órfãos se não fosse a intervenção firme e salutar de Samuel Hamilton.

Conheço poucas obras de arte que retratem tão bem o quanto uma paixão avassaladora, quando acaba num súbito desencanto, deixa o coração e a mente do ex-apaixonado em frangalhos a ponto de ele cair quase morto. A insanidade da paixão é um caminho que frequentemente deságua no abismo da morte. Adam Trask quase caiu nele. Seu filho Aron, negando a teoria de que a geração mais jovem age melhor que a antiga, cairá. Mas isso é outra história...

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Mas seria Cathy essa terrível criatura que RECUSA o amor mais puro e dedicado deste mundo? Que é tão gélida que jamais pôde se comover com todos os agrados e chamegos que o bom Adam lhe ofertava? Que é tão desumana a ponto de não conseguir sentir um pingo de gratidão e reconhecimento por seu bondoso benfeitor? Aparentemente é isso mesmo: Cathy Ames tem o coração completamente congelado; não se comove com nada; nenhum amor a aquece; nenhum carinho a retira da apatia; nada a empolga, nada a eleva. Ela é feita de cinzas, de gelo, de pedra. Um iceberg em forma de mulher.

A única desculpa que Cathy tem é esse fato: Adam NÃO a amava de verdade – mesmo que ele não soubesse disso. Ela sabia. Cathy sabia o quanto ela era diferente da pessoa que Adam imaginava. E sabia que ele seria incapaz de amá-la como ela de fato era. A verdade revelada só traria Desencanto e nunca o Amor Verdadeiro. Tudo bem que ela poderia ter tido mais gentileza e cuidado no trato com o pobre apaixonado, mas Cathy era uma mulher grosseira e que não tinha o mínimo pudor de machucar. E "era preciso". Pois aquele casamento não passava de uma cadeia para ela. Imaginem o terror de sentir aquela horrível solidão cotidiana de sentir e saber que Adam não olhava para ela, não amava a ela, de verdade, mas àquela outra Cathy que só existia na fantasia dele. Imaginem o fardo que era ser sempre convidada a assumir um papel que ela não queria no Filme de Amor Perfeito e Correspondido no Éden Americano que Adam Trask queria que ela interpretasse. Imaginem o quanto Cathy se sentia quase “traída” por Adam – que amava um fantasma angelical e mal conseguia ver a pessoa real à sua frente. Ela se cansa e estoura a farsa com um disparo. Todo um mundo desmorona. And then the godess comes crashing down.... Não são só as crianças que perdem deuses, afinal.

Cathy é uma espécie de “prova” de que ser “objeto de idealização” é bem diferente de ser “objeto de amor”. (Se é que um personagem literário pode “provar” algo sobre a natureza humana! Mas Steinbeck, homem de experiência e psicólogo de primeira, não faria sua personagem agir de modo completamente inverossímil dentro dum romance tão realista – e as ações de Cathy são monstruosas, sim, mas ao mesmo tempo humanas, demasiado humanas.) A PESSOA IDEALIZADA NÃO SE SENTE AMADA. Especialmente se a pessoa notar uma discrepância muito grande entre a imagem e a realidade – o que, neste caso, é enorme: a Cathy que Adam tem dentro de si é radicalmente diferente da Cathy de verdade. Ele delirava. Para Cathy, viver com um louco não seria muito diferente. Ela não atira no homem que ama; atira no homem que tinha se enganado grotescamente sobre ela e tinha fabricado uma imagem dela completamente distorcida – distorcida “pra cima”, “pra melhor”, “para o Bem”, é verdade, mas não deixa de ser uma distorsão e uma ilusão.

Talvez seja mais fácil compreender Cathy com isso em mente: ao invés de ser amada, ela estava sendo confundida com outra; ao invés de ser aceita pelo que é, estava sendo convidada a ser o que nunca poderia ser; ao invés de se sentir lisonjeada pela paixão tão pura e doce de Adam, ela se sentia sufocada e aprisionada. Que Cathy tenha atentado contra Adam por não se sentir amada de verdade não é algo que Steinbeck diga explicitamente (mas muita coisa em “A Leste do Éden” fica “em aberto”), mas é uma conclusão plausível.

O problema é que Cathy não sai pelo mundo em busca de um novo amor, um amor melhor, um amor que fosse por ela e não por uma imagem – ela vai direto ao puteiro, onde poderá observar de camarote o espetáculo diário da degradação humana e se convencer de suas teorias de que, afinal de contas, a humanidade é mesmo canalha e que, no fundo, ninguém presta. Talvez seja isso o que faça de Cathy Ames um personagem tão diabólico: ela não crê sequer na possibilidade de alguém ser bom e justo e caridoso. Ela tem uma visão de mundo extremamente fechada e preconceituosa que pretende que os homens não passam de máquinas egoístas e taradas, escravas do instinto sexual e do interesse ególatra, e não há nada mais além disso.

“Cathy learned when she was very young that sexuality with all its attendant yearning and pains, jealousies and taboos, is the most disturbing impulse humans have. And in that day it was even more disturbing than it is now, because the subject was unmentionable and unmentioned. Everyone concealed that little hell in himself, while publicly pretending it did not exist – and when he was caught up in it he was completely helpless. Cathy learned that by manipulation and use of this one part of people she would gain and keep power over nearly everyone. It was at once a weapon and a threat. It was irresistible. And since the blind helplessness seems never to have fallen on Cathy, it is probable that she had very little of the impulse herself and indeed felt a contempt for those who did. And when you think of it in one way, she was right. (...) What freedom men and women could have, were they not constantly tricked and trapped and enslaved and tortured by their sexuality! The only drawback in that freedom is that without ir one would not be human. One would be a monster.” (77)

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O narrador só pincela os fatos da infância de Cathy, mas já sugere muitas hecatombes espirituais dentro da alma da pequenina Ames. Não há sinal algum de que Cathy se sentisse amada de verdade por seus pais, colegas e concidadãos. Ela parecia ser muito mais esperta que todos ao redor e, como diz o narrador, “she climbed into clouds where her parents could not follow” (81). E bem cedo na vida dela parece ter havido um despertar sexual um tanto precoce, justo numa época ainda puritana em que a sexualidade era tabu e “os pais, negando-a em si mesmos, ficavam horrorizados ao encontrá-la em seus filhos” (pg. 77).

Cathy, pêga no flagra com dois meninos fazendo “coisas indevidas” para uma mocinha de sua idade, acaba recebendo todo um imenso despejo de repressão social da sexualidade. “Punições eram mais selvagens naquela época do que são agora”, comenta o narrador, “e um homem realmente acreditava que o chicote era um instrumento de virtude” (79).

Cathy Ames teve sua sexualidade mutilada quando criança e viu a libido ser "demonizada" pela família e por toda a sociedade, que manda para o reformatório os jovens "taradinhos" e faz o maior fuzuê com a "vergonha" que são crianças brincando "dessas coisas" muito "antes da hora". Prova de que Cathy teve traumas de infância suficientes para nunca mais poder ter uma vida sexual natural e nunca mais poder acreditar que a sexualidade poderia ser um impulso absolutamente sadio e natural, ao invés de ficar com a idéia, nela implantada pela “Sociedade”, de que o sexo é coisa do Demônio e precisa ser radicalmente exterminado. Seu “monstruoso” assassinato incendiário só se explica pela inanição afetiva que ela sentia, pela solidão imensa de sentir que os pais não a conheciam de verdade (nem um pouco!) e pelo ódio por receber chibatadas e inaceitação ao invés de amor e reconhecimento. Isso não desculpa seus crimes; mas pelo menos pode fazer com que a vejamos sob uma luz um pouco mais misericordiosa...

Fica a impressão de que esfregaram na cara dela que a "Libido é do Mal", e depois Cathy foi lá, como uma discípula de Freud, e investigou os homens e mulheres só para descobrir que não há muita coisa além de libido motivando nossos atos. Daí para pular para a conclusão de que os homens são movidos por um instinto totalmente mau e são, portanto, todos canalhas, foi um pulo. Daí para a idéia de chefiar um puteiro só para ter provas contundentes da canalhice humana foi outro pulo - e bem sabemos que ela reúne "material" suficiente para desgraçar a reputação de uma pá de gente graúda em Salinas Valley. E da idéia de que todos são canalhas para a permissão dada a si mesma para também ser, e inclusive para se permitir o assassinato, mais um pulinho...

("Cathy had the one quality required of a great and sucessful criminal: she trusted no one, confided in no one. Her self was an island." - pg. 160)

Talvez esteja aí a “essência da monstruosidade” de Cathy Ames: no fato de que ela parece não se importar nada com o amor humano. Ela dá a impressão de ser uma daquelas pessoas que diz com toda a convicção que o amor não existe e que tudo, no fundo, é decorrência da libido e do instinto sexual. Cathy cospe com desprezo sobre o Amor. Ela machuca de propósito todas as pessoas que gostam dela e procuram transmitir a ela algo que uma pessoa normal consideraria Afeto Verdadeiro – como Faye e Adam. E ela machuca sempre usando o mesmo instrumento de tortura: a verdade subitamente revelada causando o terrível terremoto do Desencanto. É como se ela punisse os outros por não conhecerem-na direito. Mas ela usa esse engano a seu favor por quanto tempo lhe convêm, assumindo o papel que o idealizador lhe fornece, colocando gás na ilusão, só para que o estrondo do estouro da bexiga seja maior quando ela vier com o alfinete em mãos para o novo ataque sádico...

Se Steinbeck está certo ao sugerir (pg. 414) que todo ser humano, lá no fundo, deseja ser bom e deseja ser amado, então o que faz Cathy Ames ser “desumana” e “monstruosa” é a aparente indiferença completa que ela demonstra por amar e ser amada. Como se achasse uma besteira se preocupar com isso. Como se fosse uma pessoa daquelas que é capaz de dizer com toda a convicção: “Não estou nem aí se as pessoas me amam ou não... tô me lixando!” A Leste do Éden nos deixa com a impressão de que a pessoa mais horrível, mais diabólica e mais egoísta de todas é aquela que vira as costas para o amor e se entrega àquela mistura amarga de cinismo e niilismo que transforma a vida numa longa temporada no inferno.


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CAIM E ABEL REVISITED

East Of Eden é um livro ricamente alegórico, que lança uma nova luz sobre certas parábolas bíblicas (se bem que adaptadas para o EUA rural do começo do século 20), especialmente a do Pecado Original e a saga de Caim e Abel. São “duas histórias que nos assombraram e nos seguiram desde o início”, carregadas como “rabos invisíveis” pelos homens de todos os tempos – é o que sugere Samuel Hamilton. Daria pra dizer, forçando um pouco a barra, que Adam interpreta um Adão que é expulso do Éden de sua paixão platônica pelos atos diabólicos de sua Eva Cathy Ames; e que os dois filhos do casal, Cal e Aron, vão representar de novo o drama de rivalidade e ciúme de Caim e Abel (“such a short story to have made so deep a wound!” - comenta um personagem).

Na contra-capa da edição da Penguin Books, está escrito que Steinbeck explorou em East Of Eden alguns de seus temas mais duradouros, entre eles “the murderous consequences of love's absence”. Achei a expressão perfeita. Pois, pensando bem, o que é o assassinato de Abel exatamente isso, uma consequência sanguinária da ausência de amor sentida por Caim? E não deixa de ser interessante que um “conto” como esses seja uma das histórias mais conhecidas da história da humanidade, ainda viva depois de milênios, o que dá muito o que pensar. Samuel Hamilton filosofa sobre isso num trecho crucial:

“I think this [Cain and Abel] is the best-known story in the world because it is everybody's story. I think it is the symbol story of the human soul. (...) The greatest terror a child can have is that he is not loved, and rejection is the hell he fears. I think everyone in the world to a large or small extent has felt rejection. And with rejection comes anger, and with anger some kind of crime in revenge for the rejection, and with the crime guilt – and there is the story of mankind. I think that if rejection could be amputated, the human would not be what he is. Maybe there would be fewer crazy people. I am sure in myself there would not be many jails. It is all there – the start, the beggining. One child, refused the love he craves, kicks the cat and hides his secret guilt; and another steals so that money will make him loved; and a third conquers the world – and always the guilt and revenge and more guilt. The human is the only guilty animal.” (pg. 271)

Esse me parece um dos parágrafos mais ricos da obra-inteira e uma das chaves para entendê-la. O anseio por amor, quando não é satisfeito, quando a pessoa se sente rejeitada, acaba se transformando em vingança, mágoa, ressentimento e, frequentemente, violência. É uma história que se repete milhões de vezes: a criança vê seus pais dando mais atenção e carinho para seus irmãos e fica enlouquecida de ciúme; quer destruir o irmãozinho, cortá-lo em pedaços, rezar para que ele suma do Universo e nunca volte... Sentimento que é reprimido, claro, e que gera culpa. E a culpa gera a angústia e, às vezes, algum desejo de “reparação”. Nada melhor para que alguém entre no caminho da filantropia do que uma consciência pesada... É o que diz Lee numa frase genial: "There's no springboard to philanthropy like a bad conscience." (pg. 379)

É uma perspectiva extremamente realista e trágica a que Steinbeck expõe aqui. Porque costumamos pensar no Amor como um sentimento obviamente positivo, nobre e edificante, como algo indubitavelmente do Lado do Bem, mas raramente notamos o quanto o anseio por amor (que talvez seja universal e presente na natureza humana), pode trazer as consequências mais sangrentas quando é insatisfeito. Quantas das violências, dos crimes passionais, das vinganças cruéis, não foram praticadas por força dessa ausência do amor onde ele era esperado e não apareceu? É o caso de Caim sendo rejeitado por Deus e ficando louco de ciúme contra o seu irmão Abel, injustamente preferido! Caim mata não porque ele é “extremamente maldoso” - ele mata como uma revolta pelo amor desejado e não recebido. História da humanidade.

Tudo bem que, pensando bem, a revolta de Caim estaria muito melhor dirigida se tivesse como alvo o próprio Deus, que, como o próprio Adam Trask diz, agiu de um modo extremamente arbitrário e injusto aceitando Abel e rejeitando Caim – é mais um daqueles momentos de cúmulo de sadismo do velho Jeová. Mas as criaturas não costumam ter coragem de questionar o Criador. É o “concorrente ao amor do Pai” quem paga o preço.

O que é o crime de Caim senão a revolta contra a injustiça do Pai na distribuição dos afetos? Que é o crime de Caim senão a revolta do mau-amado contra o bem-amado? Claro que o mais simples é dizer que Caim mata por ciúme, por inveja, por egoísmo, sendo irremediavelemente culpado e sujo e merecedor das punições que caem sobre ele. Mas é uma perspectiva muito radical. O tom condenatório se amaina se pensarmos que foi a carência afetiva que o levou para o “caminho do Mal”, que foi a incompreensível arbitrariedade no comportamento do Pai que gerou a “revolta” - afinal, por que o presente de Abel é acolhido com alegria e gratidão e o presente de Caim é desprezado? E como não se revoltar contra comportamento tão desigual? Tudo que Caim queria era ser tão amado e reconhecido quanto seu irmão era pelo Pai. É a fome de amor não satisfeita o que dana Caim. Abel, o filho bem-amado, falece. Caim, o assassino enciumado, sobrevive. Dele descende toda a humanidade. Somos todos filhos de Caim. A idéia parece ser que a humanidade repete inumeráveis vezes a saga de Caim e Abel – única razão para que, depois de dois mil anos, ela não tenha morrido ou sido esquecida.

Do anseio insatisfeito por amor nasce o ciúme, a inveja, a violência, a depressão e tantos outros males que assolam tantos personagens de East Of Eden. Isso fica claro nas duas histórias envolvendo irmãos que Steinbeck narra – Charles e Adam Trask, Caleb e Aron. O anseio por amor , quando insatisfeito, é o que dana Charles Trask, que sai atrás de de seu irmão Adam Trask com uma machadinha e impulsos assassinos quando descobre que o vira-latas que seu mano deu de presente para o velho agradou muito mais do que a faca que ele, Charles, presenteou ao ancião Cyrus Trask.

Na próxima geração, a maldição se repete. Caleb Trask, endoidecido de ciúme pelo irmãozinho mimado que chega para visitar o pai e é ultra bem-recebido, roubando o dia, comete sua “maldade suprema” de destruir de um só golpe a mais doce ilusão do pequeno Aron: a angelidade de sua própria mãe. Provavelmente Cal não sabia disso, mas o golpe que deu no irmão foi quase fatal. Quando Aron se filia ao exército, parece ao mesmo tempo um ato suicida (não vale mais a pena viver depois que a imagem da Mãe Angelical é destroçada em mil pedaços) e a expressão de uma vontade homicida louca (já que o mundo é essa porcaria, vou lá meter bala em todo mundo...).

East Of Eden está povoado com exemplos das tais de “murderous consequences of love's absence”. A ausência de amor se transformando em violência e sofrimento está por todo lado. Está no atentado que Charles Trask perpetra contra Adam. Ela está na angústia extrema que assola Cal quando ele percebe que o presente que ela tanto trabalhou para dar ao pai (toda a grana que o velho tinha perdido com o fracasso de seu empreendimento com legumes congelados!), é recusado e desprezado. Ela está na desolação de Aron ao descobrir que sua mãe, Cathy Ames, é um ser humano horrendo e absolutamente incapaz de amar. Ela está também na melancolia dos apaixonados desiludidos, que esperaram ser felizes ao lado de suas amadas (Adam ao lado de Cathy Ames, Aron ao lado de Abra), mas que descobrem que não são amados de volta pelas deusas que idolatram.

Em todo lado, a mesma história: um anseio por amor, mesclado com o medo da rejeição (“rejection is the hell he fears...”), acabando por gerar rivalidade, ciúme e pensamentos/atos que enchem o ser humano de culpa (“what burden of guilt man have!”). Steinbeck, que não é muito fã de finais felizes, não nos concede muitas esperanças ao fim de East of Eden – parece que somos todos filhos de Caim e iremos repetir a mesma saga de geração em geração. "Timshel!" é uma esperança, uma promessa de "superação do pecado", mas nada que nos garanta que um dia a humanidade poderá viver em paz - sempre haverá peitos esvaziados demais para que a guerra e a violência não se alastrem mundo afora.

Um coração que ronca de fome é uma fera perigosa.

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Apesar disso, Steinbeck, longe de ser um misantropo ou um pessimista se abandonando ao derrotismo, demonstra em vários momentos ser um autor cheio de compreensão e de misericórdia pela humanidade. O trecho que segue é boa prova disso e uma boa pedida para finalizar esse texto com um certo brilho no fim do túnel:

"I am certain that underneath their topmost layers of frailty men want to be good and want to be loved. Indeed, most of their vices are attempted short cuts to love. When a man comes to die, no matter what his talents and influence and genius, if he dies unloved his life must be a failure to him and his dying a cold horror. It seems to me that if you or I must choose between two courses of thought or action, we should remember our dying and try so to live that our death brings no pleasure to the world." (pg. 414)