"Um Estranho no Ninho"
(One Flew Over The Cuckoo's Nest, originalmente publicado em 1962, Ed. Best Bolso, 418 páginas, 18 reais, tradução de Ana Lúcia Deiró.)
Poucos sujeitos marcaram tanto a contracultura dos anos 60 quanto Ken Kesey (1935-2001). O cara, com seu jeitão de lutador de luta livre ou de vaqueiro sulista fanfarrão, conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo um autor americano de renome, um polemista de plantão e um ícone da juventude beatnik e hippie. A lista de suas proezas é imensa - conto só as principais: junto com Timothy Leary, Ken Kesey foi um dos “gurus do LSD” que, a partir do começo da década de 1960, ajudou a espalhar a Epidemia do Ácido que iria varrer o mundo a partir de 1965; junto com sua gangue de Merry Pranksters, viajou num ônibus doidão por 6 meses, atravessando a América de Costa a Costa como se vivesse dentro dum road movie psicodélico; virou personagem principal de uma histórica gonzo reportagem de 500 páginas escrita por Tom Wolfe (“O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”); quase foi eleito o Messias de uma Nova Religião Juvenil; teve problemas com as autoridades e deu um tempo brincando de fora-da-lei foragido no México, mas depois acabou indo em cana nos EUA por posse de maconha (e na cadeira escreveu Diários do Cárcere). Mas sua maior contribuição à cultura americana foi mesmo seu primeiro romance, Um Estranho no Ninho, livro elogiadíssimo pela crítica e adaptado para o cinema no clássico de Milos Forman que dispensa apresentações.
McMurphy é o cara que vai pôr às claras para todos os internos do Hospício toda a hipocrisia envolvida nos procedimentos diários daquele lugar, desmascarando uma falsa democracia, acusando a existência de um Estado Policial e conclamando todos a um Justíssimo Levante de Escravos. As sessões de discussão em grupo passam a ser tidas como “festas de bicadas” e a Chefona uma “capadora de colhões” - “que tenta fazer com que você fique fraco para que possa obrigá-lo a entrar na linha, a seguir as regras deles, a viver como eles querem que você viva” (89). Num diálogo magistral, que infelizmente foi omitido no filme, os pacientes discutem com lucidez ímpar sua própria situação existencial comparando-se com coelhos que se assustam com os lobos. Harding, por exemplo, comenta: “O ritual de nossa existência está baseado no fato de os fortes ficarem mais fortes por devorarem os mais fracos. (...) Os coelhos aceitam seu papel no ritual e reconhecem o lobo como o forte. Para se defender, o coelho torna-se esperto, assustado, arredio e cava buracos e se esconde quando o lobo está por perto. E ele resiste, vai continuando. Conhece seu lugar. É absolutamente certo que ele não irá desafiar o lobo para um combate” (94). McMurphy é o valentão que vai tentar convencer esses fracotes homens-coelho que eles devem se erguer e enfrentar o lobo.
Fica claro, por exemplo, que o filme não soube dar a devida ênfase à imensa transformação positiva que a chegada de McMurphy gera naquele ninho de loucos. Durante o filme inteiro fica-se com a impressão de que aquelas pessoas naquela zona de manicômio já são todas um tanto insubmissas, desobedientes e intratáveis e que McMurphy, apesar de mentalmente são, está “entre iguais”. Já a impressão que deixa o livro de Kesey é totalmente diferente: McMurphy chega num hospital psiquiátrico que é todo certinho, asseado e comportado, lotado de pacientes submissos e trêmulos, que não são sequer capazes de dar risada ou cantar. Todos ali percebem que o forasteiro ele é diferente de todos ao redor, superior a todos ao redor, muito mais livre, espontâneo e irreverente do que todos, e que, aos poucos, vai exercer uma influência extremamente benigna sobre os coelhinhos obedientes que ali viviam através de suas seminais aulas de Desacato à Autoridade e Questionamento Vigoroso das Regras Vigentes.
Quando a gente lê o livro de Kesey, fica com o sentimento de que estamos frente a uma luta colossal entre o Bem e o Mal – e que aquele valentão irlandês, o desordeiro incorrigível McMurphy, na verdade é o representante do Bem e do Certo, enquanto que a Chefona seria a carrasca a quem a sociedade deu o poder de “programar” certos indivíduos que saíram dos padrões adequados. “A enfermaria é uma fábrica da Liga”, escreve Kesey. “Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora – todo reparado e bom, como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem ajustado, um crédito para todo o esquema e uma beleza para ser observado” (62).
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O VILÃO MENOR E O VILÃO MAIOR
ANTI-PSIQUIATRIA
O livro de Kesey também era um contundente ataque às instituições psiquiátricas e seus métodos altamente discutíveis de tratamento daqueles diagnosticados como doentes. Como diz Joel Birman no prefácio,
"...interrogar-se efetivamente sobre o que seria a loucura evidenciava o desejo de afirmação da liberdade, numa atmosfera sufocante de controle social generalizado. Neste sentido, a contestação anti-psiquiátrica se conjugou inicialmente com o movimento beatnik e posteriormente com o movimento hippie. O que estava em pauta era a transvalorização do mundo, com vista a construir a contracultura como um outro estilo de existência. Com efeito, se o uso costumeiro de drogas psicodélicas era um antídoto contra os eletrochoques e psicofármacos, não se pode esquecer que uma revolução dos costumes estava em marcha, que teve nas gigantescas manifestações contra a Guerra do Vietnã, na rebelião estudantil de maio de 1968 e no feminismo os seus signos mais ostensivos." (11)
No começo dos anos 60, havia todo um movimento "anti-psiquiátrico" que questionava se era ético e aceitável submeter os pacientes a procedimentos como a Terapia de Choque e a Lobotomia, que poderiam até gerar seres humanos domesticados e pacíficos e pouco perigosos (“mais um robô para a Liga”, diria Kesey) , mas que aniquilavam a individualidade e a vontade própria de um modo que muitos consideravam grotesco. Ken Kesey não poupa sua cólera, chamando de “pútrida sala assassina de cérebro” (pg. 30) a Sala do shock treatment - “um engenho que faz o trabalho dos comprimidos para dormir, da cadeira elétrica e da roda de tortura” (pg. 101).
“Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de cruz, com uma coroa de fusos elétricos em lugar de espinhos. Você é ligado de cada lado da cabeça com fios. Zap! A eletricidade atravessa o cérebro e administram-lhe conjuntamente a terapia e uma punição por seu comportamento hostil de 'Vá para o inferno', além de ser posto fora das vistas de todos de 6 horas a 3 dias... Mesmo quando você recobra a consciência, fica em estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar com coerência. Não consegue lembrar-se das coisas. Certa repetição desses tratamentos poderia fazer um homem ficar igualzinho ao Sr. Ellis, um idiota sonâmbulo, molhador de calças aos 35 anos...” (101)
Quando McMurphy e o Chefe são levados para terem os cérebros fritos pelo eletrochoque, há uma nova descrição irônica do procedimento: “Aquelas almas afortunadas lá dentro estão recebendo uma viagem à Lua de graça. Não, pensando bem, não é completamente gratuita. Você paga pelo serviço com células cerebrais em vez de dinheiro, e todo mundo tem simplesmente bilhões de células cerebrais disponíveis. Você não sentirá falta de algumas delas.” (244)
Afinal de contas, o livro, além de um manifesto anti-psiquiátrico, pode ser considerado uma Tragédia Moderna que retrata com crueza e pessimismo o modo como um homem tem seu cérebro triturado e reduzido a pó pelos mecanismos do Poder – ou seja, da Liga. McMurphy, como sabemos, acaba recebendo as mais severas punições – eletrochoque e lobotomia! - por seu comportamento teimosamente desobediente e acaba, por fim, por virar também uma ovelhinha comportada e condicionada, quase um vegetal. É isso que explica o desfecho um tanto-misterioso da obra, quando o Chefe Índio se decide a um estranho sacrifício do seu “ídolo”. O que no filme não ficava muito bem explicado, no livro é límpido: “eu só tinha uma certeza: não iria deixar uma coisa daquelas ficar deitada ali na enfermaria com seu nome pregado nela por 20 ou 30 anos, para que a Chefona pudesse utilizá-la como exemplo do que pode acontecer se você contestar o sistema.” (414)
McMurphy, que poderia ter virado nada mais que um valentão e arruaceiro que chega pra bagunçar o coreto e depois paga um preço alto demais por sua insubmissão, acaba virando, depois de sacrificado, uma espécie de Mito. Uma Lenda. Um Símbolo. Algo construído por Kesey para servir como um Exemplo de Conduta Irreverente e Combativa que merece ser imitado. Talvez seja por isso que o autor o condene a um destino de Mártir, feito um Jesus Cristo dos Hospícios em plena Contracultura dos anos 60.
"Um Estranho no Ninho", sugere Joel Birman, "restitui esse cenário mágico de um mundo em franca subversão contra os guardiões da ordem e das seduções do consumo, fazendo palpitar corações e mentes de que o sonho prometéico ainda continua pulsante" (11). No fim-das-contas, o mundo inteiro é um imenso Hospício e a Liga expande suas garras pra todos os lados querendo aniquilar as diferenças, homogeneizar comportamentos e instalar programações (de Consumo e de Obediência) em nossas mentes de ovelhinhas submissas. E é na selva aqui de fora que McMurphy é um exemplo de como tentar escapar das garras da Liga Diabólica – ou um exemplo de como morrer tentando.
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