terça-feira, 25 de março de 2008

:: time keeps creepin' round the neighborhood ::


I am waitin' 'til I don't know when,
cause I'm sure it's gonna happen then.
Time keeps creepin' through the neighborhood,
killing old folks, wakin' up babies
just like we knew it would.

All the neighbors are startin' up a fire,
burning all the old folks, the witches and the liars.
My eyes are covered by the hands of my unborn kids,
but my heart keeps watchin'
through the skin of my eyelids.


ARCADE FIRE, Neighborhood #4


gosto muito daquela anedota do poeta e da empregadinha doméstica, que nem me lembro mais onde ouvi ou quem me contou: ele, o poeta, andando pelas ruas, todo perdido em devaneios, olhando para as estrelas e inventando nomes para as constelações, mirando as nuvens e imaginando com quê elas se parecem, entretendo-se com suas namoradas imaginárias e com os versos que pensa escrever para conquistar aquela Dulcinéia del Toboso fantasmagórica que nunca vai ter, acaba frequentemente tropeçando nas pedras do caminho, dando de nariz com o poste ou sendo atropelado numa rua que atravessa sem cuidado, enquanto a empregadinha doméstica, sempre com os pés no chão e o olhar atentíssimo para os mínimos detalhes da vida cotidiana, nunca deixa o leite ferver e derramar, nunca queima o bolo no forno, não fratura osso algum por excesso de divagações etéreas e raramente se acidenta e se fere do modo como se estrepam os avoados e os sonhadores...

e esse é o jeito que eu tenho para me desculpar por ser tão desajeitado pra tudo que diz respeito a essa tal de vida prática: é que sou poeta e não empregadinha doméstica! Não é que me ache melhor - pois até gostaria de ter mais talento para essas coisas de mulherzinha, de general de quartel e de madre de convento (hehe!), mas, como dizia Rimbaud, "quanto à felicidade estabelecida, não, não posso..." E a bagunça que acabo fazendo por fora é mero efeito da bagunça que eu sou por dentro.

Não sei cozinhar muita coisa além de Miojo e congelados Sadia e meu arroz sai sempre ou queimado ou "papinha" (mas fervo uma água ma-ra-vi-lho-sa-men-te bem, meu!); não sei lavar roupa direito nem no tanque nem na máquina e a higiene nos meus dormitórios republicanos é sempre mal-feita (não a ponto de eu viver num chiqueiro, mas o suficiente para eu ser considerado o maior desleixado por qualquer mamãe amante da boa ordenação); meu quarto sempre recai na anarquia completa, por mais que eu faça, bem de vez em quando, minhas firmes resoluções de começar a ser mais ordeiro...; tenho só dois pares de tênis e sempre uso meus All-Star até o osso, achando que imundície é charme e que buracos dão mó "grau" estético pro bagulho; nunca compro roupas de grife e morreria de vergonha de andar num carro importado; não sei guardar documentos e certificados ditos importantes, que acabam sendo tacados por aí como todos os outros papéis da minha vida, eu que não sou nada carinhoso com papéis que não sejam o meu diário e as cartas que recebi; não costumo trancar direito os lugares quando eu saio, a ponto de ter saído pra viajar pra São Luís, no Carnaval, deixando meu quarto aberto em plena Cicerolândia da fase mais trash (pois trash foram todas)... Enfim, paro por aqui, pra não ter que escrever um parágrafo do tamanho do Ulisses só com exemplos de como meu cuidado com os bens materiais é mínimo...

e semana passada me roubaram a carteira (que aliás tava toda estropiada) e o celular (que aliás era dos de pobre, sem câmera, sem mp3, sem nada) lá no conjunto aquático da USP, onde fui lutar contra minha tendência ao sedentarismo com um mergulho e uma meia dúzia de chegadinhas de crawl que já me deixaram sem fôlego e me sentindo como um velhote tuberculoso. foi, sei lá, a quarta ou quinta vez que eu sou assaltado - e foi a vez mais light, pois não envolveu revólveres e ameaça de homicídio (como aconteceu quando eu tava na sétima série, indo pra escola com meu pai, e fomos abordados por dois malucos com trabucos na porta de casa) nem trombadões com o dobro do meu tamanho ameaçando me "furar" com um punhal (como aconteceu quando eu, ainda quase criança, fui surrupiado na volta da Igreja e Deus não quis nem saber de me salvar, o filho da puta...). e isso traz várias memórias ruins de volta, flashbacks de situações traumáticas: aquela sensação de impotência, de revolta inútil, de fraqueza frente a poderes que a gente não controla - aquela sensação de que há uma guerra latente entre os homens e que os meus bens, e a minha vida, pode ser perdida a qualquer momento se eu tiver o azar de colidir com quem não deveria... Uma angústia como de quem é sugado pela areia movediça - não! Melhor: de quem vai pisando em pedras sem saber se a próxima pedra é firme ou se vai se afundar na areia movediça.

Foi-se tudo no furto: rg, cpf, cnh, cartão do banco, carteirinha usp, uns 10 mangos, uns 20 tíquetes de bandeijão, todos os contatos telefônicos que eu tinha e todos os torpedos guardados no baú pouco confiável do chip - alguns deles com valor sentimental de souvenirs. Foi vacilo meu, claro, largar essas coisas dentro do armário do vestiário, sem cadeado. Fui otimista demais: não vai acontecer nada... As pessoas no fundo são boas e puras... Dentro dum câmpus universitário, esse templo do conhecimento e da sabedoria, não tem bandido não... Olha agora a minha cara de besta. Olha agora o tonto, o negligente, o vacilão, tendo que fazer altos lances: ir na delegacia fazer B.O., ir no Poupa Tempo tirar todos os documentos de novo, ir correndo pra casa da família por não ter um centavo no bolso pra jantar ou pra comprar um pãozinho sequer - nem a possibilidade de sacar nada no caixa eletrônico... Fuck!

ando mesmo distraído pra dedéu... outro dia fiquei desesperado, pensando que tinha perdido a chave do meu carro, e depois descobri a bichinha no contato, dentro do carro que esqueci com a porta destrancada, e que só não me roubaram porque... porque na USP não tem bandido! é o meu estado de espírito de ultimamente: tô tão afundado em outras preocupações e ansiedades e desejos e angústias, desde dilemas sentimentais até a tentativa de sacar o que é o Deus do Spinoza, sem falar na Crise Existencial Perene que é o Pano de Fundo de tudo que eu faço, sinto, penso e digo, que consigo ver cada vez menos valor em coisas. Coisas são só coisas. Que eu perderia se todas as minhas posses estivessem dentro dum apartamento que pega fogo? Meu próprio Tyler Durden me diz que não perderia muito: ainda teria a mim mesmo, e ainda teria um coração que bate, e ainda teria o universo como mansão, e ainda teria pessoas a amar, e ainda teria meus amigos, e ainda teria uma vida para viver... Depois de Into the Wild, depois do Clube da Luta, filmes queridos, e depois das minhas andanças pelos livros dos sábios orientais, fiquei dominado por essa extrema despreocupação pela minha vida material: nem corro atrás de emprego, nem jogo na loteria, nem sonho em fazer fortuna e tô pouco me lixando pros meus documentos, que não dizem nada sobre o que eu sou de verdade, e pros meus pedaços de papel convencionalmente tidos como valiosos, que (como Macca já dizia) can't buy me loooooveeeeee... Só desejo um pouco a glória (e ultimamente tenho posto muito tempo na tentativa de virar um rock-star com uma recém montada bandinha de punk rock, que promete começar a ensaiar com seus dois membros femininos em breve!), mas me digo que essa glória que eu fico desejando não é um desejo peçonhento e mundano: é mais um fluxo de admiração que sai das pessoas e vem pra ti, como jatos de amor jorrando de várias fontes... Visão bestalhona, eu sei, mas é fato que sonho e sonho de fato.

Gosto da apologia à vagabundície que faz o poeta...:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

(Álvares de Azevedo)

Mas as pessoas querem me colocar na linha, no caminho certo, na postura mais adequada para o sucesso mundano, realizando os fatos para ser bem-visto e bem-integrado à sociedade, e eu... eu acho que tenho uma alma muito insubmissa. Me deram o conselho mais excêntrico esses dias: "Você tem que ser mais maldoso!" A que ponto chegamos, para que isso tenha sido, sem sombra de dúvida, um conselho bondoso, isto é, algo que a pessoa disse inteiramente para o meu bem. Porque nesse mundo a gente não pode confiar em ninguém - qualquer um, por mais simpático e bacana que seja, pode ser um assassino disfarçado, um estuprador enrustido, um sacana hipócrita, um lobo vestido de carneirinho... E na cidade grande paranóia não é patologia, é só uma recomendadíssima técnica de sobrevivência... É preciso se preparar sempre para o pior e esperar das pessoas sempre o pior! Carreguemos todos nossos escudos! E os sprays de pimenta no bolso! E os revólveres carregados no coldre!

E eu ouço isso, esses conselhos tão sábios, e no meu coração eu digo não. Não! Não quero viver resguardando meus benzinhos materiais estúpidos, sempre com o cu na mão porque tá cheio de assaltante e bandido por aí... Não quero carregar comigo uma bolha invisível mantendo todo ser humano à distância, só permitindo que ele se aproxime depois de checar documentos, proveniência e intenções na alfândega das minhas fronteiras... Não quero morar em condomínio fechado, com dúzias de câmeras e guardas ajudando a tornar confortável a jaulinha, entesourando detrás de cadeados o meu ouro e as minhas jóias... Se for pra viver assim, prefiro não ter ouro, não ter jóias, não ter nada. Não quero viver me protegendo de nada.

E esperar das pessoas sempre o pior é um dos piores conselhos que já recebi. Lembro do Plainview do Daniel Day Lewis, no Sangue Negro, esse novo clássico do cinema americano, um dos melhores filmes desta década, nova obra-prima saída das mãos de mestre do Paul Thomas Anderson, e me parece que uma das coisas que faz com que esse personagem seja tão asqueroso, um vilão tão devastador, seja justamente isso: que ele só enxerga o lado ruim dos outros. Ele vê egoísmo e hipocrisia por trás de todos os atos e não confia em ninguém pois sabe que ninguém presta. E essa misantropia é horrorosa. E é misantropia pura o que nos recomendam para sobreviver nessa selva de pedra da metrópole em ebulição social. E misantropia eu dispenso. Eu acho é que nenhuma pessoa vai ser boa se nós não dermos a ela a possibilidade de ser, se não acreditarmos que ela pode, se não deixarmos aberta essa via... O maior dos filhos-da-puta é aquele que acha que todo mundo é filho-da-puta, que ninguém presta, que a natureza humana é má e fim de papo. É o tipo de pessoa com quem eu menos quero estar.

Quero ser como aquelas casas de interior que ficam de portas e janelas abertas, o dia inteiro, a madrugada inteira, não só pois não há nada a roubar, mas porque todos são bem-vindos e a hospitalidade é sempre vigente... Afinal de contas, nesse mundo nada é de verdade de ninguém e mesmo a vida não é nossa: foi só um empréstimo que a Natureza nos deu, permitindo seu usufruto só por um tempo, e que logo precisaremos devolver. A vida é uma caneta que um colega emprestou pra gente rabiscar um desenho e depois devolver a caneta, e depois entregar o desenho, só um rascunho, só uma primeira tentativa... evidentemente tosco, bizarramente mal-feito, pois vive-se sempre pela primeira e pela última vez, mas um desenho que tem, sim, a possibilidade de ser belo. A vida a gente nunca vai passar a limpo...
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(Comecei a divagar demais e nem sei se alguém tá acompanhando a viagem na garupa, se alguém teve paciência pra ler esse treco inteiro, mas tudo bem... já desencanei bastante desse blog e nem espero mais grande coisa dele em termos de comentários ou feedback (tava tão desanimado com ele que pensei até em abandonar de vez, ou tomar um tempo longe dele... mudei aquele verde que já tava dando náuseas por esse novo visú, tentei colocar textos de mestres muito melhores do que eu pra ver se eu curtia mais os conteúdos que eu estava colocando na bandeja e servindo a vocês, público leitor, mas sei lá... talvez eu fique um tempo a mais sem dar as caras por aqui... sei lá!) - se bem que isso acaba sempre servindo como um espaço de desabafo, ele é útil ao menos pra isso: the relief of disclosure, pra usar uma expressão do Quando Nietzsche Chorou. Tinha mais um monte de novidades pra contar (sobre a minha mudança de república, sobre as aventuras com a nova banda, sobre o meu projeto de iniciação científica, sobre as aulas na USP, sobre amor e restos humanos...), mas essa egotrip já tá longa demais. Quem sabe um dia eu volto. Quem sabe.)

domingo, 16 de março de 2008

:: one i know by heart ::



"Motivo"

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

(Cecília Meirelles)

(Pode me pedir qu'eu recito, inteirinho, sem cola.)

quinta-feira, 13 de março de 2008

:: tout donné ::


ESPALHAI, IRMÃOS, VOSSOS TESOUROS APODRESCENTES!

"La mort dont nous ne savons rien posera sa main sur notre épaule dans le secret d'une chambre ou elle nous giflera dans la lumière du monde - c'est selon. Le mieux que nous puissions faire en attendant ce jour est de lui rendre sa tâche légère: qu'elle n'ait presque rien à prendre parce que nous aurions déjà presque tout donné." CHRISTIAN BOBIN, L'Inesperée

Ouro, ouro da alma puro, do melhor quilate, foi o que achei dentro dum livrinho do Bobin (paixão à primeira lida, ao primeiro parágrafo... vai escrever lindamente assim no raio que o parta!). Uma das visões mais lindas sobre a morte, que é também uma visão das mais lindas sobre a vida, é o que se encontra nessas cinco linhazinhas perfeitas. Diz o Bobin que devemos ser camaradas com a morte e tornar a tarefa da Grande Ceifadora algo fácil de realizar (rendre sa tâche lègere...). Fazer com que a morte, ao chegar, não tenha mais muito pra levar. Pois tudo está doado. Pois tudo está lá fora.

A morte dá medo por causa daquela sensação de ter juntado um monte de coisa legal dentro dum casarão que no fim da história pega fogo, deixando a gente, que pega fogo junto e vira cinza, com aquela maldita angústia de pensar: “foi tudo em vão! Tudo que está dentro de mim vai ser fulminado, dizimado, nadificado! Todas as memórias, todos os sentimentos, todos os neurônios, todas as células... de mim num vai sobrar muito além dum esqueleto dentro dum caixão, nada mais!” Mas isso porque deixamos tudo que temos num só lugar – e nesse lugarzinho mal-cheiroso e peçonhento que é nosso euzinho, essa desgraça. Há lugares melhores para nos guardarmos. Nos outros, por exemplo. No mundo. Na primavera.

Pois guardamos nossas jóias em nossos cofres, e daí vem o medo do bandido, da perda, da catástrofe... Não haveria medo se todas as jóias estivessem dadas, distribuídas, entregues a outras mãos e outros corações. Nossa avareza de nós mesmos é o obstáculo. Trancamos em nosso interior nossos bens, o maior deles o amor, sem notar que este cofre tem uma bomba relógio a ele acoplada que cedo ou tarde irá explodir. “It's way to late to be this locked inside ourselves...”

Cada um de nós é um baú de tesouros apodrescentes marcado para explodir. A bomba relógio foi ativada com o 1º berro que demos fora do útero. E não há um visor que nos diga quantos anos, meses ou minutos faltam até a explosão. É bomba indesarmável e não há herói, hollywoodiano ou grego, do naipe de Hércules ou de Rambo, que dê jeito de parar o tic tic tic. A vida é um thriller mais excitante e cheio de suspense do que qualquer coisa que o cinema possa criar. Pois o personagem principal pode morrer a qualquer momento e o final feliz nunca é garantido, apesar de ser possível.

Guardar é tolice pois guardar é perder.

“Guardar para usar depois”? Mas o que garante que vai haver um depois? A chegada do amanhã nunca é garantida. Apesar de estarmos tão acostumados a, todas as manhãs, vermos um amanhã novo a desembarcar, fresco e usável, no nosso porto... Vai haver um dia, primeiro e último, em que o amanhã faltará ao encontro. Será o último dos hojes e o único dos hojes que não chegará a seu fim.

“whatever i got
i've got no reason to guard
what should i do but
SPEND MY BEST?”

(fiona apple)

* * * * * *

que a morte não tenha nada para me roubar
pois já me dei por inteiro.
Estou inteirinho lá fora,
o espírito esparramado pelo mundo
o coração feito em mil estilhaços de algodão
e soprado pelo vento por todos os pontos cardeais...

estou lá fora!
nas palavras que escrevi
nas cartas de amor que entreguei
nos amigos que me carregam com eles
nos lábios que beijei com amor
(e só e sempre os beijei com amor),
tatuado na vida e na memória dos que me viram passar.

meu corpo não é a cela de prisão
onde meu espírito mora.
pois meu espírito inteiro
transbordou para fora.

a morte pode pouco contra quem se deu.

* * * * * *

"Dans le bleu de cette beauté vous devinez le noir òu elle s'abîmera bientôt, et vous trouvez dans cette vie conjugale du bleu et du noir l'unique leçon de choses qui vous convienne, la preuve d'une excellence de cette vie òu tous nous est donné à chaque instant, le bleu avec le noir, la force avec la blessure. La seule tristesse qui se rencontre dans cette vie vient de notre incapacité à la recevoir sans l'assombrir par le sentiment que quelque chose en elle nous est dû: rien ne nous est dû dans cette vie, pas même l'innocence d'un ciel bleu. Le grand art est l'art de remercier pour l'abondance à chaque instant donnée." CHRISTIAN BOBIN, L'Inesperée


dos desejos abortados


“Queres pouco: terás muito.
Queres nada: serás livre.”
FERNANDO PESSOA


Do pouquíssimo que eu sei sobre a vida, e sei quase nada, certeza mesmo tenho de poucas coisas. E uma delas é que desejar o impossível é o caminho mais fácil para ser infeliz. E que as nossas esperanças altas demais só servem, no fundo, para deixar um gosto de decepção e cinzas na boca quando são fulminadas pelos raios de uma realidade sempre impiedosa e que – outra coisa que sei quase com certeza... - não está nem aí pra gente.

E como é que a gente sabe se um desejo deve ser abortado como um feto defeituoso, se não há exame ultrasom que mostre as entranhas do coração? Como é que a gente escolhe, dentre os filhos não nascidos , aqueles que serão abandonados e os que serão acolhidos? Como é que a gente prevê os danos futuros ou as benfeitorias longínquas que hão de trazer essas sementes que plantamos em nosso solo, tantas vezes estéril? Como decidir que desejo bom e que desejo é ruim?

Penso assim: desejo ruim é aquele que parece criança pidona e teimosa. Desejo ruim fica feito pirralho chato puxando nossa roupa, esperneando no chão do mercado, esgoelando pelas madrugadas, porque quer-porque-quer aquilo que quer. Desejo ruim se revolta e se enraivece quando não recebe o que pedia e, fulo que só ele, arquiteta planos de vingança sangrenta e homicida contra quem impediu sua satisfaçãozinha tão desejada. Desejo ruim é aquele que solicita o que é difícil de conseguir – ou pior! - que tem fome do impossível.

Se a criança pidona quer um foguete particular pra ir visitar os anéis de Saturno todas as noites, por mais bonitinho e poético que seja esse louco querer, os pais não têm muita solução além de causar o desconsolo e assistir o filhote chorando – chorando até que o desejo saia inteiro, abortado, pelos olhos. Com a vida também é assim. Quando a gente pede demais, quando pede o que não existe, quando pede o impossível, ela não tem nada a fazer senão ficar assistindo, impassível, à morte dos nossos sonhos. Até que a gente aprende a ter desejos dos bons – não a parar de desejar, como queriam os budistas, mas a desejar melhor.

Pois há desejos em gestação no nosso útero mental que, talvez, sejam fetos natimortos. Desejos que não servem para este mundo – e não há nenhum outro. Desejos que ficarão por dentro, crescendo, germinando, aguardando, na impaciênmcia, na esperança, no temor, por algo que não virá. São plantas crescendo em nossas estufas, recebendo nosso adubo e os jatos da nossa luz, mas que nunca darão frutos. Sâo desejos que nunca matarão a nossa fome. Que, talvez, sejam na verdade os CULPADOS por essa LONGA FOME QUE NÃO PASSA! E por esta fraqueza generalizada que às vezes sentimos quando os desejos estão de barriga vazia.

Há desejos que nada fazem além de estender seus bracinhos miúdos na direção do que está fora de alcance – e sempre estará.

quarta-feira, 12 de março de 2008

:: bilac ::

(dürer)

"A Alvorada do Amor"

Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:

Chega-te a mim! entra no meu amor,
E e à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calafrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se amaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nú,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!

(Olavo Bilac)

terça-feira, 11 de março de 2008

:: da raridade das apoteoses ::

(foto de rolfe horn)

"Contam que Rilke, depois dos primeiros versos que o vento lhe ditou nas altas penedias de Duíno, viveu doze anos com aquele germe, em viagens, em mudanças, em desperdícios, em guerras, até o momento de realizar, em quatro dias, como quem morre, as suas elegias perfeitas. Não será sempre assim? Não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?" in: GUSTAVO CORÇÃO, Lições de Abismo, 1a pg.

:: de como a solidão pode ser um bem ::

"Nascemos na solidão, morremos nela, e toda a nossa vida se desenrola sobre o signo dela. Mas, por estranho que possa parecer, ela mesma veicula em nós este desejo tão ardente de amor que só cresce à medida que somos cada vez mais ameaçados de ser reduzidos ao estar-só. Este conflito, que parece decisivo, tem o seguinte desenlace: a solidão profunda gera o desejo profundo de amar. Quanto mais se está só, tanto mais se quer amar e ser amado.” (92)

”Não podemos comprazer-nos a viver sós. Nossa solidariedade há de ser tão profunda que deva conduzir-nos a compartilhar o sofrimento dos outros. Não podemos ser indiferentes diante daquele que é esmagado pelos mecanismos mais violentos da existência. A ponto de podermos dizer que o homem só atinge sua dimensão plena de humanidade quando o sofrimento do outro é o seu, quando a tristeza do outro é a sua, quando o desespero do outro é o seu. Estaria tentado a ir até o ponto de acrescentar: quando a morte do outro se torna a sua. Não há tristeza maior do que a da secura que habita o homem que vive indifente a tudo o que não é ele próprio e desvia o rosto daquele que é esmagado pelo sofrimento.” (85)

“[A solidão] pode ser um bem. Tudo depende do que se faz com ela. Se a pessoa se entregar a ela, se lhe permitir que envenene a existência, se a aceitar passivamente como definitiva e fatal, só pode ser considerada um mal. Mas, se instada por ela, a pessoa partir ao encontro do outro, se fizer dela o motor de um movimento que é ao mesmo tempo solicitação do outro e oferta de si, se ela suscitar uma vontade cada vez maior de avançar em direção a um amor possível, ainda que difícil, como todo amor, então a solidão se torna um bem.” (48)

in: CHARBONNEAU, Crônica da Solidão.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão.

quarta-feira, 5 de março de 2008

:: um fruto completamente maduro ::


Uma das coisas mais singelas e bonitas da literatura brasileira. Sei que quase ninguém tem paciência para ler longos contos na internet, mas esse é tão predileto-da-casa e tão adorável que preciso compartilhar...



MEL & GIRASSÓIS


1

COMO naquele conto de Cortazar ― encontraram-se no sétimo ou oitavo dia de bronzeado. Sétimo ou oitavo porque era mágico e justo encontrarem-se, Libra, Escorpião, exatamente nesse ponto, quando o eu vê o outro. Encontraram-se, enfim, naquele dia em que o branco da pele urbana começa a ceder território ao dourado, o vermelho diluiu-se aos poucos no ouro, então dentes e olhos, verdes de tanto olharem o sem fim do mar, cintilam feito os de felinos espiando entre moitas. Entre moitas, olharam-se. Naquele momento em que a pele entranhada de sal começa a desejar sedas claras, algodões crus, linhos brancos, e a contemplação do próprio corpo nu revela espaços, fosforescentes, desejando outros espaços iguais em outras peles no mesmo ponto de mutação. E lá pelo sétimo, oitavo dia de bronzeado, passar as mãos nessas superfícies de ouro moreno provoca certo prazer solitário, até perverso, não fosse tão manso, de achar a própria carne esplêndida.

Olharam-se entre as palmeiras ― carnívoros, mas saciados, portanto serenos ― pela primeira vez. Quase animais no meio das moitas sombrias em que de repente tornou-se céu azul redondo, de cetim, o mar verde, pedra semi-preciosa, quando se olharam. Ela boiava além da arrebentação, onde a espuma das ondas não atrapalha mais quem tem vontade de contemplar os próprios pés confundidos coma areia branca do fundo do mar. Olhos fechados, deitada de costas na água, maiô preto, cabelos espalhados em volta, mãos abertas, pernas abertas, como se trepasse com o sol. Apenas a boca cerrada revelava alguma dureza, mas essa boca se abriu assustada quando ele veio nadando desde a praia, cabeça afundada na água ― e sem querer esbarrou nela.

Foi assim: ela boiava toda aberta, viajando mais longe que aqueles navios cruzando de tardezinha o horizonte, ninguém sabia em direção a onde. Então ele veio, braço após braço, meio tosco, meio selvagem, e de repente num braço estendido à frente do outro a mão desse braço tocou sem querer, por isso mesmo meio bruscamente, a coxa dela. A moça contraiu-se, esponja ferida, projetou o busto e abriu uns olhos meio injetados de sal, de mar, de luz. A mão dele também contraiu-se, e ficaram os dois se olhando, completamente molhados, direto nos olhos, quase meio-dia de sol abrasador, verão a mil. Você sabe, susto de onça, leopardo, nesse olhar que, além dele ou dela, só abarcava um mar imenso. Até que ele falou:


― Desculpe.

Ela disse:

― Não foi nada.

Como se não tivessem levado um susto. Hipócritas, sociais, duas pessoas passando quinze dias de férias numa praia qualquer do Havaí ou Itapirica, sorriram amavelmente um para o outro, embaixo dos cabelos encharcados, fingiram que estava tudo bem. E estava, sério. Ela nadou para longe. Ela continuou boiando. Indiferentes. Nadando para longe, em direção àqueles veleiros que não eram reais, mas uma paisagem desenhada e até meio cafona, exatamente do gênero desta que traço agora ― ele olhou para trás e a viu assim como ela estava antes, só que artificialmente agora, depois que ele a vira: olhos fechados, braços e pernas abertos, entregue como se trepasse com o sol. Enquanto ele nadava para longe, meio tosco, meio selvagem, braço após braço, cara afundada na água, ela também abriu um dos olhos. E espiou. Ele nadava para longe dela, uma pedra no meio do caminho, ela pensou, que tinha algumas leituras, sim. Mas uma pedra, supôs, que afastaria com a ponta do sapato, não estivesse de pés nus, afundados na água. Ela agitou os pés dentro da água morna afundados. Lugar-comum, sonho tropical: não é excitante viver?


2

Encontraram-se novamente na mesma noite. Desta vez foi diferente. Ele demorou-se um pouco mais na frente do espelho, tramando sobre o corpo de banho tomado a camisa branca, a calça azul-clarinho, bem largas as duas. Mas de maneira alguma pensou nela nem em ninguém mais, enquanto se olhava, garanto. Então foi jantar no restaurante do hotel, aquela coisa de bananas & abacaxis decorando saladas, araras & tucanos empoleirados sobre suflês, como um filme meio B, até mesmo meio C, e de repente houvesse um número rápido com Carmen Miranda nas escadarias, não espantaria. Ela não se demorou. Urbana e fiel ao preto, jogou a seda de uma blusa sobre o velho jeans meio arrebentado, e só entregou certa expectativa ― naquele momento, honestamente, nem ela saberia de quê ― quando acrescentou um pequeno fio de pérolas, quase invisível. E jogou o cabelo comprido para o lado, num gesto rápido de mulher, tão mulher que é desses preferidos pelos travestis.

Então desceram. Só uma forma de dizer, porque não, não havia escadarias. Também, não cheguemos a tanto. Eram como bangalôs dispostos lado a lado, e para chegar ao restaurante você vinha por uma espécie de corredor-varanda coberto de tralhas artesanais, redes penduradas entre colunas em arco. Se você quer saber, havia sim cestos de palha, peixes empalhados pendurados nas paredes caiadas de branco, além de grandes vasos de cerâmica ― que, inevitável, faziam lembrar de Morgiana e Ali Babá ― estrategicamente espalhados no percurso. Morenos de calças brancas e peito nu tocando violão jogados em redes, também havia. E moças morenas de cabelos soltos, vestidos estampados de flores miudinhas, caminhando tão naturais entre as cerâmicas que tudo aquilo parecia de verdade. Aquela coisa rústica: todos morenos, ardentes, arfantes, ecológicos, contratados pelo hotel. Vieram caminhando por esse corredor, ele de branco, ela de preto, até entrarem no que chamavam, certa pompa só medianamente convincente, de O Grande Salão.

Não se encontraram de imediato. Ela ficou numa mesa do lado esquerdo, com a Professora Secundária Recuperando-se Do Amargo Desquite, a Secretária Executiva Louca Por Uma Transa Com Aqueles Garotões Gostosos e a Velha Tia Solteirona Cansada De Cuidar Dos Sobrinhos. Ele sentou numa mesa à extrema direita ― nada ideológico ― junto do Casal Em Plena Segunda Lua De Mel Arduamente Conquistada e o Jogador De Basquete Em Busca De Uma Vida Mais Natural. Conversando, durante o suflê de camarão e o ponche de champanha, que era um hotel cinco estrelas, com certo sucesso ela citou Ruth Escobar, Regina Duarte, uma matéria da revista Nova e arriscou Susan Sontag, mas ninguém entendeu. Enquanto ele amassava o segundo maço de Marlboro e tinha um pouco de preguiça de defender Paulo Francis, mas concordou que os ministérios, tanto para a cultura quanto para o esporte ou a educação, não eram lá essas coisas. Além do mais, tinha saudade, sim, do Aero Willys.

Encararam-se mesmo foi na hora do doce de coco em lascas com banana amassada. Desta vez, foi ela quem esbarrou nele. Então ele olhou-a com aqueles olhos meio fatigados de quem está suportando uma noite extremamente chata, para ver uma moça que já tinha visto antes. Cabelos presos na nuca, blusa de seda preta, jeans arrebentados, uma moça com olhos de quem está suportando, numa boa, uma noite extremamente chata, e só lembrou vagamente que a conhecia de algum lugar. Mas ela localizou naquele homem moreno, nariz descascando um pouco na ponta, exatamente o cara que tinha esbarrado nela na praia, só que de cabelos secos, vestido. Ela sorriu, porque tinha esses lances assim, meio provocantes, e disse:

― Agora estamos quites.
Meio pateta, como costumam ser os homens, em férias ou não, ele rosnou:
― Hã?

E quando ela pediu com-licença e ele se afastou um pouco foi que, vendo-a pelas costas, eretas demais, um tanto tensas, reconheceu a moça da bóia e falou:
― Tudo bem?

Ela disse:

― Jóia.

Depois serviram-se, comeram, entediaram-se pelo resto da noite, que não era muito longa ― a não ser quisesse chafurdar em pântanos de daiquiri para depois chamar, também podia, por telefone, um daqueles rapazes de calças brancas, sem o violão, naturalmente, ou uma daquelas moças de vestido estampado. Então inventar qualquer história que resultaria num cheque a menos no talão e , quem sabe, alguma espécie de prazer suarento e, esperava-se, totalmente ― ou pelo menos um pouco ― selvagem. Eles não queriam isso. Nessa noite, nessa altura, nesta história decididamente: não. De longe, olharam-se distraídos, tomaram seus cafés, fumaram seus cigarros, pediram licença, debruçaram-se um pouco pelas varandas ao som de é-doce-morrer-no-mar ou minha-jangada-vai-sair-pro-mar. Depois, delicadamente foram dormir. Sozinhos.

3

Antes de dormir, ele fumou três Marlboro. Ela tomou meio Dienpax. Ele folheou uma biografia de Dashiell Hamett, tão fodido coitado, pensou, e Lílian Hellman seria mesmo uma naja? e apagou a luz, virou pro outro lado, tentou ficar de pau duro entre os lençóis cheirando pensou que a algas, mas alga não tem cheiro, qualquer coisa verde, enfim, então dormiu no meio de uma punheta sem objeto, mera mania. Ela abriu Margaret Atwood, mas que mais lenta toda aquela história de mulheres vestidas de vermelho, depois de Doris Lessing, mas era meio porco aquele negócio da velha morando num basement, então apagou a luz e sem querer pensou Carlos, mas não vinha mais nem um sinal de emoção, ao dormiu aconchegada na própria pele queimada de sol. Tão maravilhoso & repousante, os dois pensaram antes de dormir.

Manhã seguinte, estendendo a toalha, nota gigante felpuda de um dólar, ela espiou por baixo dos raibans gatinho em todas as direções, não que procurasse alguém, até localiza-lo, sem planejar, a poucos metros. Um homem, verdade, com certa barriga, nada de grave, mas ombros largos, pernas fortes, mãos na cintura, atrevidamente solitário. Ele olhava para ela, pura coincidência.

Ela sorriu, pavloviana. Ele levantou a mão. Ela também levantou a mão. Paradas assim no ar, por um momento as mãos dele e dela diziam qualquer coisa como oi, você aí. Qualquer coisa assim, nada a ver. Meticulosa, pós-naturalista, ela passou o urucum na pele, depois deitou-se de costas ao sol. Enquanto ele, sem creme nem óleo, deitava-se de bruços na areia pura (e tantos parasitas, micoses, meu Deus), que os homens são assim, ela pensou, tão rudes. E teve um arrepio. Foi nesse arrepio que soube.

Ele soube quando, deitado de bruços, por baixo do fio sintético do calção preto, o pau ficou mais duro. Ele mexeu devagar a bunda, sem ninguém perceber, num movimento de entre e sai, você sabe, de alguma coisa úmida. Enquanto isso, olhavam-se. Ela, por trás dos raibans gatinho; ele, das sobrancelhas franzidas, das pálpebras apertadas por causa do sol cada vez mais forte. Oblíquos, cada um à sua maneira, começavam a saber.

Passou um negrão vendendo coisas. Ele tomou uma latinha de cerveja, ela achou brega. Ela tomou m suco de limão, ele achou chique, mesmo em copo de plástico. Então ela quase começou a dormir no sol mais e mais quente, umas memórias misturavam-se às fantasias, e ia até resistir ao sono quando viu a Secretária Executiva aproximando-se com uma Estonteante Tanga Tigrada, e preferiu afundar de vez naquela bobeira suada que lhe trazia de volta um nome de homem, certas amarguras, espantos, flashes-backs, ela de saia pragueada azul-marinho, uma professora de nariz enorme dizendo você vai longe, menina. Ela ia longe, sim ― para Madagascar ou Bali, onde escreveria um livro definitivo sobre A Sabedoria Que As Mulheres Ocidentais Conquistaram Depois Da Grande Desilusão De Tudo Inclusive Dos Homens.

De repente, porque algo acontecera no seu campo de visão, abriu os olhos. Coberta de suor, atordoada como uma menina de saia pragueada azul-marinho, livros apertados contra os pequenos seios.

Por entre as duas coxas masculinas, peludas, musculosas, ela viu primeiro a crista do mar e um surfista cavalgando ondas, mas como se estivesse enquadrado por aquele limite que, só depois de algum tempo, passando a mão na testa, percebeu que eram duas coxas masculinas. Ela olhou para ele: hein?

Ele estava parado ao lado dela. Mão esquerda na cintura, direita sobre os olhos para proteger-se do sol, ele olhava para ela. Aquela mulher não muito jovem, estendida de costas sobre uma toalha branca, encarando de frente o sol. Era a segunda vez que ele a via assim, encarando de frente o sol. Quando ele percebeu que ela olhava para ele, flexionou as coxas e foi-se apoiando aos poucos nos próprios pés dobrados, até ficar quase ao nível dela, deitada na areia. Meio sem jeito, meio óbvio demais, mas tudo era verão, meio sem assunto e sem saber direito por quê, ele perguntou assim:

― Como vai?

Ela disse:
― Legal. E você?

4

Conversaram, no oitavo ou nono dia. Nadaram juntos na praia, primeiro. Depois ela sentiu sedem, ele pagou outro suco de limão, tomou outra cerveja. Deitados na areia, lado a lado, falaram. Se você quer que eu conte, repito, mas não é nada original, garanto. Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A Fim De Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amir Klink. Ela, que quase não fumava, aceitou um cigarro. E disse que gostava de Fellini. Ele concordou: demais. Para a surpresa dela, ele falou em Fasbinder. Ela foi mais além, rebateu com Wim Wenders. Ele então teve um pouco de medo, recuou e contemporaneizou em Bergman. Ela disse ah, mas avançou ainda mais e radicalizou em Philip Glass. Ele disse não vi o show, e a começou a discorrer sobre minimalismo: um a zero para ele. Ela aproveitou para fazer uma extensa, um tanto tensa, digressão sobre qualquer coisa como Identidades Da Estética Minimalista Com O Feeling Da Bossa-Nova. Ele ouviu, espantado: um a zero para ela.

Empatados, encontraram-se em João Gilberto, que ouviam sozinhos em seus pequenos mas bem decorados apartamentos urbanos, quando queriam abrir o gás, jogar-se pela janela ou cortar os pulsos, e não tinham ninguém na madrugada. Encontraram-se tanto que, mais de meio-dia, ela aceitou também uma cerveja. Meio idiotas, mas tão felizes, ficaram cantando O Pato, enquanto todos aqueles Atletas Dispostos A Tudo Por Um Corpo Mais Perfeito, Gays Fugindo Da Paranóia Urbana Da Aids, Senhoras Idosas Porém Com Tudo Em Cima, e por aí vai, retiravam-se em busca do almoço. O sol queimava queimava. Então ele viu um barquinho a deslizar, no macio azul do mar, mostrou para ela, que viu também, e apontaram, e riram, e o sol não parecia tão ardente ― era o oitavo ou nono dia de bronzeado. Aquele, quando o moreno já dominou a pele você pode, sem susto, tirar os raibans, como ela tirou, para encarar a ele ou a qualquer um outro, direto nos olhos. Que sorriam. Tudo era tão tropical, estavam de férias, morreram de rir, falaram a gente se vê, sem pressa, ao se despedirem na porta dos bangalôs, o dela era o número 19, ele marcou na cabeça. E foram cada um tomar seu banho de água doce.

Descobriram à noite, dançando Love is a Many Splendored Thing. No começo, afastados, depois cada vez mais próximos, à medida em que o maestro do conjuntinho enveredava por ciladas como Beatles, Caetano ou Roberto Carlos. Cantaram juntos Eleanor Rigby, tinham os dois mais de trinta, e ela de repente ficou toda arrepiada com vou-cavalgar-toda-a-noite, encostou a cabeça no ombro dele. Ele apertou mais forte na cintura dela. E foram assim, rodando meio tontos, às vezes sentando para falar de Pessoa, Maísa ou Clarice. Aos poucos descobrindo, localizando, sitiando.

Ele tentava esquecer uma mulher chamada Rita. Conforme o uísque diminuía na garrafa, Rita misturava-se aos poucos com outra chamada Helena, ele repetia como-amei-aquela-mulher-nunca-mais-nunca-mais, enquanto ela sentia algum ódio, mas não dizia nada, toda madura repetindo isso-passa-questão-de-tempo-tudo-bem. Para espanto dele, ela falou o nome daquele homem de antes, de outros também, Alexandre, Lauro, Marcos Ricardo ― ah, os Ricardos: nenhum presta ― e ele também sentiu certo ódio, nada de grave, normal, tempos modernos, mero confronto de descornos. Falaram então sobre as paixões, os enganos, as carências e todas essas coisas que acontecem no coração da gente e tudo, e nada. Dançaram de novo. Ele achava tão bom debruçar o rosto naquela curva do pescoço dela. Ela achava um pouco forte estar-se exibindo assim com um homem afinal desconhecido debruçado desse jeito no pescoço dela, mas encostava mais e mais a bacia na bacia dele ― a pelve, a pelve, repetia, mentalmente ensaiando passos de dança e-um-e-dois-e-três ―, um homem tão abandonado e limpinho cheirando não sabia ainda se a Paco Rabanne ou Eau Sauvage, seria Phebo? cheiro de homem direito decente e porra caralho: afinal, estavam de férias. E livres, mas esse maldito vírus impõe prudência. Ela deixou que a mão dele descesse até abaixo da cintura dela. E numa batida mais forte da percussão, num rodopio, girando juntos, ela pediu:

― Deixa eu cuidar de você.

Ele disse:

― Deixo.

5

Assim foram pelos dias, que não eram muitos mais. Quatro, cinco, nem uma semana.

Caminhavam descalços na areia, à noite, à beira-mar ― juro. Devagar, as mãos se tocavam: a tua é tão longa, a tua é tão quadrada. Ele não queria entrar noutra história, porque doía. Ele não queria entrar noutra história, porque doía. Ela tinha assumido seu destino de Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida E Aceitava A Solidão Inevitável. Ele estava absolutamente seguro de sua escolha de Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens De Amor.

Caminhavam assim, lembrando juntos letras de bossa-nova. Ela imitava Nara Leão: se-alguém-perguntar-por-mim. Ele, Dick Farney: pelas-manhãs-tu-és-a-vida-a-cantar. Nada sabiam de punks, darks, neons, cults, noirs. Eram tão antigos caminhando de mãos dadas naquela areia luminosa, macia de pisar quando os pés afundam nela lentamente. Carne de lagosta, creme, neve. Tão bom encontrar você, um cantinho, um violão.

Beijavam-se depois com certa ardência excessiva na porta do bangalô dela. Ou dele, quando ele bebia demais e não segurava, mas isso era tolerável, embora freqüente. Na boca, só uma três vezes. A lua era tão cheia, eles tão tímidos. De língua, uma única. Meio contraídos ― ele tinha uma ponte fixa do lado esquerdo superior; ela, um pino segurando um pré-molar do lado direito inferior. Ele a achava tão digna & superior, ela o achava tão elegante & respeitador. E pensavam: isto é uma historinha de férias, não leva a nada, passatempo. Se ele tivesse amigos por ali, diriam come essa mina logo, cê ta marcando, cara. Se ela tivesse amigas ali, brincariam de bruxas de Eastwick, discutiriam cheiros, volumes, investigariam saldos no talão de cheques. Sem ninguém, na real: ele a deixava ou ela o deixava. Era só, depois iam dormir. Então sonhavam um com o outro no escuro cinco estrelas de seus bangalôs com antena parabólica.

Ela deita de costas na cama, ele pensava, só de calcinhas. Ela tem seios pequenos que ele fecharia dentro das duas mãos, como quem segura duas maçãs daquelas verdinhas. Eu deito por cima dela, afundo a cabeça no seu ombro. Ela passa a mão direita por trás das minhas costas, me lambe na orelha, passa a mão nas minhas costas, vai descendo, arranha sem machucar, ela tem as unhas curtas, até em cima da minha bunda, então começa a descer a minha cueca, eu fico sentindo meu peito apertado contra os seios miúdos dela, enquanto ela continua a descer devagarinho a minha cueca e eu começo a sentir também a pressão do meu pau contra seu umbigo, até a cueca chegar aos joelhos e eu comprimo meu pau contra sua barriga, então ela diz gracinha-gracinha, e quando a cueca chega nos meus tornozelos eu a expulso para o meio do quarto com um pontapé e fico inteiro nu contra ela que está quase inteiramente nua também, porque vou descendo sua calcinha devagar enquanto digo: minha mãe, irmã, esposa, amiga, puta, namorada ― te quero.

Ele vem por cima de mim, ela pensava, enquanto o espero deitada na cama. Ele afunda em cima de mim como um bebê que quisesse mamar no meu seio que então empino, oferecendo o bico duro a ele. Ele passa a mão por trás das minhas costas que arqueio um pouco, para que ele possa me apertar pela cintura, enquanto me afundo mais no corpo dele, e desço suas cuecas devagar até que ele as jogue com um pontapé no meio do quarto ao mesmo tempo em que sua mão na minha cintura desceu minhas calcinhas até jogá-las no meio do quarto. Então nos apertamos inteiramente nus um contra o outro, enquanto ele entra em mim, tão macio, e ele me diz você é a mulher que eu sempre procurei na minha vida, e eu digo você é o homem que eu sempre procurei na minha vida, e nos afogamos um no outro, e nos babamos e lambuzamos da baba da boca e dos líquidos dos sexos um do outro enquanto digo: meu pai, irmão, marido, amigo, macho, príncipe encantado ― te quero.

6

No final dos quinze dias, estavam inteiramente dourados. Nadaram: ela falou, entre braçadas, que estava com saudade da Avenida Paulista, pique, buzina, relógio digital. Comeram camarão: ele falou que estava com saudade do Rodeio, picanha fatiada, salada de agrião, dry-martini. Correram juntos pela praia sem falar nada. Mas tudo em qualquer movimento dizia que pena, baby, o verão acabou, postal colorido, click: já era. Fumaram cigarros meio secos sobre a areia, olhando o horizonte, falando forçados do Livro Que Ela Ia Escrever e do Barco Onde Ele Ia Morar, porque afinal não eram animais, respeitavam o in-te-lec-to um do outro. Mais de trinta anos, quase dez de análise, nenhum laço, alguma segurança, pura liberdade.

Todo aquele simulacro de Havaí em volta: maduros, prontos. À espera.

Ele ofereceu outro Marlboro, ela aceitou. Ela passou Copertone nas costas dele, ele deixou. Ela falou que bom encontrar você no meio de gente tão medíocre, ele sorriu envaidecido. Ele disse nunca pensei encontrar uma mulher como você num lugar como este (mas não é nenhum puteiro, ela desconfiou), ela sorriu lisonjeada. Ele esticou a perna, o pé dele ficou bem ao lado do pé dela. O pé dela era branco, arqueado pelos muitos anos de dança. O pé dele era moreno, joanete saliente, unhas machucadas, pé de executivo. Como por acaso, o pé dele debruçou sobre os pés dela. Ela deixou ― último dia, não havia mais tempo. Manhã seguinte, acabou: the end ― sem happy? Ela sentiu-se um pouco tonta naquele sol todo, ele perguntou se queria uma água. Ela suspeitou que ele a achava uma coroa meio chata porque afinal, nesses dias todos, nem tinha tentado qualquer coisa mais. Ele suspeitou que ela o achava um cara inteiramente careta porque, nesses dias todos, nem tinha tentado qualquer coisa mais.

Eles se olharam com tanta suspeita e compreensão, mais de meio-dia na praia escaldante. Os olhos dele lacrimejavam de tanta luz. Ela emprestou a ele os raibans gatinho, depois riu enquanto ele colocava e fazia uma pose meio de bicha. Será, ela suspeitou. E olhou para as garotas que jogavam vôlei de uma maneira tão decidida que será, ele suspeitou. Tempos modernos, vai saber. O sol continuava a descer, tomaram três latinhas de cerveja cada um, lembraram da letra inteira de ta-fazendo-um-ano-e-meio-amor-que-o-nosso-lar-desmoronou, ela pensou com desgosto no Fiat verde avançando pelo Minhocão, oito da manhã, ele pensou com desgosto nos três telefones à sua mesa, e os dois pensaram com tanto desgosto nessas coisas todas que tomaram mais uma cerveja, o sol continuava descendo. Não tinha mais ninguém na praia quando viram o sol, bola vermelha, mergulhar no mar em direção ao Japão. Enquanto amanhece lá, anoitece aqui, ele disse. Combinaram vagamente um sushi na Liberdade.

Mas era o último dia, puro verão, e não estavam nem um pouco a fim um do outro, que pena.


7

Comeram lagosta, à noite. Ela toda de branco, cabelos soltos, dourados do sol, meio queimados de sal. Ele todo de preto, camisa aberta ao peito, pele novinha em folha na ponta do nariz comprido. Depois dançaram, sempre dançavam. Quase não disseram nada. Soprava uma brisa morna do mar, bem assim, agitando a copa das palmeiras. Eu sou uma mulher tão sozinha, ela disse de repente. Eu sou um homem tão sozinho, ele disse de repente. Foi quando o conjuntinho começou a tocar Lygia, de Tom Jobim, que eles falaram juntos: o João um dia devia gravar essa, já gravou? não me lembro: e-quando-eu-me-apaixonei-não-passou-de-ilusão. Apertaram-se tanto um contra o outro, sem nenhuma intenção, só enlevo mesmo, que não perceberam a pista esvaziando, e de repente eram três, quase quatro da madrugada. O ônibus até o aeroporto saía às oito, o dela, às nove, o dele, e continuavam os dois no meio da pista, sem conseguir parar de dançar coisas como Moonlight Serenade, ou As Time Goes By, músicos cúmplices. Els eram tão colonizados, tão caretas e carentes, eles estavam tão perdidos no meio daquela fantasia sub-havaiana que já ia acabar. Ela era só uma moça querendo escrever um livro e ele era só um moço querendo morar num barco, mas se realimentando um do outro para. Para quê? Eles pareciam não ter a menor idéia.

O cheiro dele era tão bom nas mãos dela quando ela ia deitar, sem ele. O cheiro dela era tão bom nas mãos dele quando ele ia deitar, sem ela. O corpo dela se amoldava tão bem ao dele, quando dançavam. Ele gostava quando ela passava óleo nas suas costas. Ela gostava quando, depois de muito tempo calada, ele pegava no seu queixo perguntando ― o que foi, guria? Ele gostava quando ela dizia sabe, nunca tive um papo com outro cara assim que nem tenho com você. Ela gostava quando ele dizia gozado, você parece uma pessoa que eu conheço há muito tempo. E de quando ele falava calma, você tá tensa, vem cá, e a abraçava e a fazia deitar a cabeça no ombro dele para olhar longe, no horizonte do mar, até que tudo passasse, e tudo passava assim desse jeito. Ele gostava tanto quando ela passava as mãos nos cabelos da nuca dele, aqueles meio crespos, e dizia bobo, você não passa de um menino bobo.

Como nas outras noites, ele a deixou na porta do bangalô 19, quase cinco da manhã, pela última vez. Mas diferente das outras noites, ela o convidou para entrar. Ele entrou. Tão áspero lá dentro, embora cinco estrelas, igual ao dele. Ele não sabia o que fazer, então ficou parado perto da porta enquanto ela abria a janela para que entrasse aquela brisa morna do mar. Ela parecia de repente muito segura. Ela apertou um botão e, de um gravador, começou a sair a voz de Nara Leão cantando These Foolishing Things: coisas-assim-me-lembram-você. Ela veio meio balançando ao som do violão e convidou-o para dançar, um pouco mais. Ele aceitou, só um pouquinho. Ele fechou os olhos, ela fechou os olhos. Ficaram rodando, olhos fechados. Muito tempo, rodando ali sem parar. Ele disse:

― Eu não vou me esquecer de você.

Ela disse:

― Nem eu.

Ele afastou-a um pouco, para vê-la melhor. Ela sacudiu os cabelos, olhou bem nos olhos dele. Uma espécie de embriaguez. Não só espécie, tanta vodca com abacaxi. Eles pararam de dançar. Nara Leão continuava cantando. A luz da lua entrava pela janela. Aquela brisa morna, que não teriam mais no dia seguinte. Ele a viu melhor, então: uma mulher um pouco magra demais, um tanto tensa, cheia de idéias, não muito nova ― mas tão doce. As duas mãos apoiadas nos ombros dele, assim afastando os cabelos, no mesmo momento ela o viu melhor: um homem não muito alto, ar confuso, certa barriga, não muito novo ― mas tão doce. Que grande cilada, pensaram. Ficaram se olhando assim, quase de manhã.

Ela não suportou olhar tanto tempo. Virou de costas, debruçou-se na janela, feito filme: Doris Day, casta porém ousada. Então ele veio por trás: Cary Grant, grandalhão porém mansinho. Tocou-a devagar no ombro nu moreno dourado sob o vestido decotado, e disse:

― Sabe, eu pensei tanto. Eu acho que.

Ela se voltou de repente. E disse:

- Eu também. Eu acho que.

Ficaram se olhando. Completamente dourados, olhos úmidos. Seria a brisa? Verão pleno solto lá fora.

Bem perto dela, ele perguntou:

― O quê?

Ela disse:

― Sim.

Puxou-o pela cintura, ainda mais perto.
Ele disse:

― Você parece mel.

Ela disse:
― E você, um girassol.

Estenderam as mãos um para o outro. No gesto exato de quem vai colher um fruto completamente maduro.

* * * *

(Caio Fernando Abreu, in Os Dragões Não Conhecem o Paraíso)