ESPALHAI, IRMÃOS, VOSSOS TESOUROS APODRESCENTES!
"La mort dont nous ne savons rien posera sa main sur notre épaule dans le secret d'une chambre ou elle nous giflera dans la lumière du monde - c'est selon. Le mieux que nous puissions faire en attendant ce jour est de lui rendre sa tâche légère: qu'elle n'ait presque rien à prendre parce que nous aurions déjà presque tout donné." CHRISTIAN BOBIN, L'Inesperée
Ouro, ouro da alma puro, do melhor quilate, foi o que achei dentro dum livrinho do Bobin (paixão à primeira lida, ao primeiro parágrafo... vai escrever lindamente assim no raio que o parta!). Uma das visões mais lindas sobre a morte, que é também uma visão das mais lindas sobre a vida, é o que se encontra nessas cinco linhazinhas perfeitas. Diz o Bobin que devemos ser camaradas com a morte e tornar a tarefa da Grande Ceifadora algo fácil de realizar (rendre sa tâche lègere...). Fazer com que a morte, ao chegar, não tenha mais muito pra levar. Pois tudo está doado. Pois tudo está lá fora.
A morte dá medo por causa daquela sensação de ter juntado um monte de coisa legal dentro dum casarão que no fim da história pega fogo, deixando a gente, que pega fogo junto e vira cinza, com aquela maldita angústia de pensar: “foi tudo em vão! Tudo que está dentro de mim vai ser fulminado, dizimado, nadificado! Todas as memórias, todos os sentimentos, todos os neurônios, todas as células... de mim num vai sobrar muito além dum esqueleto dentro dum caixão, nada mais!” Mas isso porque deixamos tudo que temos num só lugar – e nesse lugarzinho mal-cheiroso e peçonhento que é nosso euzinho, essa desgraça. Há lugares melhores para nos guardarmos. Nos outros, por exemplo. No mundo. Na primavera.
Pois guardamos nossas jóias em nossos cofres, e daí vem o medo do bandido, da perda, da catástrofe... Não haveria medo se todas as jóias estivessem dadas, distribuídas, entregues a outras mãos e outros corações. Nossa avareza de nós mesmos é o obstáculo. Trancamos em nosso interior nossos bens, o maior deles o amor, sem notar que este cofre tem uma bomba relógio a ele acoplada que cedo ou tarde irá explodir. “It's way to late to be this locked inside ourselves...”
Cada um de nós é um baú de tesouros apodrescentes marcado para explodir. A bomba relógio foi ativada com o 1º berro que demos fora do útero. E não há um visor que nos diga quantos anos, meses ou minutos faltam até a explosão. É bomba indesarmável e não há herói, hollywoodiano ou grego, do naipe de Hércules ou de Rambo, que dê jeito de parar o tic tic tic. A vida é um thriller mais excitante e cheio de suspense do que qualquer coisa que o cinema possa criar. Pois o personagem principal pode morrer a qualquer momento e o final feliz nunca é garantido, apesar de ser possível.
Guardar é tolice pois guardar é perder.
“Guardar para usar depois”? Mas o que garante que vai haver um depois? A chegada do amanhã nunca é garantida. Apesar de estarmos tão acostumados a, todas as manhãs, vermos um amanhã novo a desembarcar, fresco e usável, no nosso porto... Vai haver um dia, primeiro e último, em que o amanhã faltará ao encontro. Será o último dos hojes e o único dos hojes que não chegará a seu fim.
“whatever i got
i've got no reason to guard
what should i do but
SPEND MY BEST?”
(fiona apple)
* * * * * *
que a morte não tenha nada para me roubar
pois já me dei por inteiro.
Estou inteirinho lá fora,
o espírito esparramado pelo mundo
o coração feito em mil estilhaços de algodão
e soprado pelo vento por todos os pontos cardeais...
estou lá fora!
nas palavras que escrevi
nas cartas de amor que entreguei
nos amigos que me carregam com eles
nos lábios que beijei com amor
(e só e sempre os beijei com amor),
tatuado na vida e na memória dos que me viram passar.
meu corpo não é a cela de prisão
onde meu espírito mora.
pois meu espírito inteiro
pois meu espírito inteiro
transbordou para fora.
a morte pode pouco contra quem se deu.
a morte pode pouco contra quem se deu.
* * * * * *
"Dans le bleu de cette beauté vous devinez le noir òu elle s'abîmera bientôt, et vous trouvez dans cette vie conjugale du bleu et du noir l'unique leçon de choses qui vous convienne, la preuve d'une excellence de cette vie òu tous nous est donné à chaque instant, le bleu avec le noir, la force avec la blessure. La seule tristesse qui se rencontre dans cette vie vient de notre incapacité à la recevoir sans l'assombrir par le sentiment que quelque chose en elle nous est dû: rien ne nous est dû dans cette vie, pas même l'innocence d'un ciel bleu. Le grand art est l'art de remercier pour l'abondance à chaque instant donnée." CHRISTIAN BOBIN, L'Inesperée
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