quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005

" O   F U T E B O L I S T A   I M A G I N Á R I O "
               (é tudo autobiográfico e é tudo inventado.)


   - Ai, meu Jesus, o menino tá doidinho! – foi o que a avó deixou escapulir, com cara de medo do futuro, enquanto observava o reinício da temporada de sandices de seu querido netinho, em quem tantas esperanças depositava de ver transformado num homem de razão rígida e cientificismo sóbrio.

   Sem que a avó tivesse tempo de ensaiar censuras mais firmes ao comportamento desarrazoado do pirralho, ele tinha entrado correndo pela casa, escalado as prateleiras do armário como quem sobe uma escada de bombeiro, agarrado a grande bola de seis gomos que repousava escondida no que se acreditava ser território inacessível para mãos infantis, e saído correndo, quintal afora, zigue-zagueando pelas árvores do pomar, em direção ao campinho de futebol. Nada há nisso de precisamente anormal ou preocupante, bem vê o leitor atento, que não deve estar vendo com nitidez porque se deveria temer qualquer tipo de distúrbio mental em comportamento tão sadio quanto este. Uma criança, na posse do esplendor de suas capacidades físicas, voa para os divertimentos desportivos em seu primeiro dia de férias: que há de tão azucrinante nisso? O juízo da vovó, talvez distorcido pela raiva sentida por não ter sido justamente cumprimentada pelo neto, parece um tanto equivocado ao insistir na sugestão de birutices supostamente possuídas pelo filho de sua filha. Que maldade esta de vituperar contra a criança só porque foi correndo jogar bola com seus amiguinhos!

   O problema é que há algo de verdadeiramente inusitado no quadro que a avó está a observar da sacada, donde ao longe pode divisar, quase nos limites da propriedade, o verde retângulo graminado usualmente utilizado para fins futebolísticos. Pode-se sim ver chutes, dribles, passes, porradas na trave, bolas na rede, gritos de gol e empolgadas comemorações. Mas o que se nota muito facilmente - e agora começamos a compreender que a avó não estava tão louca assim ao sugerir que o neto estava louco - é que no campo não há mais que um jogador solitário.

   Ele conduz a bola, jinga para os lados, pára um instante como se observasse as pernas dum adversário (aliás inexistente), taca-lhe mui sagazmente a bolota por entre as canetas, realiza dribles da vaca sempre muito bem sucedidos, corre o campo todo com a bola em seu controle, desviando-se genialmente dos carrinhos, voadoras e mais sutis tentativas de desarmes, dá chapéus de fazer ruborizar eternamente a vítima, faz embaixadinhas enquanto corre, usa o calcanhar para fazer passes a “companheiros” que estão às suas costas (e todos se espantam tão gigantescamete com a precisão deles que julgam-no possuidor de um terceiro olho, provavelmente escondido em sua nuca)... Por vezes, ao perceber a defesa adversária muito bem constituída, tem a inteligência de arriscar um tiro de longa distância, que sempre tem resultados bastante aceitáveis. Se a bola porventura não penetra no domínio de êxtase que está para além dos limites das traves, a defesa do goleiro é que é majestosa, ou então o chute é que resvala no poste e foge pela linha de fundo. Porém, sem exceção, o lance enche a torcida de exultante emoção. Todos se levantam, e junto o rumor inebriante das palmas, dos berros, dos assobios.

   O grande herói do jogo, ovacionado com estrondo pela multidão ensandecida, não é outro senão o garoto, transformado em adulto viril, fenômeno desportivo que preenche as páginas dos jornais da nação, descrito com expressões das mais suculentas e lisonjeiras conhecidas pelos comentaristas. Nunca antes na história conhecida dos Esportes, nem mesmo nas velhas Olimpíadas gregas, nem em nenhum outro tempo da Era Cristã, nem mesmo com Pelé, Zico ou Platini, nascera atleta que a ele se assemelhasse. Um inominável talento na arte de controlar a bola com os pés e fuzilar os goleiros com chutes precisos e indefensáveis... generoso o bastante para honrar seus colegas de time com o tesouro de seus passes (sempre milimetricamente calculados)... corajoso o bastante para encarar sozinho, com audácia leonina, toda a defesa adversária... móvel e ágil o suficiente para ser capaz de jogar ao mesmo tempo como centro-avante, volante, meio-campista e quarto-zagueiro... Em suma, nada menos que o exemplar supremo do Homem Perfeito.

   Mas convenhamos que, assim que abandonamos essa capacidade óptica de vermos o mundo através dos olhos do neto, e nos voltamos para aquilo que a avó está a observar, é necessário confessar que não se trata de um espetáculo lá muito bonito de se ver. A velha tem a sensação de observar um interno de hospício em suas brincadeiras de mentecapto, correndo como besta num campo vazio, desviando-se de adversários inexistentes, chutando a bola num gol desprovido de goleiros, comemorando com ridícula veemência frente a uma platéia que olhos humanos não conseguem ver... O neto chuta uma bola, a avó nota claramente que ela se dirige lentamente para o gol, rastejante, devagar-quase-parando, e passa com calma pela linha branca, no meio do gol, indo depositar-se tranqüilamente no chão, e logo o neto está a correr, braços levantados, sorrisão pintado na cara, berrando para todos os vizinhos ouvirem: “Golaaaaaaaaaaço!!!!!! No ââââââângulo!!!!! Sensacional!!!!” A vó adquire a certeza de que atitudes enérgicas precisam ser tomadas contra esse tipo de distúrbio mental.

   Nos papos com as comadres da vizinhança, a avó torna então explícita sua preocupação com o juízo defeituoso do pequeno, e logo recebe a recomendação muito sábia de não permitir mais que o garoto se entretenha com divertimentos solitários.

   - Tem tanto moleque nessa roça de nosso Senhor! – era o que diziam quase que em uníssono as experimentadas senhoras da região.

   A avó, confiante de que o fim do isolamento do neto seria mudança suficiente para cura-lo de seu transe passageiro, percorre então, em segredo, as chácaras e sítios dos arredores em busca de interessados num bom jogo de bola. O neto, garoto da cidade muito imbuído com os preconceitos da urbanidade, já havia muitas vezes se referido com muito sarcasmo às crianças daquela vizinhança, que reputava como uns “caipirões babacas”, e havia deixado muito claro que não desejava “se misturar” com aquela gente. A avó, porém, não se mostrava desejosa de atender aos pedidos do fedelho, e acreditava-se ainda detentora de suficiente autoridade para impor certas coisas à criança, ainda mais quando se tratava de procedimento tão fundamental para salvaguardar a saúde mental ameaçada do neto.

   Luizinho (pois era esse o nome do neto) se encontrava em meio a seus deliciosos delírios de grandeza quando notou – escandalizado! – a aproximação de meia dúzia de caipirinhas (as pessoas, não as bebidas!), todos mais ou menos de sua idade, devidamente conduzidos ao campinho pela vó. Os garotos, que já haviam sido instruídos a respeito do tipo de atitude que deveriam adotar, chegaram já fazendo a terrível pergunta destroçadora das possibilidades de continuação do sonho do garoto:

   - E aí, meu, vamu fazê timinho?

   E a avó, aproveitando a oportunidade para empurrar suas decisões pela goela do neto, em cujo semblante se desenhava a oposição ferrenha e raivosa à sugestão dos intrusos, disfarçou seu imperativo sob uma forma sutil:

   - Olha, Luizinho, que legal! Fazer timinho!

   Sentindo-se absolutamente incapaz de pronunciar seu repúdio ao projeto da avó frente àquela multidão de garotos, a maioria deles bem mais fortes que ele, o neto se resignou à maldição que o destino lhe havia conferido. Afinal, como iria ele berrar para a velha que odiava os malditos caipiras, ou manifestar seu desejo de se ver livre da presença contaminadora deles, sem ter os ossos moídos de pancada? Como iria expulsa-los de seu campo, quando sabia que a dona de verdade do mesmo é que os havia convidado? Com um ódio secreto fervendo dentro de seu peito, ele observou quieto a invasão do campo futebolístico, as briguinhas estúpidas para decidir os times, os par-ou-ímpares, a decisão quanto a quem seria o time descamisado e qual o vestido, e finalmente viu-se jogado em um dos times, em meio a um bando de desconhecidos, reduzido à degradante função de zagueiro (que coisa mais anti-democrática havia sido!), e – pior de tudo – obrigado por cruel tirania a despir-se publicamente de sua camisa, o que o forçava a exibir seu tórax esquelético e pálido de criança subnutrida e pouco acostumada ao Sol, e que longe estava ainda de ver nascerem naquele espaço os peludos signos da virilidade.

   Envergonhadíssimo por estar exibindo ao mundo toda sua fraqueza, sua falta de vigor, sua quase ausência de carnes, suas costelas quase expostas, seu brancor semi-cadavérico, Luizinho sentia as fraturas resultantes de seu despencamento do céu de sua própria falsificação de si mesmo. Instantes antes, pela ação das mágicas kitsch que a mente humana com tanta competência sabe utilizar, era na verdade um rapaz muito forte, másculo e selvagem que atormentava as defesas e furava as redes nos estádios lotados. Agora, porém, o que se via era um palito de dente humano, débil corredor, incompetente passador, patético chutador, que se exibia aos risos do mundo, pronto a ser tomado como um dos maiores desastres futebolísticos que os humanos já haviam tido o desprazer de conhecer.

   Os atacantes adversários se furtavam de seus desarmes com uma facilidade que muito feria seu orgulho e faziam uso de dribles que o faziam enrubescer da mais pimentosa vergonha. Gol após gol após gol, todos sofridos, e o time inteiro dos descamisados foi gradativamente se revoltando com a incompetência grotesca daquele zagueiro. E como a caipirada também não simpatizava muito com aquela figura urbanóide e meio alienígena, tão incomum na roça, uma enxurrada de pouco agradáveis exortações à melhoria despencavam sem dó sobre Luizinho: “Vamu jogá bola, porra!”, “Larga de sê mole, caralho!”, “Entra quebrando, seu marica de merda!”, entre outras coisas menos simpáticas que o narrador prefere omitir para não ferir os mais sensíveis.

   Ferido no íntimo de seu ser, Luizinho jurou vingança imediata contra aqueles tolos caipiras que ousavam duvidar de seus talentos futebolísticos. Jurou a si mesmo, com ódio furibundo, que iria esfregar com violência na cara daqueles bostinhas todos sua fenomenal habilidade assim que tivesse uma oportunidade verdadeira; iria partir com a bola dominada, atravessar o campo inteiro, largando pelo caminho uma meia-dúzia de adversários tacados ao chão por seus dribles descomunais, e coroaria o Lance do Século com um tiro certeiro e indefensável dirigido milimetricamente ao lugar onde a coruja dorme, como se diz. Ah, como calaria todas as bocas! Como seria adorado daí em diante! Ah! Ah! E se extasiava por antecipação com seus triunfos imaginários, enquanto o ataque adversário, pouco preocupado em se mostrar compassivo, ampliava ainda mais o placar.

   Quando finalmente viu a bola vindo depositar-se em seus pés, pronta a ser utilizada para seus fins de glória, o garoto tomou fôlego, coragem e sem-vergonhice, e pôs em ação seu plano muito bem arquitetado (e praticamente infalível, segundo suas antecipações racionais) de driblar o time adversário inteiro. Adiantou a bola, dirigindo-se para o território proibido do meio-campo (os outros jogadores horrorizados com tão estúpida decisão), driblou desajeitadamente o primeiro dos adversários, o que julgou ser evidência do início do milagre (apesar de se tratar do pior atleta do time camisado), e, posto em êxtase, gozando já a euforia que logo se concretizaria, pôs-se a driblar o segundo da fila...

   Em um instante, sentiu um baque violento em seu ombro, como se tivesse sido atropelado por um caminhão, ao mesmo tempo que seus pés eram ceifados pela foice da morte do adversário. Sem possibilidade de volta, Luizinho viu-se decolando do chão, atraído irresistivelmente pela gravidade, a caminho do espatifamento, lançado impiedosamente à grama, à lama, ao sangue...

* * *

   Deitado em cima da maca, molhado por abundantes lágrimas, amarronzado pela terra umedecida colada ao seu uniforme, reprimindo sem muito sucesso seus berros de dor, o garoto era conduzido para a ambulância pelos dois enfermeiros, expondo a todos um osso espatifado no local onde costumava estar sua perna direita. Antes de ser conduzido ao hospital para ser corretamente examinado e engessado, dirigiu um olhar furioso à sua avó, no qual se lia uma intensa reprovação por aquela atitude tão desagradável que ela havia ousado tomar. Que crime inominável esse de interromper um sonho tão doce, um delírio tão deleitoso! E pra quê? Pra dar nessa desgraça, nessa degradante consciência do fracasso, nesses socos violentos recebidos do real, nesses danos dolorosos ao bem-estar fisiológico! Aquele olhar eloquente dizia o que, em palavras, se traduziria mais ou menos em: “Viu no que deu, sua véia de merda!?”

   E a avó, suportando como podia tais olhares odientos, conservou dentro de si a certeza de ter realizado uma boa ação, apesar das aparências. Afinal, pensava ela, não se pode permitir que ninguém se encerre no mundo fabricado por sua imaginação e que se recuse a sair de seu paraíso artificial. O benfeitor, preocupado com a felicidade em longo prazo do portador da moléstia, precisa tomar atitudes drásticas para trazer o evadido de volta àquilo que chamamos de Realidade. A larga experiência de vida da avó já havia lhe ensinado que o sujeito que volta do País das Maravilhas sempre acaba por quebrar alguns ossos contra o muro rijo do real, e tinha que ser assim. Era o pagamento que os tolos recebiam por insistirem em escapulir da inescapulível realidade! E a velha, no que alguns julgaram ser um inaceitável ataque de crueldade e de falta de piedade, não conteve seu veredito: “Bem feito!”

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

< r.f.s.: fiona apple >


FIONA APPLE
"When The Pawn Hits The Conflits He THinks Like A King..."
(1999)

À primeira vista, Fiona Apple parece ser somente mais uma dessas cantoras americanas que estouram nas paradas com um hit, são colocadas debaixo dos holofotes da imprensa por uns meses e são logo despejadas sem compaixão no moedor do esquecimento. Processo semelhante ocorre frequentemente com uma série de garotas, normalmente mais dotadas de qualidades sensuais do que de verdadeiros talento descomunais, diga-se de passagem, que gozam de uma popularidade volátil e que sofrem desaparição rápida. Lembram da Meredith Brooks (“Bitch”), da Natalie Imbruglia (“Torn”), da Joan Osbourne (“One Of Us”), da Jewel (“...”)? Todas elas cravaram um hit pegajoso nas rádios, brilharam por alguns instantes no firmamento das semi-pop-stars e logo deslizaram pra longe das vistas de todos, num piscar de olhos, quando a amnésia coletiva induzida pela indústria cultural se apossou de nós...

O fato é que lá em 1996, após a explosão do fenômeno Alanis Morissete e os milhões e milhões de cópias vendidas por Jagged Little Pill, primeiro disco da canadense, as grandes gravadoras estavam à caça de novas cantoras "confessionais e adultas" para seu rol de artistas potencialmente lucrativas. Quando o mainstream foi tomado de assalto por uma Fiona Apple de 19 anos, ela apareceu aos olhos de muitos como mais uma one hit wonder pronta a ser rapidamente descartada. Puxado pelo mega-hit “Criminal”, estrondoso sucesso na MTV americana, o disco de estréia de Fiona, Tidal (1996), subiu como um foguete pro topo da parada da Billboard e vendeu mais de três milhões de cópias só nos EUA.

A lei da indústria cultural, como se sabe, é fazer com que o público esqueça rapidamente os artistas da moda para que venham os próximos na fila dos 15 minutos de fama... Fiona Apple parece ter sofrido um pouco com esse processo: passado seu período de pop-star, seus discos meio que pararam de ser comentados e ouvidos... Injustiça tremenda. Eu aqui, fã declarado da mocinha, percebo tanto talento transbordante nos dois álbuns que Fiona lançou até hoje que acho que já é tempo de retirá-la da gosma amnésica em que ela parece engasgada há tempos. Tidal e When The Pawn..., seus dois discos, certamente não merecem ser deixados pra trás como efêmeros fenômenos pop que, após seu fugaz período de cintilação, hoje não tem mais nenhum interesse. Não, esses discos não foram somente passageiros rápidos no avião do hype; vieram pra ficar. Mais ainda (guenta papa-pauzice braba agora): essas duas pequenas pérolas têm qualidades suficientes pra que possam ser ouvidos daqui a 10 ou 15 anos sem que tenham perdido quase nada de seu vigor e interesse. Fiona Apple, além de ter uma voz abençoada, é uma compositora com o dom da perenidade, uma poetisa bem acima da média, uma artista genuína que parece realmente fazer música com suas próprias entranhas. Vejo ela como uma Sylvia Plath ou uma Clarice Lispector da música pop. Um óasis miraculoso no deserto estéril do pop. LER TUDO!

< top 100 da metade da década >

Transcorridos já os cinco primeiros anos desta década nossa, que não sei ao certo como será chamada (os anos ZERO?), a PITCHFORK, certamente a mais trimmassa das revistas eletrônicas de música que há na rede, publica seu TOP 100 ÁLBUNS da primeira metade dos anos 00. Soulseek em mãos! O pódio ficou assim:

020: The Books
The Lemon of Pink
[Tomlab; 2003]

019: Ghostface Killah
Supreme Clientele
[Sony; 2001]

018: Devendra Banhart
Rejoicing in the Hands
[Young God; 2004]

017: Boredoms
Vision Creation Newsun
[Birdman; 2001]

016: The Strokes
Is This It
[RCA; 2001]

15: Dizzee Rascal
Boy in Da Corner
[XL; 2003]

014: Spoon
Kill the Moonlight
[Merge; 2002]

013: Madvillain
Madvillainy
[Stones Throw; 2004]

012: Daft Punk
Discovery
[Virgin; 2001]

011: Wilco
Yankee Hotel Foxtrot
[Nonesuch; 2002]

010: The Streets
Original Pirate Material
[Vice; 2002]

009: Animal Collective
Sung Tongs
[FatCat; 2004]

008: The White Stripes
White Blood Cells
[V2; 2001]

007: Modest Mouse
The Moon & Antarctica
[Sony; 2000]

006: Sigur Rós
Ágætis Byrjun
[Smekkleysa; 2000]

005: The Avalanches
Since I Left You
[Modular; 2000]

004: OutKast
Stankonia
[LaFace; 2000]

003: Interpol
Turn on the Bright Lights
[Matador; 2002]

002: Jay-Z
The Blueprint
[Roc-A-Fella; 2001]

001: Radiohead
Kid A
[Capitol; 2000]

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ninguém perguntou, mas...
se eu tivesse que fazer a minha, ficaria mais ou menos assim:

01. SLEATER-KINNEY - One Beat
02. JOHN FRUSCIANTE - Shadows Collide With People
03. WILCO - Yankee Hotel Foxtrot
04. SLEATER-KINNEY - All Hands on The Bad One
05. LOS HERMANOS - Bloco do Eu Sozinho
06. STROKES - Is This It?
07. WHITE STRIPES - White Blood Cells
08. DISTILLERS - Sing Sing Death House
09. BEULAH - Yoko
10. AVALANCHES - Since I Left You
11. FUGAZI - The Argument
12. CARINA ROUND - The Disconnection
13. JOHN FRUSCIANTE - The Will To Death
14. RADIOHEAD - Kid A
15. AIMEE MANN - Bachelor No 2
16. MUNDO LIVRE S/A - Por Pouco
17. DELGADOS - The Great Eastern
18. DAVID BYRNE - Grown Backwards
19. WADO - Manifesto da Arte Periférica
20. INTERPOL - Turn On The Bright Lights

sábado, 12 de fevereiro de 2005

< a morte está viva. >


(o texto que se segue é uma egotrip, uma sessão QUERIDO DIÁRIO ou um confessionário sentimental, pouco importa o rótulo, que eu escrevi no fim do ano passado, logo depois que minha vó Enid morreu (“de morte morrida”, como se diz...). Não estava muito afim de tornar isso público, e dei uma boa hesitada antes de me decidir pelo sim, mas enfim tomei coragem e ei-lo aí para que os 5 ou 6 leitores desse blog (vejam que hoje acordei otimista!) possam se deliciar com os rebentos da minha personalidade mórbida e das minhas propensões soturnas... Pra ser franco, a idéia da morte pra mim sempre foi uma espécie de obssessão, uma fonte inesgotável de terror, como que um buraco negro que suga todo o sentido da vida... Quer dizer que vivemos e fazemos tudo o que fazemos só pra depois virar ração pra vermes? Tudo isso pra acabar apodrecendo debaixo da terra? Tudo em vão!? Enfim, a idéia da morte sempre foi algo de extremamente problemático, especialmente pois eu não consigo aceitar as respostas fáceis e convenientes que os homens inventaram e depois chamaram de Verdades Absolutas da Religião... E escrever sempre foi pra mim uma tentativa de resolver as fodições da vida - só escrevo, na verdade, porque a vida é fodida, ou assim me parece, e porque, claro, não sou competente o bastante para me comunicar diretamente com os outros sobre muitas coisas. Como falar sobre a morte com os outros, aliás? A morte parece ser o verdadeiro ASSUNTO TABU que os homens em geral se impedem de visitar; tudo se passa como se houvesse um imenso pacto de silêncio em redor da morte, com todos fazendo todos os esforços possíveis para ganhar o sagrado direito de esquecer e de ignorar... Quem queira se levantar e lembrar que todos nós vamos morrer e apodrecer e virar alimento para vermes e formigas é quase sempre considerado como uma pessoa inconveniente, ou até mesmo como alguém dotado de um temperamento sádico, adorador de torturas psíquicas. Concordo fácil com o Becker quando ele vem com aquele papo de que “a verdadeira repressão fundamental não é a da sexualidade, mas sim a da consciência da mortalidade” e de que “é sobre a repressão da consciência da mortalidade que a civilização inteira se constrói...”. Todos insistem em “andar de costas para o poente”, como diz o Rubem Alves. Mas cedo ou tarde, é inevitável, vai vir nos visitar a monstrenga negra, munida de uma foice, para nos decepar a vida, a nossa e a daqueles que amamos, e é sempre preferível lidar com o problema de frente do que fugir dele, ou fingir que não existe... Enfim, a vida está cheia de fodições, e pra lidar com elas eu preciso escrever esses textos de bosta, inundados de melancolia e que não tem solução nenhuma. That’s the way i get by. E, além do mais, reivindico meu sagrado direito à infelicidade! É horrível viver sob um regime ditatorial que exige sorrisos intermitentes e alegrias constantes, ou conviver com pessoas que sempre exigem que a gente vista uma máscara sorridente e sempre esconda as tristezas... “Não consigo ser alegre o tempo inteiro”, como Wander, e nem quero ser, e nem quero fingir que sou... Às vezes parece uma imensa felicidade poder ser infeliz em paz.)


“A Primeira Morte”


Quando observo que tudo quanto cresce
Desfruta a perfeição de um só momento,
Que neste palco imenso se obedece
A secreta influição do firmamento;
Quando percebo que ao homem, como à planta,
Esmaga o mesmo céu que lhe deu glória,
Que se ergue em seiva e, no ápice, aquebranta
E um dia enfim se apaga da memória:
Esse conceito da inconstante sina
Mais jovem faz-te ao meu olhar agora,
Quando o Tempo se alia com a Ruína
Para tornar em noite a tua aurora.
E crua guerra contra o Tempo enfrento,
Pois tudo que te toma eu te acrescento.

WILLIAM SHAKESPEARE

O mais insuportável de tudo é ter descoberto o quão suportável foi. Passar por essa experiência aceitando-a quase inteiramente, sem lágrimas convulsivas, sem transes de sofrimento, como um pequeno acontecimento que pouco estrago faz e que permite seguir em frente com a vida, como se pouco ou nada tivesse acontecido... Pior que chorar pela morte de um ser querido será talvez não conseguir retirar de dentro de si as águas da compaixão? Saber lá no fundo da alma que as lágrimas só viriam se fossem forçadas, e que isso não passaria de um sentimento simulado, não é mais degradante do que ter a glória de proclamar-se sensível à decadência do outro? Insuportável como tudo isso é suportável!

Alguém já chegou a se referir ironicamente às redações que os alunos colegiais sempre estão fazendo sobre a morte de suas vovós: diz-se que é tema que costuma sempre sensibilizar o professor, que, simpatizando com a intenção, mesmo na fraqueza da expressão, acaba sempre por dar notas altas àqueles que são capazes de revelar seus sentimentos íntimos frente ao fim. Vejo nisso mais do que cálculo interesseiro. Escreve-se sobre a morte da vovó porque a situação obriga, apela, exige: em uma palavra, pois é problemática. E escrever por vezes é resolver o problema: é livrar-se do peso através da confissão, é tornar mais clara a massa de sentimentos internos, muitas vezes extremamente vaga, através da frieza dos conceitos, é fazer o insignificante real passar através do filtro do sentido...

A situação obriga porque, pra quase todo mundo, a morte de uma avó ou avô representa o primeiro contato verdadeiro com a morte. Antes a morte era um conhecimento quase que abstrato, uma certeza racional bastante vaga; mas não tinha havido ainda o impacto emocional capaz de gravar em fogo essa verdade na mente. Quando morre um avó ou uma avó, quase sempre se trata do primeiro ser pelo qual nos preocupamos, com quem fomos íntimos, que desaparece completamente da face da Terra e que, ao fazê-lo, nos revela uma evidência inegável sobre nossa própria vida que talvez preferíssemos continuar ignorando. É a primeira morte. Não em sentido literal, óbvio, pois só se morre uma vez (até onde sei), mas em sentido figurado: a primeira morte que nos faz tremer nas bases, que nos dá calafrios na espinha, que nos dilacera a carne. Ou que supostamente deveria.

Pois os outros não morrem de verdade. Quantas vezes não permanecemos impassíveis frente à televisão que vomita aos borbotões os assassinatos, as chacinas, as guerras, os genocídios? Quantos milhares de mortes não chegam ao nosso conhecimento sem que uma única nuvem negra venha mudar o tempo no céu de nossa mente? Os outros não morrem de verdade, ou não nos importamos que morram. Saber que seis milhões de judeus foram assassinados não é tão doloroso assim quanto receber, num dia qualquer, sem qualquer previsão, um telefonema onde se ouve uma voz incerta e medrosa, na qual se lê o receio de ferir, a triste impossibilidade de fugir à apunhalada, soltando a bomba: “Morreu sua mãe”, “Morreu sua avó”, “Morreu seu irmão”... A tragédia subjetiva disparada pela morte de uma pessoa é capaz de ser enormemente superior àquela outra causada pelo conhecimento de um genocídio. A morte de anônimos e desconhecidos não nos abala muito. Talvez não possamos reconhecer no destino deles nenhum reflexo do nosso. Mas quando se trata de uma pessoa com quem convivemos, com quem pudemos conversar, a quem pudemos tocar, cheirar, abraçar, olhar, a coisa muda. Descobrimos então que era verdade o que diziam: as pessoas morrem, desaparecem, apodrecem, são engolidas pela terra, esquecidas pelos vivos, que vivos ficarão não por muito tempo. Sentimos os tremores nos ossos com a revelação da evidência, às vezes os olhos não resistem, começam a chover. Mas por quem? Pelo morto ou por nós mesmos? Talvez nos ponhamos a chorar pois o morto é um espelho onde se reflete com um brilho demasiado ofuscante o nosso próprio destino. O morto: imagem de nosso futuro.

E em mim algo como um sentimento de culpa por não ter conseguido sofrer o suficiente. Terei me tornado indiferente? Terei aceitado DEMAIS? Não teria sido muito mais virtuoso, muito mais CORRETO, ter conseguido me rebelar furiosamente contra o Absurdo? Óbvio que não se tratou de nenhuma surpresa, nenhum choque repentino, nenhum tijolo despencado dos ceús sobre minha cabeça num repente. Minha vó ficou longos meses indo e voltando de hospitais, entrando e saindo da mesa de operação, oscilando como um pêndulo entre a existência e o nada, resistindo como podia aos puxões que a Morte lhe dava tentando arrastá-la para o abismo... É incrível como a vida resiste! Mas todos sabemos que é uma resistência incapaz de vitória: trata-se somente de adiar o momento da derrota.

De qualquer maneira, eu já estava de sobreaviso: vovó estava morrendo, não havia nada a fazer salvo chorar, ou aceitar, ou se rebelar... Nada de chocante, nada de inesperado, então, receber um dia uma ligação de casa onde ouço a confirmação: “sua avó morreu”. E em mim algo como um sentimento de culpa pela baixíssima intensidade do transe. Nenhuma pontada violenta no coração? Nenhum inundamento de angústia? Nenhuma tempestade de lágrimas? Nenhum xingamento dirigido aos Céus, à Vida, ao Criador? Não consegui entrar em grandes dores. Nem pude possuir a glória de ter conseguido ser, por alguns instantes, um personagem trágico em rebeldia metafísica. Aceitei fácil demais que a morte de vovó era um acontecimento natural. Vovó morreu, e é isso que as avós fazem: elas morrem. Nada nisso de anormal.

É absolutamente natural que os velhos morram - é o que se diz. É algo de que estamos conscientes desde muito cedo na vida. Algo absolutamente normal... mas não consigo acreditar. Como pode ser normal algo desse tipo? Ter nascido, ter crescido, ter tentado amar, ter conhecido, ter vivido, para no fim de tudo apodrecer, ser enfiado num caixão debaixo da terra, lacrado do mundo para que o fedor da putrefação não incomode os narizes dos vivos, ser devorado por hordas de micróbios, vermes e bactérias, virar um esqueleto enlatado eternamente dentro dum retângulo de madeira... Absolutamente normal! Me pergunto como aquilo que chamamos de “pessoas normais” conseguem viver com tanta despreocupação e jovialidade quando tal destinação nos é prometida! Santo esquecimento, sagrada superficialidade...! Que seria da maioria de nós se não pudéssemos ser cegos?

E não é só a morte como nadificação que horroriza, mas o processo degradante que conduz o vivente, ainda em vida, para esse hórrido desfacelamento. Minha vó, uma mulher que foi até bastante inteligente, que era professora de português, muito bonita na mocidade, a julgar pelas fotinhas... reduzida a um amontoado de carne velha, pintada feiamente por rugas e veias quase saltadas, com a pele repuxada e retorcida, as pernas trêmulas, a respiração difícil. E o estado mental, então... a incapacidade quase completa de articular palavras, de se comunicar com os outros, de pensar corretamente, e, depois, num estado mais avançado da doença, a total decadência num estado de infantilismo e de letargia, de corrupção da memória, de esmigalhamento do vivido... Segundo os relatos da minha mãe, que passou bastante tempo no hospital nos dias derradeiros, minha vó nem conseguia mais reconhecer as pessoas com quem viveu por décadas e décadas; não conseguia mais responder às mais simples das ordens (levante a perna, vire-se de lado...); se esqueceu da função dos objetos mais usuais da vida cotidiana (fica parada com uma colher e um prato na mão, sem saber o que deve fazer com eles...). Sua consciência, quando o fim se aproximava, era apenas uma chamazinha minúscula que ia lentamente se apagando, se consumindo, sem volta.

Essa velhice extrema me deixa horrorizado. Os esforços médicos que se faz pra tentar estender uma vida o máximo possível me parecem os mais absurdos... Pra quê tantas operações, tanto soro, tanto remédio, se o caminho da decadência é inevitável? Essa situação me fez pensar seriamente, pela primeira vez na vida, na questão da eutanásia. Muito provavelmente, minha vó não poderia ter aceito uma eutanásia por ter sido cristã muito ortodoxa, que provavelmente achava que apressar as coisas seria um crime contra Deus; deve-se deixar que o Senhor nos leve quando ele bem entender etc. e tal. Obviamente, nesse caso, a obrigação de todo mundo, dos parentes, dos médicos, das enfermeiras, é respeitar o desejo do doente e fazer todo o possível para prolongar sua vida até o máximo ponto possível (de qualquer modo, uma eutanásia não-consentida é somente um eufemismo para assassinato...). Mas não vejo porque deveríamos proibir uma pessoa de pedir por sua morte. O suicídio é um direito. Um direito ainda mais inegável para alguém no corredor da morte (mas quem é que não está no corredor da morte?). Uma pessoa que desce a ladeira, que não consegue mais produzir nada para a sociedade nem materialmente nem psiquicamente, que somente consome recursos e trabalho em operações que nunca poderiam salvá-la, deve ter o direito de ir logo de encontro à morte, penso eu. Pra que aguentar toda a dor, se ela não pode levar à saúde? Por que prolongar o sofrimento dos parentes e dos amigos com o espetáculo cruel, lento e degradante da decadência física? Por que não morrer lucidamente, num momento que se escolheu, como quem entra conscientemente num trem que nunca voltará? Incrível como a vida resiste.

Como estou me sentindo, exatamente, frente a essa primeira situação de morte concreta de um ente próximo a mim? Não posso dizer que minha subjetividade esteja toda revolta ou que minha mente tenha entrado em pane. Na verdade, estou até mesmo me forçando a ficar taciturno e melancólico, a entrar num estado de luto, talvez por temer que eu, espontaneamente, não seria capaz de sofrer o suficiente. Qualquer sorriso, qualquer alegria barata, me parece nesses dias como um crime. Um crime que todos nós cometemos a todo momento, rindo, sorrindo e cantando enquanto multidões ao redor do mundo agonizam. Mas – cá estamos de novo - são muito poucas as mortes que realmente nos dizem respeito, que realmente nos fazem sentir algo. Seis milhões de judeus assassinados: algo que lemos nos livros de história, entre um bocejo e um cuidadoso desejo egoísta de registrar um fato importante para depois nos gabarmos de nosso conhecimento... ou passarmos no vestibular. Um velho professor de história sempre repetia uma frase que nunca esqueci: “A morte de um homem é uma tragédia; a morte de milhares é uma estatística...”.

Se nem a morte da minha avó consegue me pôr em pânico, se nem consigo chorar convulsamente por isso, o que dizer dos milhões em outros continentes, em outros tempos? Mas essas lágrimas que se derramam sobre as tumbas dos mortos, esse inundamento que deixa um rastro de água nos cortejos fúnebres, são derramadas mesmo pelo morto, pela dor de sua ausência? Suspeito que choramos muito mais por nós mesmos do que pelo outro. Berra no fundo de nosso ser a voz do narcisismo: a única morte terrível e abominável é a nossa própria... Além do que, nunca vivemos a morte do outro. Como seria possível? Só podemos imaginar - e sempre tão limitadamente... - o que o outro está passando. Mas cada um morre só, como vive só, como ama só...

E também outra razão para os tormentos, talvez: se foi tão pouco complicado, tão pouco terrível suportar essa vida que se esvaiu, é bem possível que, para os outros, também a minha morte seja algo de bastante suportável... Às vezes me pergunto se grande parte dos nossos atos não tem como finalidade conquistar a certeza de que há pessoas que gostam de nós o suficiente para que sejam capazes de chorar em nosso funeral sem a ajuda de facas e cebolas. Pois é uma triste coisa viver quando se suspeita que nossa morte não fará nenhuma diferença, nenhuma falta...

Vovó morreu. Vou seguindo com minha vida. Morrerei eu, as pessoas seguirão com suas vidas. É assim que é. Somos todos pessoas, e é isso que as pessoas fazem: elas morrem.

(Bauru, Novembro de 2004.)

domingo, 6 de fevereiro de 2005

< trechos de VANEIGEM >



--- “A ARTE DE VIVER PARA AS NOVAS GERAÇÕES”, --
de RAOUL VANEIGEM [ed. Conrad, coleção BADERNA]

(Num tô com a paciência necessária pra resenhar direito, mas largo aí embaixo alguns trechos desse ótimo livrinho baderneiro do Vaneigem. Achei esse um dos melhores livro da coleção BADERNA da Conrad. É pedrada pra todo lado contra a sociedade de consumo, o trabalho forçado e a vida gasta inteira na preocupação com a sobrevivência, mas tudo filosoficamente embasado e sem essa de "rebeldia sem causa" (causas para rebeldia há muitas...). O estilão de escrever do cara, bem nietzschiano, inspira e empolga. Vaneigem, se não me engano, foi um dos líderes estudantis da revolta francesa de maio de 1968 e uma das cabeças principais do movimento Situacionista junto com o Guy Debord. Ó só):

“Com a vinda de Cristo, nos libertamos não do mal de sofrer, mas do mal de sofrer inutilmente”, escreve muito justamente o padre Charles, da Companhia de Jesus. O problema do poder nunca foi o de se suprimir, mas o de se justificar a fim de não oprimir “inutilmente”. Acasalando o sofrimento com o homem, sob pretexto da graça divina ou da lei natural, o cristianismo, essa terapêutica doentia, desferiu o seu golde de mestre. Do príncipe ao manager, do padre ao especialista, do pai conselheiro ao psicólogo, é sempre o princípio do sofrimento útil e do sacrifício consentido que constitui a base mais sólida do poder hierárquico. Seja qual for a razão invocada – um mundo melhor, o paraíso, a sociedade socialista ou um futuro encantador -, o sofrimento aceito é sempre cristão, sempre.” (52-53)

* * * * *

“Não é tanto a morte que aterroriza os homens do século XX, mas sim a ausência de vida verdadeira. Todos esses gestos mortos, mecanizados, especializados, roubando uma parcela da vida cem vezes, mil vezes por dia, até o esgotamento da mente e do corpo, até esse fim que já não é o fim da vida, mas uma ausência que chegou à saturação: é isso que oferece o risco de proporcionar um charme aos apocalipses, às mortes cruéis, totais e limpas. Auschwitz e Hiroshima são na verdade ‘a consolação do niilismo’. Basta que a impotência para vencer o sofrimento se torne um sentimento coletivo, e a demanda por sofrimento e morte pode se apoderar repentinamente de uma comunidade inteira. Conscientemente ou não, a maior parte das pessoas prefere morrer a sentir permanentemente a insatisfação de viver.”
(54)


* * * * *

“Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir é sempre antagônica ao desejo de criar. O que sobra de centelha humana, de criatividade possível, em um ser arrancado do sono às 6 da manhã, sacudido nos trens suburbanos, ensurdecido pelo barulho das máquinas, lixiviado e vaporizado pelas cadências, pelos gestos sem sentido, pelo controle estatístico, e empurrado no fim do dia para os saguões das estações (essas catedrais de partida para o inferno dos dias de semana e do fútil paraíso dos weekends), quando a multidão comunga na fadiga e no embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, os ciclos de 24 horas sucedem-se com seu mesmo estilhaçamento, como balas acertando uma janela: repetição mecânica, o tempo-que-é-dinheiro, submissão aos chefes, tédio, fadiga. Da aniquilação da energia da juventude à ferida aberta da velhice, a vida é estilhaçada sob os golpes do trabalho forçado. Nunca uma civilização chegou a um tal grau de desprezo pela vida. Afogada no desgosto, nunca uma geração sentiu uma tal raiva de viver. Aqueles que são lentamente assassinados nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, pegam as armas e inventam uma nova poesia. Já está se formando a frente contra o trabalho forçado; os seus gestos de recusa estão moldando a consciência do futuro. (...) De agora em diante as pessoas querem viver, e não apenas sobreviver.” (60-61)


* * * * *

“À medida que a automação e a cibernética nos permitem prever a substituição em massa dos trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer puramente aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva dos seus decretos televisionados.” (64)

* * * * *

“...a criatividade é por essência revolucionária.” (124)

* * * * *

“O enterro prematuro é a lei do consumismo. A imperfeição é a pré-condição de uma obsolescência programada.” (124)

* * * * *

“Tudo aquilo que você possui, por sua vez, o possui.” (167)

* * * * *

REVEJAM o “CLUBE DA LUTA” com isso em mente: “A satisfação do consumidor não pode nem deve nunca ser alcançada. A lógica do consumo exige que se criem novas necessidades, mas é também verdade que a acumulação dessas necessidades falsas aumenta o mal-estar do homem confinado com cada vez mais dificuldade ao estado único de consumidor. Além disso, a riqueza em bens de consumo empobrece a vida autêntica [quer discurso mais Tyler Durden que esse?]. Empobrece-a de duas formas: primeiramente, dando-lhe a contrapartida em coisas; depois, porque é impossível, mesmo o querendo, apegar-se a essas coisas, já que é necessário consumi-las, ou seja, destruí-las. Disso provêm uma ausência de vida cada vez mais exigente, uma insatisfação que devora a si própria.


Na ótica orientada do consumidor, na visão condicionada, a ausência de vida aparece como insuficiência no consumo de poder e insuficiência de autoconsumo a serviço do poder. À ausência de verdadeira vida é oferecido o paliativo de uma morte a prestações. Um mundo que condena à morte sem sangue é na verdade obrigado a propagar o gosto de sangue. Onde reina o mal da sobrevivência, o desejo de viver espontaneamente pega nas mãos as armas da morte: assassinatos gratuitos, sadismo etc. A paixão destruída renasce na paixão de destruir.”
(172)


(valeu aê, Renóqui, pelo empréstimo.)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2005

< especial KILL BILL! >

É o seguinte: tô tornando disponível de novo a velha resenha watchtoweriana de Kill Bill vol. 1, com alguns pequenos retoques e correções, e depois vem um texto escrito após a assistência de Kill Bill vol. 2 que não é tanto uma resenha sobre o mesmo mas sim alguns comentários jogados a respeito do Kill Bill Completo e das relações entre o 1 e o 2. Os textos, apesar do intervalo de um ano entre a escrevência de um e de outro, são um pouco repetitivos, mas tô com preguiça demais para eliminar do segundo texto o que já foi dito no primeiro. Enfim, eis aí algumas palavras sobre o épico cyber-faroeste de ultra-violência super-heróica de Quentin Tarantino:

KILL BILL 1

Tarantino, conta a lenda, era um trabalhador de video-locadora que preenchia seu tempo assistindo a centenas de filmes dos mais diversos estilos, épocas e padrões, até decidir se tornar cineasta. No começo dos anos 90, surgiu com dois clássicos da subversão cinematográfica moderna, um par de thrillers sombrios repletos de explosões de violência gratuita em tragicomédias suburbanas situadas numa América encharcada de criminosos, sangue e vísceras. Pulp Fiction (1994) e Cães de Aluguel (1992) o colocaram no imaginário coletivo como um dos mais comentados cineastas dos anos 90, para o bem ou para o mal. Cultuado por muitos como um grande iconoclasta e um dos defensores do cinema alternativo, rechaçado por outros como um sensacionalista que só sabe fazer o sangue jorrar na tela, Quentin, amado ou odiado, deixou marcada com fogo sua passagem pela história do cinema. Injetou novo gás nos filmes de gângster, ressuscitou velhos filmes negros B, espalhou por suas obras uma série de referências pop-culturais e abriu caminho para uma série de seguidores (Guy Ritchie, de Snatch, o mais famoso deles). A crítica especializada, apesar da polêmica, foi bastante favorável: Pulp Fiction, por exemplo, foi indicado a 7 Oscars e venceu a Palma de Ouro em Cannes. Quentin é, muito provavelmente, o mais influente cineasta da década de 90. QUERO LER TUDO!


KILL BILL 2

"Quentin, esse junkie de cinema B e de música subterrânea, que se orgulha de idolatrar o que a "crítica séria" chama de "lixo cultural", parece ter feito um filme de fã em que se põe a imitar os filmes de que gosta (os faroestes velhos, desde os mais clichês aos mais clássicos do John Ford ou do Sergio Leone; os filmes orientais de artes marciais e espadas samurais mágicas; a porra do Karatê Kid!) mesmo sabendo que eles, no fundo, não devem ser levados muito a sério. Kill Bill parece manter sempre o espectro de um sorriso irônico flutuando atrás de si, como se Quentin piscasse para o espectador e dissesse: isso é trash! como é que gostamos dessa porcaria?

Kill Bill (principalmente o vol. 1) chega perto de ser um daqueles thrashíssimos filmes de ação em que o Schauzenéga ou o Istaloni se livram sozinhos de exércitos inteiros, saindo imaculados mesmo que alguns milhares de balas de metralhadora e algumas dezenas de granadas tivessem sido atiradas contra eles. Ou daqueles fubengosos seriados televisivos japoneses (lembram do Changeman, de Jaspion, de Jiraya?) onde os heróis espancam com facilidade os monstrenguinhos retardados numa luta que é só aquecimento para a batalha principal. Ou ainda dos Karatês Kids da vida em que um mestre de olhos puxados e disciplina rígida irá iniciar o herói nas artes marciais... Quem não gostou dessas porcarias na infância? E quem é que, como Quentin, não sente um certo prazer irônico em rememorar o nosso terrível mau-gosto do passado?" QUERO LER TUDO!

< mais um do Iasi >


AULA DE VÔO

O conhecimento
caminha lento feito lagarta.
Primeiro não sabe que sabe
e voraz contenta-se com o cotidiano orvalho
deixado nas folhas vividas das manhãs.

Depois pensa que sabe
e se fecha em si mesmo:
faz muralhas,
cava trincheiras,
ergue barricadas.
Defendendo o que pensa saber
levanta certezas na forma de muro,
orgulhando-se de seu casulo.

Até que maduro
explode em vôos
rindo do tempo que imaginava saber
ou guardava preso o que sabia.
Voa alto sua ousadia
reconhecendo o suor dos séculos
no orvalho de cada dia.

Mesmo o vôo mais belo
descobre um dia não ser eterno.
É tempo de acasalar:
voltar à terra com seus ovos
à espera de novas e prosaicas lagartas.

O conhecimento é assim:
ri de si mesmo
e de suas certezas.

É meta da forma
metamorfose
movimento
fluir do tempo
que tanto cria como arrasa

a nos mostrar que para o vôo
é preciso tanto o casulo
como a asa.

(em: MAURO IASI, "Aula de Vôo")