quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005

" O   F U T E B O L I S T A   I M A G I N Á R I O "
               (é tudo autobiográfico e é tudo inventado.)


   - Ai, meu Jesus, o menino tá doidinho! – foi o que a avó deixou escapulir, com cara de medo do futuro, enquanto observava o reinício da temporada de sandices de seu querido netinho, em quem tantas esperanças depositava de ver transformado num homem de razão rígida e cientificismo sóbrio.

   Sem que a avó tivesse tempo de ensaiar censuras mais firmes ao comportamento desarrazoado do pirralho, ele tinha entrado correndo pela casa, escalado as prateleiras do armário como quem sobe uma escada de bombeiro, agarrado a grande bola de seis gomos que repousava escondida no que se acreditava ser território inacessível para mãos infantis, e saído correndo, quintal afora, zigue-zagueando pelas árvores do pomar, em direção ao campinho de futebol. Nada há nisso de precisamente anormal ou preocupante, bem vê o leitor atento, que não deve estar vendo com nitidez porque se deveria temer qualquer tipo de distúrbio mental em comportamento tão sadio quanto este. Uma criança, na posse do esplendor de suas capacidades físicas, voa para os divertimentos desportivos em seu primeiro dia de férias: que há de tão azucrinante nisso? O juízo da vovó, talvez distorcido pela raiva sentida por não ter sido justamente cumprimentada pelo neto, parece um tanto equivocado ao insistir na sugestão de birutices supostamente possuídas pelo filho de sua filha. Que maldade esta de vituperar contra a criança só porque foi correndo jogar bola com seus amiguinhos!

   O problema é que há algo de verdadeiramente inusitado no quadro que a avó está a observar da sacada, donde ao longe pode divisar, quase nos limites da propriedade, o verde retângulo graminado usualmente utilizado para fins futebolísticos. Pode-se sim ver chutes, dribles, passes, porradas na trave, bolas na rede, gritos de gol e empolgadas comemorações. Mas o que se nota muito facilmente - e agora começamos a compreender que a avó não estava tão louca assim ao sugerir que o neto estava louco - é que no campo não há mais que um jogador solitário.

   Ele conduz a bola, jinga para os lados, pára um instante como se observasse as pernas dum adversário (aliás inexistente), taca-lhe mui sagazmente a bolota por entre as canetas, realiza dribles da vaca sempre muito bem sucedidos, corre o campo todo com a bola em seu controle, desviando-se genialmente dos carrinhos, voadoras e mais sutis tentativas de desarmes, dá chapéus de fazer ruborizar eternamente a vítima, faz embaixadinhas enquanto corre, usa o calcanhar para fazer passes a “companheiros” que estão às suas costas (e todos se espantam tão gigantescamete com a precisão deles que julgam-no possuidor de um terceiro olho, provavelmente escondido em sua nuca)... Por vezes, ao perceber a defesa adversária muito bem constituída, tem a inteligência de arriscar um tiro de longa distância, que sempre tem resultados bastante aceitáveis. Se a bola porventura não penetra no domínio de êxtase que está para além dos limites das traves, a defesa do goleiro é que é majestosa, ou então o chute é que resvala no poste e foge pela linha de fundo. Porém, sem exceção, o lance enche a torcida de exultante emoção. Todos se levantam, e junto o rumor inebriante das palmas, dos berros, dos assobios.

   O grande herói do jogo, ovacionado com estrondo pela multidão ensandecida, não é outro senão o garoto, transformado em adulto viril, fenômeno desportivo que preenche as páginas dos jornais da nação, descrito com expressões das mais suculentas e lisonjeiras conhecidas pelos comentaristas. Nunca antes na história conhecida dos Esportes, nem mesmo nas velhas Olimpíadas gregas, nem em nenhum outro tempo da Era Cristã, nem mesmo com Pelé, Zico ou Platini, nascera atleta que a ele se assemelhasse. Um inominável talento na arte de controlar a bola com os pés e fuzilar os goleiros com chutes precisos e indefensáveis... generoso o bastante para honrar seus colegas de time com o tesouro de seus passes (sempre milimetricamente calculados)... corajoso o bastante para encarar sozinho, com audácia leonina, toda a defesa adversária... móvel e ágil o suficiente para ser capaz de jogar ao mesmo tempo como centro-avante, volante, meio-campista e quarto-zagueiro... Em suma, nada menos que o exemplar supremo do Homem Perfeito.

   Mas convenhamos que, assim que abandonamos essa capacidade óptica de vermos o mundo através dos olhos do neto, e nos voltamos para aquilo que a avó está a observar, é necessário confessar que não se trata de um espetáculo lá muito bonito de se ver. A velha tem a sensação de observar um interno de hospício em suas brincadeiras de mentecapto, correndo como besta num campo vazio, desviando-se de adversários inexistentes, chutando a bola num gol desprovido de goleiros, comemorando com ridícula veemência frente a uma platéia que olhos humanos não conseguem ver... O neto chuta uma bola, a avó nota claramente que ela se dirige lentamente para o gol, rastejante, devagar-quase-parando, e passa com calma pela linha branca, no meio do gol, indo depositar-se tranqüilamente no chão, e logo o neto está a correr, braços levantados, sorrisão pintado na cara, berrando para todos os vizinhos ouvirem: “Golaaaaaaaaaaço!!!!!! No ââââââângulo!!!!! Sensacional!!!!” A vó adquire a certeza de que atitudes enérgicas precisam ser tomadas contra esse tipo de distúrbio mental.

   Nos papos com as comadres da vizinhança, a avó torna então explícita sua preocupação com o juízo defeituoso do pequeno, e logo recebe a recomendação muito sábia de não permitir mais que o garoto se entretenha com divertimentos solitários.

   - Tem tanto moleque nessa roça de nosso Senhor! – era o que diziam quase que em uníssono as experimentadas senhoras da região.

   A avó, confiante de que o fim do isolamento do neto seria mudança suficiente para cura-lo de seu transe passageiro, percorre então, em segredo, as chácaras e sítios dos arredores em busca de interessados num bom jogo de bola. O neto, garoto da cidade muito imbuído com os preconceitos da urbanidade, já havia muitas vezes se referido com muito sarcasmo às crianças daquela vizinhança, que reputava como uns “caipirões babacas”, e havia deixado muito claro que não desejava “se misturar” com aquela gente. A avó, porém, não se mostrava desejosa de atender aos pedidos do fedelho, e acreditava-se ainda detentora de suficiente autoridade para impor certas coisas à criança, ainda mais quando se tratava de procedimento tão fundamental para salvaguardar a saúde mental ameaçada do neto.

   Luizinho (pois era esse o nome do neto) se encontrava em meio a seus deliciosos delírios de grandeza quando notou – escandalizado! – a aproximação de meia dúzia de caipirinhas (as pessoas, não as bebidas!), todos mais ou menos de sua idade, devidamente conduzidos ao campinho pela vó. Os garotos, que já haviam sido instruídos a respeito do tipo de atitude que deveriam adotar, chegaram já fazendo a terrível pergunta destroçadora das possibilidades de continuação do sonho do garoto:

   - E aí, meu, vamu fazê timinho?

   E a avó, aproveitando a oportunidade para empurrar suas decisões pela goela do neto, em cujo semblante se desenhava a oposição ferrenha e raivosa à sugestão dos intrusos, disfarçou seu imperativo sob uma forma sutil:

   - Olha, Luizinho, que legal! Fazer timinho!

   Sentindo-se absolutamente incapaz de pronunciar seu repúdio ao projeto da avó frente àquela multidão de garotos, a maioria deles bem mais fortes que ele, o neto se resignou à maldição que o destino lhe havia conferido. Afinal, como iria ele berrar para a velha que odiava os malditos caipiras, ou manifestar seu desejo de se ver livre da presença contaminadora deles, sem ter os ossos moídos de pancada? Como iria expulsa-los de seu campo, quando sabia que a dona de verdade do mesmo é que os havia convidado? Com um ódio secreto fervendo dentro de seu peito, ele observou quieto a invasão do campo futebolístico, as briguinhas estúpidas para decidir os times, os par-ou-ímpares, a decisão quanto a quem seria o time descamisado e qual o vestido, e finalmente viu-se jogado em um dos times, em meio a um bando de desconhecidos, reduzido à degradante função de zagueiro (que coisa mais anti-democrática havia sido!), e – pior de tudo – obrigado por cruel tirania a despir-se publicamente de sua camisa, o que o forçava a exibir seu tórax esquelético e pálido de criança subnutrida e pouco acostumada ao Sol, e que longe estava ainda de ver nascerem naquele espaço os peludos signos da virilidade.

   Envergonhadíssimo por estar exibindo ao mundo toda sua fraqueza, sua falta de vigor, sua quase ausência de carnes, suas costelas quase expostas, seu brancor semi-cadavérico, Luizinho sentia as fraturas resultantes de seu despencamento do céu de sua própria falsificação de si mesmo. Instantes antes, pela ação das mágicas kitsch que a mente humana com tanta competência sabe utilizar, era na verdade um rapaz muito forte, másculo e selvagem que atormentava as defesas e furava as redes nos estádios lotados. Agora, porém, o que se via era um palito de dente humano, débil corredor, incompetente passador, patético chutador, que se exibia aos risos do mundo, pronto a ser tomado como um dos maiores desastres futebolísticos que os humanos já haviam tido o desprazer de conhecer.

   Os atacantes adversários se furtavam de seus desarmes com uma facilidade que muito feria seu orgulho e faziam uso de dribles que o faziam enrubescer da mais pimentosa vergonha. Gol após gol após gol, todos sofridos, e o time inteiro dos descamisados foi gradativamente se revoltando com a incompetência grotesca daquele zagueiro. E como a caipirada também não simpatizava muito com aquela figura urbanóide e meio alienígena, tão incomum na roça, uma enxurrada de pouco agradáveis exortações à melhoria despencavam sem dó sobre Luizinho: “Vamu jogá bola, porra!”, “Larga de sê mole, caralho!”, “Entra quebrando, seu marica de merda!”, entre outras coisas menos simpáticas que o narrador prefere omitir para não ferir os mais sensíveis.

   Ferido no íntimo de seu ser, Luizinho jurou vingança imediata contra aqueles tolos caipiras que ousavam duvidar de seus talentos futebolísticos. Jurou a si mesmo, com ódio furibundo, que iria esfregar com violência na cara daqueles bostinhas todos sua fenomenal habilidade assim que tivesse uma oportunidade verdadeira; iria partir com a bola dominada, atravessar o campo inteiro, largando pelo caminho uma meia-dúzia de adversários tacados ao chão por seus dribles descomunais, e coroaria o Lance do Século com um tiro certeiro e indefensável dirigido milimetricamente ao lugar onde a coruja dorme, como se diz. Ah, como calaria todas as bocas! Como seria adorado daí em diante! Ah! Ah! E se extasiava por antecipação com seus triunfos imaginários, enquanto o ataque adversário, pouco preocupado em se mostrar compassivo, ampliava ainda mais o placar.

   Quando finalmente viu a bola vindo depositar-se em seus pés, pronta a ser utilizada para seus fins de glória, o garoto tomou fôlego, coragem e sem-vergonhice, e pôs em ação seu plano muito bem arquitetado (e praticamente infalível, segundo suas antecipações racionais) de driblar o time adversário inteiro. Adiantou a bola, dirigindo-se para o território proibido do meio-campo (os outros jogadores horrorizados com tão estúpida decisão), driblou desajeitadamente o primeiro dos adversários, o que julgou ser evidência do início do milagre (apesar de se tratar do pior atleta do time camisado), e, posto em êxtase, gozando já a euforia que logo se concretizaria, pôs-se a driblar o segundo da fila...

   Em um instante, sentiu um baque violento em seu ombro, como se tivesse sido atropelado por um caminhão, ao mesmo tempo que seus pés eram ceifados pela foice da morte do adversário. Sem possibilidade de volta, Luizinho viu-se decolando do chão, atraído irresistivelmente pela gravidade, a caminho do espatifamento, lançado impiedosamente à grama, à lama, ao sangue...

* * *

   Deitado em cima da maca, molhado por abundantes lágrimas, amarronzado pela terra umedecida colada ao seu uniforme, reprimindo sem muito sucesso seus berros de dor, o garoto era conduzido para a ambulância pelos dois enfermeiros, expondo a todos um osso espatifado no local onde costumava estar sua perna direita. Antes de ser conduzido ao hospital para ser corretamente examinado e engessado, dirigiu um olhar furioso à sua avó, no qual se lia uma intensa reprovação por aquela atitude tão desagradável que ela havia ousado tomar. Que crime inominável esse de interromper um sonho tão doce, um delírio tão deleitoso! E pra quê? Pra dar nessa desgraça, nessa degradante consciência do fracasso, nesses socos violentos recebidos do real, nesses danos dolorosos ao bem-estar fisiológico! Aquele olhar eloquente dizia o que, em palavras, se traduziria mais ou menos em: “Viu no que deu, sua véia de merda!?”

   E a avó, suportando como podia tais olhares odientos, conservou dentro de si a certeza de ter realizado uma boa ação, apesar das aparências. Afinal, pensava ela, não se pode permitir que ninguém se encerre no mundo fabricado por sua imaginação e que se recuse a sair de seu paraíso artificial. O benfeitor, preocupado com a felicidade em longo prazo do portador da moléstia, precisa tomar atitudes drásticas para trazer o evadido de volta àquilo que chamamos de Realidade. A larga experiência de vida da avó já havia lhe ensinado que o sujeito que volta do País das Maravilhas sempre acaba por quebrar alguns ossos contra o muro rijo do real, e tinha que ser assim. Era o pagamento que os tolos recebiam por insistirem em escapulir da inescapulível realidade! E a velha, no que alguns julgaram ser um inaceitável ataque de crueldade e de falta de piedade, não conteve seu veredito: “Bem feito!”