sábado, 12 de fevereiro de 2005

< a morte está viva. >


(o texto que se segue é uma egotrip, uma sessão QUERIDO DIÁRIO ou um confessionário sentimental, pouco importa o rótulo, que eu escrevi no fim do ano passado, logo depois que minha vó Enid morreu (“de morte morrida”, como se diz...). Não estava muito afim de tornar isso público, e dei uma boa hesitada antes de me decidir pelo sim, mas enfim tomei coragem e ei-lo aí para que os 5 ou 6 leitores desse blog (vejam que hoje acordei otimista!) possam se deliciar com os rebentos da minha personalidade mórbida e das minhas propensões soturnas... Pra ser franco, a idéia da morte pra mim sempre foi uma espécie de obssessão, uma fonte inesgotável de terror, como que um buraco negro que suga todo o sentido da vida... Quer dizer que vivemos e fazemos tudo o que fazemos só pra depois virar ração pra vermes? Tudo isso pra acabar apodrecendo debaixo da terra? Tudo em vão!? Enfim, a idéia da morte sempre foi algo de extremamente problemático, especialmente pois eu não consigo aceitar as respostas fáceis e convenientes que os homens inventaram e depois chamaram de Verdades Absolutas da Religião... E escrever sempre foi pra mim uma tentativa de resolver as fodições da vida - só escrevo, na verdade, porque a vida é fodida, ou assim me parece, e porque, claro, não sou competente o bastante para me comunicar diretamente com os outros sobre muitas coisas. Como falar sobre a morte com os outros, aliás? A morte parece ser o verdadeiro ASSUNTO TABU que os homens em geral se impedem de visitar; tudo se passa como se houvesse um imenso pacto de silêncio em redor da morte, com todos fazendo todos os esforços possíveis para ganhar o sagrado direito de esquecer e de ignorar... Quem queira se levantar e lembrar que todos nós vamos morrer e apodrecer e virar alimento para vermes e formigas é quase sempre considerado como uma pessoa inconveniente, ou até mesmo como alguém dotado de um temperamento sádico, adorador de torturas psíquicas. Concordo fácil com o Becker quando ele vem com aquele papo de que “a verdadeira repressão fundamental não é a da sexualidade, mas sim a da consciência da mortalidade” e de que “é sobre a repressão da consciência da mortalidade que a civilização inteira se constrói...”. Todos insistem em “andar de costas para o poente”, como diz o Rubem Alves. Mas cedo ou tarde, é inevitável, vai vir nos visitar a monstrenga negra, munida de uma foice, para nos decepar a vida, a nossa e a daqueles que amamos, e é sempre preferível lidar com o problema de frente do que fugir dele, ou fingir que não existe... Enfim, a vida está cheia de fodições, e pra lidar com elas eu preciso escrever esses textos de bosta, inundados de melancolia e que não tem solução nenhuma. That’s the way i get by. E, além do mais, reivindico meu sagrado direito à infelicidade! É horrível viver sob um regime ditatorial que exige sorrisos intermitentes e alegrias constantes, ou conviver com pessoas que sempre exigem que a gente vista uma máscara sorridente e sempre esconda as tristezas... “Não consigo ser alegre o tempo inteiro”, como Wander, e nem quero ser, e nem quero fingir que sou... Às vezes parece uma imensa felicidade poder ser infeliz em paz.)


“A Primeira Morte”


Quando observo que tudo quanto cresce
Desfruta a perfeição de um só momento,
Que neste palco imenso se obedece
A secreta influição do firmamento;
Quando percebo que ao homem, como à planta,
Esmaga o mesmo céu que lhe deu glória,
Que se ergue em seiva e, no ápice, aquebranta
E um dia enfim se apaga da memória:
Esse conceito da inconstante sina
Mais jovem faz-te ao meu olhar agora,
Quando o Tempo se alia com a Ruína
Para tornar em noite a tua aurora.
E crua guerra contra o Tempo enfrento,
Pois tudo que te toma eu te acrescento.

WILLIAM SHAKESPEARE

O mais insuportável de tudo é ter descoberto o quão suportável foi. Passar por essa experiência aceitando-a quase inteiramente, sem lágrimas convulsivas, sem transes de sofrimento, como um pequeno acontecimento que pouco estrago faz e que permite seguir em frente com a vida, como se pouco ou nada tivesse acontecido... Pior que chorar pela morte de um ser querido será talvez não conseguir retirar de dentro de si as águas da compaixão? Saber lá no fundo da alma que as lágrimas só viriam se fossem forçadas, e que isso não passaria de um sentimento simulado, não é mais degradante do que ter a glória de proclamar-se sensível à decadência do outro? Insuportável como tudo isso é suportável!

Alguém já chegou a se referir ironicamente às redações que os alunos colegiais sempre estão fazendo sobre a morte de suas vovós: diz-se que é tema que costuma sempre sensibilizar o professor, que, simpatizando com a intenção, mesmo na fraqueza da expressão, acaba sempre por dar notas altas àqueles que são capazes de revelar seus sentimentos íntimos frente ao fim. Vejo nisso mais do que cálculo interesseiro. Escreve-se sobre a morte da vovó porque a situação obriga, apela, exige: em uma palavra, pois é problemática. E escrever por vezes é resolver o problema: é livrar-se do peso através da confissão, é tornar mais clara a massa de sentimentos internos, muitas vezes extremamente vaga, através da frieza dos conceitos, é fazer o insignificante real passar através do filtro do sentido...

A situação obriga porque, pra quase todo mundo, a morte de uma avó ou avô representa o primeiro contato verdadeiro com a morte. Antes a morte era um conhecimento quase que abstrato, uma certeza racional bastante vaga; mas não tinha havido ainda o impacto emocional capaz de gravar em fogo essa verdade na mente. Quando morre um avó ou uma avó, quase sempre se trata do primeiro ser pelo qual nos preocupamos, com quem fomos íntimos, que desaparece completamente da face da Terra e que, ao fazê-lo, nos revela uma evidência inegável sobre nossa própria vida que talvez preferíssemos continuar ignorando. É a primeira morte. Não em sentido literal, óbvio, pois só se morre uma vez (até onde sei), mas em sentido figurado: a primeira morte que nos faz tremer nas bases, que nos dá calafrios na espinha, que nos dilacera a carne. Ou que supostamente deveria.

Pois os outros não morrem de verdade. Quantas vezes não permanecemos impassíveis frente à televisão que vomita aos borbotões os assassinatos, as chacinas, as guerras, os genocídios? Quantos milhares de mortes não chegam ao nosso conhecimento sem que uma única nuvem negra venha mudar o tempo no céu de nossa mente? Os outros não morrem de verdade, ou não nos importamos que morram. Saber que seis milhões de judeus foram assassinados não é tão doloroso assim quanto receber, num dia qualquer, sem qualquer previsão, um telefonema onde se ouve uma voz incerta e medrosa, na qual se lê o receio de ferir, a triste impossibilidade de fugir à apunhalada, soltando a bomba: “Morreu sua mãe”, “Morreu sua avó”, “Morreu seu irmão”... A tragédia subjetiva disparada pela morte de uma pessoa é capaz de ser enormemente superior àquela outra causada pelo conhecimento de um genocídio. A morte de anônimos e desconhecidos não nos abala muito. Talvez não possamos reconhecer no destino deles nenhum reflexo do nosso. Mas quando se trata de uma pessoa com quem convivemos, com quem pudemos conversar, a quem pudemos tocar, cheirar, abraçar, olhar, a coisa muda. Descobrimos então que era verdade o que diziam: as pessoas morrem, desaparecem, apodrecem, são engolidas pela terra, esquecidas pelos vivos, que vivos ficarão não por muito tempo. Sentimos os tremores nos ossos com a revelação da evidência, às vezes os olhos não resistem, começam a chover. Mas por quem? Pelo morto ou por nós mesmos? Talvez nos ponhamos a chorar pois o morto é um espelho onde se reflete com um brilho demasiado ofuscante o nosso próprio destino. O morto: imagem de nosso futuro.

E em mim algo como um sentimento de culpa por não ter conseguido sofrer o suficiente. Terei me tornado indiferente? Terei aceitado DEMAIS? Não teria sido muito mais virtuoso, muito mais CORRETO, ter conseguido me rebelar furiosamente contra o Absurdo? Óbvio que não se tratou de nenhuma surpresa, nenhum choque repentino, nenhum tijolo despencado dos ceús sobre minha cabeça num repente. Minha vó ficou longos meses indo e voltando de hospitais, entrando e saindo da mesa de operação, oscilando como um pêndulo entre a existência e o nada, resistindo como podia aos puxões que a Morte lhe dava tentando arrastá-la para o abismo... É incrível como a vida resiste! Mas todos sabemos que é uma resistência incapaz de vitória: trata-se somente de adiar o momento da derrota.

De qualquer maneira, eu já estava de sobreaviso: vovó estava morrendo, não havia nada a fazer salvo chorar, ou aceitar, ou se rebelar... Nada de chocante, nada de inesperado, então, receber um dia uma ligação de casa onde ouço a confirmação: “sua avó morreu”. E em mim algo como um sentimento de culpa pela baixíssima intensidade do transe. Nenhuma pontada violenta no coração? Nenhum inundamento de angústia? Nenhuma tempestade de lágrimas? Nenhum xingamento dirigido aos Céus, à Vida, ao Criador? Não consegui entrar em grandes dores. Nem pude possuir a glória de ter conseguido ser, por alguns instantes, um personagem trágico em rebeldia metafísica. Aceitei fácil demais que a morte de vovó era um acontecimento natural. Vovó morreu, e é isso que as avós fazem: elas morrem. Nada nisso de anormal.

É absolutamente natural que os velhos morram - é o que se diz. É algo de que estamos conscientes desde muito cedo na vida. Algo absolutamente normal... mas não consigo acreditar. Como pode ser normal algo desse tipo? Ter nascido, ter crescido, ter tentado amar, ter conhecido, ter vivido, para no fim de tudo apodrecer, ser enfiado num caixão debaixo da terra, lacrado do mundo para que o fedor da putrefação não incomode os narizes dos vivos, ser devorado por hordas de micróbios, vermes e bactérias, virar um esqueleto enlatado eternamente dentro dum retângulo de madeira... Absolutamente normal! Me pergunto como aquilo que chamamos de “pessoas normais” conseguem viver com tanta despreocupação e jovialidade quando tal destinação nos é prometida! Santo esquecimento, sagrada superficialidade...! Que seria da maioria de nós se não pudéssemos ser cegos?

E não é só a morte como nadificação que horroriza, mas o processo degradante que conduz o vivente, ainda em vida, para esse hórrido desfacelamento. Minha vó, uma mulher que foi até bastante inteligente, que era professora de português, muito bonita na mocidade, a julgar pelas fotinhas... reduzida a um amontoado de carne velha, pintada feiamente por rugas e veias quase saltadas, com a pele repuxada e retorcida, as pernas trêmulas, a respiração difícil. E o estado mental, então... a incapacidade quase completa de articular palavras, de se comunicar com os outros, de pensar corretamente, e, depois, num estado mais avançado da doença, a total decadência num estado de infantilismo e de letargia, de corrupção da memória, de esmigalhamento do vivido... Segundo os relatos da minha mãe, que passou bastante tempo no hospital nos dias derradeiros, minha vó nem conseguia mais reconhecer as pessoas com quem viveu por décadas e décadas; não conseguia mais responder às mais simples das ordens (levante a perna, vire-se de lado...); se esqueceu da função dos objetos mais usuais da vida cotidiana (fica parada com uma colher e um prato na mão, sem saber o que deve fazer com eles...). Sua consciência, quando o fim se aproximava, era apenas uma chamazinha minúscula que ia lentamente se apagando, se consumindo, sem volta.

Essa velhice extrema me deixa horrorizado. Os esforços médicos que se faz pra tentar estender uma vida o máximo possível me parecem os mais absurdos... Pra quê tantas operações, tanto soro, tanto remédio, se o caminho da decadência é inevitável? Essa situação me fez pensar seriamente, pela primeira vez na vida, na questão da eutanásia. Muito provavelmente, minha vó não poderia ter aceito uma eutanásia por ter sido cristã muito ortodoxa, que provavelmente achava que apressar as coisas seria um crime contra Deus; deve-se deixar que o Senhor nos leve quando ele bem entender etc. e tal. Obviamente, nesse caso, a obrigação de todo mundo, dos parentes, dos médicos, das enfermeiras, é respeitar o desejo do doente e fazer todo o possível para prolongar sua vida até o máximo ponto possível (de qualquer modo, uma eutanásia não-consentida é somente um eufemismo para assassinato...). Mas não vejo porque deveríamos proibir uma pessoa de pedir por sua morte. O suicídio é um direito. Um direito ainda mais inegável para alguém no corredor da morte (mas quem é que não está no corredor da morte?). Uma pessoa que desce a ladeira, que não consegue mais produzir nada para a sociedade nem materialmente nem psiquicamente, que somente consome recursos e trabalho em operações que nunca poderiam salvá-la, deve ter o direito de ir logo de encontro à morte, penso eu. Pra que aguentar toda a dor, se ela não pode levar à saúde? Por que prolongar o sofrimento dos parentes e dos amigos com o espetáculo cruel, lento e degradante da decadência física? Por que não morrer lucidamente, num momento que se escolheu, como quem entra conscientemente num trem que nunca voltará? Incrível como a vida resiste.

Como estou me sentindo, exatamente, frente a essa primeira situação de morte concreta de um ente próximo a mim? Não posso dizer que minha subjetividade esteja toda revolta ou que minha mente tenha entrado em pane. Na verdade, estou até mesmo me forçando a ficar taciturno e melancólico, a entrar num estado de luto, talvez por temer que eu, espontaneamente, não seria capaz de sofrer o suficiente. Qualquer sorriso, qualquer alegria barata, me parece nesses dias como um crime. Um crime que todos nós cometemos a todo momento, rindo, sorrindo e cantando enquanto multidões ao redor do mundo agonizam. Mas – cá estamos de novo - são muito poucas as mortes que realmente nos dizem respeito, que realmente nos fazem sentir algo. Seis milhões de judeus assassinados: algo que lemos nos livros de história, entre um bocejo e um cuidadoso desejo egoísta de registrar um fato importante para depois nos gabarmos de nosso conhecimento... ou passarmos no vestibular. Um velho professor de história sempre repetia uma frase que nunca esqueci: “A morte de um homem é uma tragédia; a morte de milhares é uma estatística...”.

Se nem a morte da minha avó consegue me pôr em pânico, se nem consigo chorar convulsamente por isso, o que dizer dos milhões em outros continentes, em outros tempos? Mas essas lágrimas que se derramam sobre as tumbas dos mortos, esse inundamento que deixa um rastro de água nos cortejos fúnebres, são derramadas mesmo pelo morto, pela dor de sua ausência? Suspeito que choramos muito mais por nós mesmos do que pelo outro. Berra no fundo de nosso ser a voz do narcisismo: a única morte terrível e abominável é a nossa própria... Além do que, nunca vivemos a morte do outro. Como seria possível? Só podemos imaginar - e sempre tão limitadamente... - o que o outro está passando. Mas cada um morre só, como vive só, como ama só...

E também outra razão para os tormentos, talvez: se foi tão pouco complicado, tão pouco terrível suportar essa vida que se esvaiu, é bem possível que, para os outros, também a minha morte seja algo de bastante suportável... Às vezes me pergunto se grande parte dos nossos atos não tem como finalidade conquistar a certeza de que há pessoas que gostam de nós o suficiente para que sejam capazes de chorar em nosso funeral sem a ajuda de facas e cebolas. Pois é uma triste coisa viver quando se suspeita que nossa morte não fará nenhuma diferença, nenhuma falta...

Vovó morreu. Vou seguindo com minha vida. Morrerei eu, as pessoas seguirão com suas vidas. É assim que é. Somos todos pessoas, e é isso que as pessoas fazem: elas morrem.

(Bauru, Novembro de 2004.)