terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Ó que biito:

"Somos pobres do outro; como se o sangue das veias não nos bastasse e fosse urgente trocá-lo, numa transfusão quente e viva, de coração para coração. Precisamos do outro, para o fazer comum, a obra, sem dúvida alguma; mas muito mais para o uso comum da palavra e do trigo. Precisamos do outro, para construir cidades e para ouvir um disco. Para ler livros escritos, e para ter leitores dos livros que escrevemos. Para tudo; e para nada. Para andar no mesmo caminho, à toa; para estar ao nosso lado em silêncio. Pelo calor da proximidade, pelo conforto da compreensão. Precisamos da esmola do outro; da esmola viva, dele mesmo, como é, outro e próximo.


Quando vamos andando nas ruas, no meio da acabrunhante solidão das ruas, e vemos surgir de repente entre ombros e cabeças alheias a velha face conhecida, a boa face amiga, o tempo pára e nosso sangue se aquece. É bom ver o rosto do amigo; já não estamos sós. O antigo susto que desde a infância nos persegue, medo de escuro e de solidão, se desfaz quando encontramos o amigo.

Somos pobres, fundamentalmente pobres, de carne e de espírito. Pobres como as criancinhas que morreriam de fome e de medo, se o mundo não fosse para elas um jardim cheio de mãos.

O adolescente, o antiinfantil, por ter crescido um palmo em um ano, se gloria de ser um obelisco solitário perambulando num deserto. Sua grandeza e sua virilidade consistem em andar só, em aprumar-se, em bastar-se. Repugnam-lhe as mãos que o amparam porque se completa com sua própria mão. Muita gente fica a vida inteira nessa idade, encanece numa adolescência orgulhosa, falando alto que não precisa de muletas e baixo, dentro do peito, carregando a obsessão do suicídio. Esse não precisa do outro, de ninguém, porque todo o cosmos obedecerá à dose de lisol ou ao nó de corda preparado na solidão. É o mais livre dos homens, o mais independente, autor de seus próprios dias, tutor de todo o universo.


Bendita seja a nossa pobreza, e benditos os ombros que encontramos para nos servir de muleta!"

(GUSTAVO CORÇÃO, A Descoberta do Outro)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

da série: Clássicos da História do Cinema



DECÁLOGO
de Krzysztof Kieslowski (Polônia, 1988)


Eu achava estranho quando ouvia falar que o Kieslowski, o grande mestre do cinema polonês, tinha filmado uma série baseada nos 10 Mandamentos bíblicos – esse famoso e ultra-elogiado Decálogo, filmado para a TV polonesa em 1988 e composto por 10 médias-metragens de 1 hora cada. Estranho por quê? Porque todos os grandes clássicos do cara – como a Trilogia das Cores (A Liberdade é Azul, A Fraternidade É Vermelha, A Igualdade É Branca) e A Dupla Vida de Veronique – não me pareciam ter muito a ver com cristianismo: não encontro nesses filmes nem um pingo de misticismo ou de religiosidade. Então a curiosidade para ver o Decálogo era grande, não só pela admiração que eu já tenho pelo diretor depois de ter visto a Trilogia das Cores (e especialmente A Liberdade É Azul, que eu considero um dos melhores filmes dos anos 90); não só por causa do oba-oba quase unânime da crítica, que parece admirar sem reservas esses Decálogos, considerados como obras-primas do cinema universal; mas também pra ver o que é que saiu dessa improvável e surpreendente tentativa do Kieslowski de se meter a mexer com temas cristãos...

Agora que já enfrentei a maratona de 10 horas de Decálogos, em 3 dias de Mostra Kieslowski - uma adorável iniciativa do Centro Cultural São Paulo (com entradas francas pra todas as sessões, ainda por cima...) -, já posso me tranquilizar: minhas suspeitas mais horríveis não se confirmaram. Quais? De que o Decálogo seria um conjunto de “parábolas” bíblicas ilustrando os 10 Mandamentos, o que não me cheirava muito bem; ou que seriam filmes “moralistas”, beirando o catecismo, que iriam ficar nos enchendo a cabeça com “historinhas edificantes” e nos mostrando o "bom caminho"...

Ainda bem que nada disso é verdade: no Decálogo, Kieslowski é o bom e velho Kieslowski de sempre, o cineasta genial que nunca teve nada de panfletário, que sempre foi sutil e simbólico, e que sempre esteve muito mais comprometido em criar filmes que instiguem uma reflexão no espectador do que em ficar passando, de cima pra baixo, dogmas e visões prontas... Enfim, um grande mestre do cinema, em plena forma, cometendo filmes excelentes, que estão entre as melhores obras cinematográficas dos anos 80.

Dá pra assistir ao Decálogo inteiro sem precisar saber bulhufas sobre as minúcias da ética cristã – esse não é um pré-requisito pra entender os filmes. Eles requerem sim muita atenção e um pensamento veloz para acompanhar e decifrar as informações e símbolos que vão se acumulando – não são filmes “fáceis” de ver: são "cerebrais" pra caramba, com um andamento vagaroso, sem sinal de sentimentalismo barato ou hollywoodianismos. Eu, por sinal, que não prestava nenhuma atenção às minhas velhas aulinhas de catecismo, nem sei recitar de cor os 10 Mandamentos e fui assistir aos filmes sem nem saber qual mandamento correspondia a qual episódio; e descobri que isso, no fundo, nem importa tanto. Cada um dos episódios é perfeitamente assistível como algo completamente “pagão”, “laico”, “materialista”, “realista”... ou qualquer outro nome que indique a ausência completa de religiosidade ou superstição.

Não, esses não são “filmes religiosos”: nada neles foi feito para nos “catequisar” e moralizar. Não há nem sinal de nenhum “papinho de padre”. Em nenhum momento se sente que Kieslowski está sendo qualquer coisa parecida com um “dogmático” – o que já é uma qualidade imensa para uma obra com essa temática. O grau de “moralina”, pra usar o irônico apelido que o Nietzsche dava pros papos “moralizantes”, é mínimo, quase inexistente. Esses são filmes muito mais sobre moral do que sobre religião; muito mais simbólicos e poéticos do que dogmáticos; muito mais “realistas” do que místicos... e deles Deus está completamente ausente: são filmes sobre os homens e suas relações, abandonados debaixo de um céu de onde jamais cai ajuda alguma. O que não é nada mal para um filme que até o Vaticano classificou em sua lista de filmes recomendados...

Deus está ausente em todos esses filmes - e era até esperado que assim fosse... Afinal, o contexto histórico de onde eles emergiram não tinha lá muito a ver com os valores cristãos. Os Decálogos saíram todos de um país que, como todos os outros do bloco comunista, era considerado oficialmente “ateu” e que, além do mais, vivia naquela época uma fase de crise séria. Com o colapso da União Soviética e as imensas decepções com o Sonho Comunista, depois do pesadelo estalinista, aquele era um momento de confusão, de incerteza e de busca por novos valores... Toda a “ambientação sócio-política” do Decálogo de Kieslowski é meio dark, meio sombria, meio decadente... algo que me lembrou vagamente do cenário de fundo dos romances do Milan Kundera, aquela Tchecoeslováquia meio devastada e lúgubre...

Tudo aqui se centra nas relações humanas, quase sempre numa narração realista, mas que não deixa de terem quase sempre um “fato extraordinário” acontecendo: um assassinato que dá em pena de morte; um sequestro de uma criança; uma herança multimilionária; uma tentativa de suicídio depois de um desencanto amoroso; descobertas que chaqualham vidas familiares... Todos os filmes são de alta qualidade; é incrível como em nenhum dos episódios a coisa desanda ou cai de nível. Em todos eles se colocam questões que o espectador leva consigo, ao final da sessão, com muita coisa pra pensar, e sobre os mais variados temas. Isso é uma das coisas que mais me agradou: a variedade temática, a diferença às vezes radical entre as histórias, as questões diferentes que elas vão erguendo na cabeça e no coração do espectador...

Fiquei imaginando, por exemplo, uma pesquisa de opinião na saída das sessões do Decálogo onde os espectadores seriam perguntados, à queima-roupa, se tal ou tal personagem tinha agido “certo ou errado”. Quase certeza que a grande maioria das pessoas se sentiria em sérias dificuldades pra dar uma resposta rápida e convicta a essa pergunta. Muito mais comuns seriam os “Não sei, me deixa pensar...” e os “É complicado dizer...”. E talvez aí esteja a maior das qualidades desses filmes de Kieslowski: o fato de que eles nos fazem suspender nossos julgamentos e nos entregarmos à reflexão, descobrindo que nada é simples e claro no domínio da moral e que fazer juízos de valor sobre as pessoas com base em leis de dois milênios atrás é algo meio sem noção...

Sim, vários desses personagens acabam por desobedecer a um dos mandamentos bíblicos, mas de forma alguma a narrativa do filme, e o envolvimento emocional que ele faz com que se estabeleça entre nós e os personagens, permite julgamentos sumários e simplistas. O efeito geral do Decálogo é nos mostrar que, em certas circunstâncias, é muito possível e compreensível (e irrepreensível...) quebrar um dos mandamentos, e que isso por si só, o fato de quebrá-lo, está longe de ser o bastante para que seja correto chamar a pessoa de “má”...

Em vários filmes, os personagens estão explicitamente burlando ou quebrando um dos mandamentos, mas em nenhum momento estão sendo “condenados” pelo maestro Kieslowski como vilões ou bandidos. A coisa é muito mais complicada do que o maniqueísmo cristão costuma admitir. O padre dizia: “não seguiu um mandamento, está em pecado, está do lado do mau, vai parar no inferno se não se arrepender...” Kiewsloski parece retrucar: “devagar com o andor! Não é tão simples assim! E no caso de... e nesse outro caso de...?”

Um dos grandes triunfos de Kieslowski é colocar seus personagens em dilemas éticos difíceis de solucionar – e para os quais os mandamentos são quase inúteis. O espectador é meio que convidado a observar essas situações cabeludas e se perguntar: “e eu, o que faria no lugar desses personagens?” Se eu fosse um médico e a esposa de um doente me perguntasse se ele tem chances de sobrevivência ou não, o que eu diria: a verdade, que poderia ser cruel, ou uma mentira, que poderia aliviar o sofrimento? Se eu fosse um advogado, aceitaria defender um assassino condenado à morte e tentaria encontrar desculpas para o seu comportamento cruel? Se eu recebesse como herança alguma coisa que foi hiper-querida por meu pai, mas que tem um valor monetário imenso, conservaria a coisa ou a trocaria por dinheiro? Se eu, depois de me casar, descobrisse que sou impotente, daria permissão para que minha esposa transasse com outros homens, mesmo que isso fira o pacto sagrado de fidelidade feito na igreja?

Por isso eu vejo esses filmes não como moralistas, de jeito nenhum, mas como narrativas muito mais preocupadas em demonstrar o quanto é complexa e cheia de detalhes complicadores toda a problemática da ética. Depois de assistir ao Decálogo, com todas as questões espinhosas que ele nos coloca, parece até ridículo aquele simplismo quase infantil dos imperativos dos Dez Mandamentos. Será que alguém realmente consegue se pautar por aquilo lá para agir nesse mundo? Aquelas 10 frasezinhas simplórias, se seguidas à risca, realmente são o que basta para eu me torne um “homem bom”? Toda a experiência – valiosíssima, aliás... – de assistir ao Decálogo, na íntegra, parece dizer que não: os 10 Mandamentos podem quase ser amassados e jogados no lixo, porque a imensa complexidade da vida humana, e a extrema variabilidade das circunstâncias, exige de nós um tipo de ação correspondente a cada situação. O esforço de Kieslowski parece estar muito mais em relativizar e em mostrar que a pretensão de que esses mandamentos valham absolutamente, em todos os casos e em todos os tempos, é furada, invivível no mundo real. Cada caso é um caso, a ser julgado muito mais com bom senso, bondade e compaixão do que com respeito cego a dogmas tradicionais; cada situação é nova, acabada de nascer, e tem de ser enfrentada com abertura e criatividade, e não numa atitude que siga mecanicamente preceitos cristalizados e mortos...


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O Decálogo I pode até parecer um tanto inofensivo, mas é só esperar que o desfecho chegue para notar o poder que estava ali escondido. O filme vai fluindo devagar, sem que nada de escandaloso dê sinal de que vai acontecer, até que no final surge o “choque” – e aí, enquanto os créditos aparecem, você olha pro público e vê que ele está ali, quieto e pasmo, totalmente devastado pela angústia que o filme acabou de transmitir... Esse é um filme que fala com a tranqüilidade de uma parábola, mas que acaba tendo o efeito emocional brutal de uma tragédia. Um dos filmes mais tristes da série de Kieslowski, talvez da história do cinema - tão triste, mas tão triste, que até as lágrimas se desanimam e não se decidem a cair...

Esse é o único dos 10 Decálogos que se presta a uma interpretação mais moralista. À primeira vista, parece uma fábula mostrando a fúria de Deus ao punir (e com que crueldade...) uma certa pessoa por seu “ateísmo” – ou por idolatrar outros "deuses": a razão, a ciência, a tecnologia. É uma das interpretações possíveis, talvez a mais comum, mas o filme, claro, pode ser visto também como algo que não tem nenhuma ligação com o sobrenatural, só colocando em questão o culto da racionalidade e a nossa confiança por vezes um tanto cega na tecnologia, nada mais.

Kieslowski, provavelmente, gostou de deixar sua obra nessa indecisão e entregar ao espectador um dilema. A hipótese de uma intervenção divina punitiva é uma das interpretações possíveis, mas também é igualmente possível dizer que a tragédia toda não tenha passado de um acidente, de um triste acaso, de uma mera falha de cálculo... É como se o diretor nos entregasse um problema espinhoso para que decidamos por nós: a tragédia acontece porque Deus resolveu intervir e punir um “pecado” ou tudo não passou de uma mera questão de uma criança estar no lugar errado na hora errada?

O Decálogo I trata principalmente da relação entre um pai e um filho debatendo questões existenciais e religiosas. O menino, uma das crianças mais lindas que eu já vi numa tela de cinema, está sempre com aqueles olhinhos arregalados, totalmente fascinantes, de quem se espanta por estar vivo e se espanta por não entender muita coisa do mundo ao seu redor... Já o pai, um racionalista agnóstico, evita vender consolos mitológicos para as perguntas mais fundamentais que o filho lhe faz. Por exemplo:

Quando o garotinho pergunta sobre a morte, o destino das almas e o porquê da vida ser finita, o pai não solta uma única palavra que cheire à religião ou superstição. “Por que as pessoas morrem?”, pergunta a criança. E o pai: “porque o coração ou o cérebro param de funcionar, porque o corpo não aguenta e ‘quebra’....” Essa explicação meramente física, obviamente insatisfatória para a curiosidade do menino, é tudo o que ele fornece: afinal, é tudo o que ele sabe. Quando o menino pergunta “existe uma alma que sobrevive à morte?”, o pai, na maior sinceridade, sem aquela arrogância que tem muitos adultos, que fingem saber muito melhor que as crianças as respostas pra essas questões, responde, simplesmente, que não sabe - só sabe que “muitas pessoas vivem mais confortavelmente acreditando nisso”.

Respostas completamente sensatas. Só um religioso fanático e dogmático, daqueles que obriga o filho a recitar versículos bíblicos toda a noite, segurando a palmatória, poderia considerar isso um "erro pedagógico" ou um "pecado". Esse pai certamente não é um crente, mas também está longe de ser um ateu convicto que queira proibir o filho de adotar uma religião, se ele assim o desejar, nem alguém que vá obrigar o pequeno a não crer. E é isso que faz o desfecho do filme ser tão terrível: no fundo nós sentimos o quanto aquilo é absurdamente injusto. O sofrimento que é imposto a esse pai é completamente desproporcional aos seus “pecados”, se é que ele cometeu algum.

Quando o menino acaba sofrendo o acidente no gelo, o que lhe condena a uma morte ultra-dolorosa (imagino), alguns podem ler nisso uma parábola onde Deus estaria se vingando de um pai que, feito uma ovelha desgarrada do rebanho, ousou “trocar” de deus. O problema é que uma interpretação desse tipo, que só um cristão meio fanático seria capaz de fazer, levanta tantos dilemas espinhosos que, no fundo, acaba complicando muito mais a coisa do que esclarecendo. Por que, afinal de contas, que diabo de Deus é esse? No meu modo de ver a coisa, um Deus desse tipo, se existisse, seria absolutamente revoltante! Um Deus que mata uma criança inocente e totalmente pura para punir o pai por não ter fé? Um Deus que condena um homem a um sofrimento insuportável só porque ele não podia ter certezas religiosas e só porque não comunicava dogmas prontos ao filho? Um Deus DIABÓLICO desses?!?

E, se me perguntarem, eu vou dizer com toda convicção (tudo bem que influenciado pelo meu ateísmo...) que esse pai não fez absolutamente nada de errado - ao contrário, agiu sempre de um jeito muito sensato, tolerante, sincero e amoroso, tratando o seu garotinho com uma correção irrepreensível. Por isso eu, na minha interpretação pessoal do filme, prefiro descartar a hipótese da punição divina (simplesmente porque um Deus desses me encheria de nojo...) e ficar mesmo com a hipótese trágica de um acaso infeliz... Prefiro acreditar que vivo num mundo sem nenhum Deus, mesmo que nele as crianças inocentes às vezes morram, sem nenhuma razão, do que acreditar que esse mundo é regido por um Deus sanguinário, diabólico, assassino de crianças...

Mas tudo o que fica claro, no desfecho do filme, é a devastação imensa que o episódio tem sobre o espírito desse pai: em 1º lugar, ele está sendo devorado pela culpa, já que tinha dado permissão para que o filho fosse brincar lá fora, após ter calculado que não havia perigo. Em 2º lugar, se torna completamente incapaz de acreditar em Deus, como parece sugerir a cena em que ele entra na Igreja e destrói com raiva o altar – pois como seria possível crer num Deus tão cruel, tão vingativo e tão sádico? E, como se não bastasse, perde também a capacidade de seguir seu “culto à racionalidade”, que acabou de traí-lo.

A pergunta “a morte do menino foi uma punição de Deus ou foi mero efeito do acaso?” permanece sem resposta – e Kieslowski provavelmente queria que fosse assim. Tanto que, num dos símbolos mais poderosos que eu já vi numa tela de cinema, a mesma ambiguidade permanece: na cena da igreja, a Virgem Maria parece estar chorando lágrimas brancas, pingos de cera caídos de uma vela escorrendo... "milagre ou acaso?", eis a questão! O filme se acaba e não diz nada de concludente: a única certeza que temos é a da devastação interior daquele pai, subitamente lançado ao inferno e ao sofrimento mais injustificável – mas por quem!? Por Deus ou pelo acaso?

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MAIS RESENHAS no
ROTTEN TOMATOES.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007


DLMSONGS, o humilde projeto de compartihamento de músicas deste bloguito, está de volta à vida depois de um tempo parado. Prefiro continuar no esquema do Gmail do que usar os Rapidshares da vida, cujos links sempre quebram depois de um tempo. No Gmail pelo menos a coisa é duradoura: o lance vira um mega estoque de músicas, com a vantagem de vcs não precisarem baixar o disco inteiro, q costuma ter uns 50 ou 60 MB, pra só depois conferir se curtem a coisa. É um pouco mais trabalhoso baixar faixa a faixa, mas acho que compensa mais fazer assim. E eu também aproveito pra compartilhar alguns dos meus pet sounds com vcs - pq eu só ponho lá coisas aprovadas pelo meu senso crico apurado. :D

Novas entradas por lá:


+ BOB DYLAN - "Blood On The Tracks" (1975)
(o melhor Dylan dos anos 70)
+ HOT HOT HEAT - "Elevator" (2005)
(uma das melhores bandas no novo rock.)
+ CASEY DIENEL - "Wind-Up Canary" (2006)
(lovelier than lovely.)
+ SOULWAX - "Nite Versions" (2006)
(suecos de eletrônica q fizeram um dos melhores shows do ano passado)
+ "FINAL FANTASY - "He Poos Cloud" (2006)

(indie-pop ao violino, de 1a / banda d'um cara do Arcade Fire.)
+ COLETA: MELHORES DE 2006 / CD SUSSA

mêmo esquema:
www.gmail.com

usuário: dlmsongs
senha: queromp3

E os próximos dias prometem altos prazeres musicais: tem show histórico dos Mutantes hoje no níver de Sampa; o disco novo do Arcade Fire, que eu aguardo salivando, já tá sendo baixado aqui no E-mule; o novo da Carla Bruni, declamando uns poemas classudos aê, também promete; sábado tem mais um show do ótimo Cidadão Instigado, no StudioSP; e a gamação pela Casey Dienel, essa Fiona Apple de alto astral, continua firme e forte...

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

da série: crássicos do roque moderno



"The Sophtware Slump" (2000)
e "Sumday" (2003)


Só pintando um quadro apocalíptico do futuro da humanidade dá pra entender qual é o grande charme do Grandaddy. Então vamos brincar de pessimismo e imaginar um climão de distopia:

A humanidade vai penetrando cada vez mais - e sem volta... - em ambientes industrializados e artificiais, onde a natureza que nos circunda foi completamente transformada e não há mais quase nada que denuncie como tudo era em seu estado original. Tudo tende a piorar. Vamos ir cada vez mais nos afundando na areia movediça de nossas criações, nossas máquinas, nossos computadores, nossos robôs, perdendo gradativamente, mais e mais, o contato com nossa Fonte Primordial, a antes tão adorada Mãe Natureza, hoje abandonada...

As grandes metrópoles, esses verdadeiros formigueiros humanos, decoradas com outdoors, placas de néon e telões de cristal líquido, irão nos afastar muito mais do que nos aproximar; hoje já nos fechamos à chave em nossos apartamentos, rodeados por tijolo, concreto, fios elétricos, fuzíveis e canos, nos auto-enjaulando em espaços fechados em nome da “Segurança” e do “Conforto”. Trabalhamos em escritórios e redações, bundas-quadradas à frente de um computador ligado 12 horas ao dia, a pele pálida por não ver bronzeamento que não aquele que emana da tela brilhante do monitor ou dos raios catódicos da TV... Nos movemos dentro de cápsulas locomotivas cada vez mais hermeticamente fechadas e blindadas, respirando o oxigênio enlatado pelo robô condicionador de temperaturas.
O ar que respiramos está tão contaminado pelo monóxido de carbono dos escapamentos e das fábricas, e a chuva que cai é tão ácida, que é como se vivêssemos num ambiente de guerra. As câmeras escondidas observam tudo com seus intrusos olhos de vidro, pequenos big brothers espalhados por aí, tornam a sensação de estar sendo vigiado cosntante: perdemos toda a espontaneidade e o mundo se tornou um palco onde não deixamos de ser atores por um segundo sequer.
Deixamos o piloto automático dirigir nossos aviões e se tornarem senhores de nossa vida e morte - e quase esquecemos que a máquina, que é simples e burra, é o piloto. Os barulhos vomitados pelas desktops, as turbinas de aviões e os escapamentos de carros são a verdadeira trilha-sonora de nossas vidas.

Com a disseminação das novas tecnologias de comunicação, raramente nos encontraremos – e tudo isso tende a piorar de maneira horripilante. Logo não trocaremos mais endereços para que possamos nos visitar, nem marcaremos encontros no boteco para ir papear; nos falaremos unicamente através de chats virtuais, scraps e torpedos; expressaremos sentimentos através de emoticons, cartões virtuais, e-mails e mensagens gravadas nas caixas postais dos celulares...

Quando as pessoas se encontrarem concretamente, cada uma delas estará trancada no seu próprio mundinho, com os ouvidos ocupados pelo iPod e os olhos pelo laptop; se quisermos olhar nossos amigos cara a cara, não iremos direto até eles, mas entraremos numa cyber-conferência com webcams; nosso número de RG logo será obsoleto: muito mais importante será nosso e-mail, nossos códigos de MSN e Orkut, nossa “identidade virtual”; os contatos humanos concretos - duas pessoas no mesmo ambiente, frente à frente, podendo se tocar e se olhar no olho - irão diminuir cada vez mais, até que praticamente todas as nossas relações sejam esfriadas cruelmente pela mediação da máquina morta e calculista que nos ligará uns aos outros.

Cada um se fechará num individualismo e num isolamento nunca antes experimentado na civilização ocidental e só falaremos uns com os outros através da parede de fios, redes e conexões que as máquinas nos possibilitam. Os robôs, criados para nos libertarem, terão nos escravizado: teremos nos tornado muito mais parecidos com eles; teremos nos contaminado, nos tornado artificiais, mecânicos, maquinais. Logo colocaremos "ar condicionado nas florestas", iremos para praias artificiais, com ondas fabricadas mecanicamente, nos bronzeando em cápsulas fechadas, bombardeados por todos os lados por raios catódicos e toneladas de informação inútil, até que, finalmente, estejamos todos totalmente neuróticos e infelizes e desesperadamente procurando algum canto da Terra onde ainda exista Natureza bruta. Provavelmente milhões irão embarcar para outros planetas, mesmo que inóspitos, cansados do inferninho em que este aqui se tornou...

* * * * *

Sei: o quadro é apocalíptico, exagerado e não muito plausível, mas é preciso ter em mente esse retrato sombrio para entender e curtir a mensagem do Grandaddy, uma das mais originais e interessantes das bandas americanas dos últimos anos. Porque o sentimento prevalecente na música do Grandaddy parece ser a nostalgia por um mundo rural e bucólico que vai lentamente escorrendo para o irrecuperável passado com o avanço da Era Digital: o tipo de “virgindade natural” que parece escoar pelo ralo da modernidade em velocidade cada vez mais rápida. Pense bem: quantos quilômetros você precisa percorrer, hoje em dia, para descobrir um mísero pedaço de terra onde não se veja nenhum sinal de contaminação humana? "Everything beautiful is far away...", dizia o título de uma velha canção dos caras, e isso diz muito sobre essa melancolia grandaddyana que está dispersa em quase todas as músicas da banda.



O som do Grandaddy, um tanto paradoxal e ambíguo, coloca lado a lado o moderno (um “space-rock” seguindo os rastros de OK Computer do Radiohead, The Soft Bulletin dos Flaming Lips, Deserter’s Songs do Mercury Rev...) e o arcaico (um folkzinho semi-caipira de melodias grudentas, que lembra Neil Young). É arte feita de dentro da Era Digital, por gente afogada num contexto tecnológico e cultural totalmente século 21, mas que parece gostar mais da idéia de serenatas à luz lunar e rodinhas de violão ao redor da fogueira do que de multidões sentadas frente a seus computadores. O sonho do Grandaddy: criar um refúgio retrô no centro da modernidade. É um protesto neo-hippie nascendo no seio da pós-modernidade.

Quando The Sophtware Slump foi lançado, em 2000, o espanto causado pelo lançamento do OK Computer, de 1997, ainda não havia passado. Não foram poucos os que acusaram o Grandaddy de lançar um mero álbum-imitação que, apesar de excelente, não chegava aos pés do clássico instantâneo que o Radiohead acabara de parir. A acusação de “plágio” tinha até um pouco de razão de ser: em The Sophware Slump estava lá a mesma ideologia anti-tecnológica, os mesmos climões claustrofóbicos e espaciais, a mesma insegurança em relação ao destino da humanidade na Era Digital, a mesma música espacial e melancólica, os mesmos vocais agudos e alongados...

Mas hoje já não dá mais pra dizer que o Grandaddy era só uma banda seguindo a trilha de Thom Yorke e companhia: os dois grupos parecem ter se movido em direções absolutamente opostas. Enquanto o Radiohead declarava a morte da melodia, a obsolescência da guitarra elétrica e se punha a enfiar eletrônica experimental no caldo de Kid A e seguidores, o Grandaddy, pelo contrário, pareceu erguer a deusa Melodia para o mais alto trono e caprichou ainda mais nos refrões cantaroláveis e na vocalização humanizada e quente. Sumday, perto de Kid A e Amnesiac, é um disco quase de power pop – e o ambiente do Grandaddy, muito mais respirável e doce do que aquele do Radiohead. E o adorável vocal de Jason Lytle é muito menos agoniado e dolorido: é como se Thom Yorke, ao invés de ter se jogado no futuro e decidido passar sua voz através de efeitos modernosos de produção, como fez em Kid A, tivesse querido ressuscitar a simples nudez do cantor folk à la Neil Young da era pré-computador...

É como se emanasse dos discos um ideal hoje visto com um certo desprezo por quase todos os moradores de megalópoles industriais: o ideal do retorno a uma vida mais simples, dedicada à contemplação da Natureza e aos contatos humanos mais diretos e imediatos. Os caras do Grandaddy parecem ter saudade daqueles belos clichês dos ideais bucólicos que muitos hoje julgam antiquados e obsoletos: algo como gaivotas brancas voando ao redor da casinha campestre, ziguezaguenado pelas árvores do pomar, enquanto as crianças fazem castelinhos de barro no quintal e dão seus mergulhos eventuais no lago, ao pôr-do-Sol.

Com uma certa melancolia, o Grandaddy vai soltando mó papo natureba, como se nos perguntasse, sem vergonha se soar ridículo: onde deixamos de lado o desejo de conexão profunda com a Natureza em seu estado puro e desumanizado? Por que não olhamos mais para as estrelas, não escancaramos mais as nossas janelas, não respiramos o ar em toda sua pureza original, não abraçamos as árvores nos campos, não rolamos na grama molhada pelo sereno, não nos sentamos na areia quente da praia para contemplar a dança fluida das ondas? Hippie pra caralho, eu sei. Mas eu gosto.

Uma das maiores originalidades da banda é o fato de o Grandaddy compor muitas músicas utilizando uma máquina como eu-lírico. A banda imagina um mundo, que hoje não é tão remoto e inimaginável, onde nossos robôs e eletrodomésticos seriam seres dotados de inteligência artificial e de sentimentos humanos, e isso abre uma possibilidade nova para a poesia, que tentará mostrar o mundo como visto através da perspectiva de um robô confeccionado pela humanidade e que se transforma num OUTRO (um amigo, um animal de estimação, um co-piloto, um substituto, um carrasco...). Como já haviam feito com Jed, o Humanóide, um dos personagens que povoa "The Sophtware Slump", a banda utiliza em “Sumday” outra máquina inteligente e sentimental como eu-lírico em “I’m On Standy”.

Contra a parede desumanizadora das máquinas, descritas meio paranoicamente como um exército alinhado em formação de guerra contra a humanidade, o Grandaddy vai sugerindo outro tipo de ideal de vida. Muitos versos da banda explicitam uma admiração da Natureza sem o Homem - pura, imaculada, não-transformada. O bonito é "o vento soprando através das folhas" ("The Go In The Go For It") e a vida ao ar livre: "pinto com as palavras um desejo simples / por paz mental e felicidade" ("El Caminos In The West"). O que eles parecem desejar não é o progresso material, não é a construção de arranha-céus e shopping centers, não é o empilhamento de eletrodomésticos na casa dos cada vez mais pálidos e lânguidos humanos – a música do Grandaddy nos dá o sentimento de que não precisamos de nada disso, só de um pouco mais de simplicidade, de paz de espírito e de desencanação quanto à tecnologia.

“Estoure a fechadura da sua porta de entrada. Assim que você estiver lá fora você, não irá querer mais se esconder. Acenda a luz na sacada da frente. Uma vez acesa você nunca mais irá querer desligá-la!”, cantam eles na primeira faixa de Sumday, “Now It’s On”. Já em "The Group Who Couldn't Say", nos contam uma fábula sobre um grupo de comerciantes tão workaholics, tão acostumados a trabalharem trancados em seus escritórios apertando botões no computador, que já tinham esquecido que havia um mundo lá fora. Quando ganham um prêmio de seus chefes e vão dar uma passeio no campo, "descobrindo a perfeição d'um OUTDOOR DAY", ficam tão perplexos e embasbacados com o esplendor do espetáculo que não conseguem articular palavras.

Por isso essa banda é tão importante: porque eles chegam meio que questionando toda aquela utopia, surgida com o Iluminismo e elevada à última potência no fim do século 20 e começo do 21, de acreditar que o desenvolvimento técnico-científico traria um bem imenso para a humanidade e nos faria a vida muito mais confortável, segura e feliz. Falácia completa. Pois, pergunta o Grandaddy: quem disse que progresso rima NECESSARIAMENTE com felicidade? Quem disse que a o desenvolvimento tecnológico nos levará NECESSARIAMENTE ao paraíso? Para o Grandaddy, o "lago de cristal", um símbolo forte da natureza como algo místico e belo, “nunca deveria ter sido deixado pra trás” e nunca deveríamos ter ido “para áreas onde as árvores são de mentira”, como cantam eles na deliciosa “Crystal Lake” de Sophtware Slump.

Sumday e The Sophtware Slump são adoráveis reservas florestais sônicas no seio do mundo hi-tech, onde a tecnologia é usada como aliada mas nunca superestimada, onde os velhos ideais bucólicos não são nunca esquecidos, e onde podem sobreviver sem medo e sem culpa, num mundo musical cada vez mais dominado por batidas eletrônicas repetitivas e ritmos mecânicos, todas as doces melodias e todos os lá-lá-lás...

LEIA MAIS: DYING DAYS 1 e 2 * * * BACANA * * * GORDURAMA * * * AMG ALL MUSIC GUIDE * * * PITCHFORK 1 e 2 * * * LUCIANO VIANNA * * * JONAS .

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Marina.




[ post dedicado à Liza! (mas não a Simpson...) :D ]

QUARTO DE PENSÃO

Sou pensionista da vida.
Na mesma tábua em que durmo
escrevo meu trabalho
e ela farfalha, embora já sem folhas,
só da lembrança de ter sido tronco.
Tenho uma pia no canto,
que goteja,
e é meu lago, meu rio, meu
fundo mar.
Tenho um rijo cabide
à cabeceira
para dependurar a pele
a cada noite.
Me dão café com pão, e às vezes
algum vinho.
Dizem que só paguei meia pensão.

Há uma fome indistinta que me habita
enquanto o medo
com felpudos passos
percorre o labirinto das entranhas.
Mas agradeço essas quatro paredes
e que me tenham dado uma janela.
Pois sei que a qualquer hora
sem possibilidade de recurso
e talvez mesmo sem aviso prévio
serei intimada
a devolver o quarto.

* * * * *

TUA MÃO EM MIM

Você me acorda no meio da noite
e eu que navegava tão distante
cravada a proa em espumas
desfraldados os sonhos
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
a boca ainda salgada mas já amarga
molhada a crina
encharcados os pêlos
na maresia que do meu corpo escorre.
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
A correnteza arrasta.
Só quando o primeiro sopro escapar
entre os lábios da manhã
levantarei âncora.
Mas será tarde demais.
O sol nascente terá trancado o porto
e estarei prisioneira da vigília.


* * * * * *

MEU AMIGO AO NÍVEL DO CHÃO

Quando vi meu amigo morto
deitado ao nível do chão
coberto por um pano
- ou teria sido plástico -
temi por ele
temi que baratas pudessem.
Por que temer insetos
se em breve ele entraria
terra adentro
noite adentro?
Por que temer
tão pouco
se dos temores
o maior
já não podia temer?


(in: Gargantas Abertas, de Marina Colasanti).


* * * * * *

E mais o txto, já meio famoso e muitas vezes citado, que me deu vontade de conhecer mais do trabalho da Marina:

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E por não ter vista, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E por não abrir as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia sobre as guerras de longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: "hoje eu não posso ir". A sorrir para as pessoas, sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho. Para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se compra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes. A abrir revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e assistir aos comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento dali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e o suor do resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola nos fins de semana. E se, no fim de semana, não há muito o que fazer, vai dormir cedo, e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele, se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquecer-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma"
.
(Marina Colasanti)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

nothing changes when you're gone


M U S A .

You've moved off to Seattle
You go down to the bar every day
This morning you woke up in the park
Wearing only a tiny straw hat
You've got a mad dog with a bad leg
And a comb full of rotten teeth
But the days get longer, you don't get no younger
And nobody's calling for you
Keep moving on

You're chewing aspirin like M&Ms
Anything to dull the pain
But the doctor says it's nothing that
a little courage wouldn't fix.
So they put you up on morphine
and they strap you to the bed
Saying "Darling, it's just a bad dream,
it will all be over soon"
Keeps moving on

Oh nobody... Nobody feels like fighting

You've unplugged all the phone lines
And changed the locks on the doors
You've been wearing suits and collared shirts
And you've changed your name to Carlos
You take up with a lady
The kind that wears perfume
And she likes the sound of your name
When it's following after hers
Keep moving on

Then she tells you there's a child
And he's three months along
She's been dying to tell you‘
Cause she thinks he'll have your nose
You call her up the next day
It was St. valentine's
And you wanted to know about the hometown
And see if it was standing
And it keeps moving on

‘Cause nobody, nobody feels like fighting...

The LeCalire boy died in a fire
The town gathered by the harbor's edge
And sure enough when the flames died
down the boat almost sunk
The next day the sea was quiet
The tide came in, then moved out
That's just one way of saying
Nothing changes when you're gone
It keeps moving on


(CASEY DIENEL. "Fat Old Man")

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

CARTA DE CONSOLO A UM AMIGO EM APUROS

Não sei se sei como é que se faz, mas sei que preciso pelo menos tentar. Será que consigo “levantar o astral” de alguém, eu que nunca me considerei lá muito “animadinho” e saltitante? Eu que nunca curti os consoladores pessoais e as pessoas de personalidade muito yuuuupiie? Não sei. E, pra falar a verdade, acho que sempre tive um pouco de nojo dessas pessoas que tem profissões que exigem que elas nos deixem alegres, à força, a qualquer preço, na marra: as gente tipo as professoras de aeróbica, e aqueles monitores de hotéis brugueses, e os palhaços de circo, e os entertainers de TV, essa raça... Sei que você concorda comigo nesse ódio! Por que não nos deixam em paz com nossa tristeza?! Por que ficam lá exigindo que a gente sorria o tempo todo?! Por que é que nos olham como se a gente fosse um monstro só porque não tá afim de ficar dando espetáculos de alegria?!

Então, amigo, essa é sim uma carta de consolo: tô aqui te estendendo uma mão, através da distância, tentando te ajudar a se levantar... Mas eu te dou toda permissão para ser triste! Te dou toda permissão para continuar chorando, o tempo que você quiser, o tempo que você precisar... Te dou todo apoio se quiser mandar ao inferno todo mundo que acha que a felicidade é obrigatória. Mas eu não seria teu amigo se não viesse aqui, com meu pequeno e humilde guindaste, todo feito de palavras, tentando te erguer!

Então vamos, velho, não fica assim! Levanta essa cabeça, enxuga esses olhos, varre do teu rosto essa tristeza, que a vida pode não ser um playground ou um picnic, mas também não é assim tão sinistra quanto você fica aí se dizendo. E tua vida só tá começando, my little pal, mesmo que você goste de se dizer, dramático desse seu jeitinho, que sempre teve planos de acabá-la antes da hora. Eu sei que é conversa fiada, que é só chantagem, que é só drama... Eu sei que você não é da turma dos desistentes!

Você é daqueles que sofre e sobrevive, que se fode e se supera, que cai e se levanta, que pode até quebrar uns ossos, mas sempre segue andando... Você é daqueles que cai da bicicleta, rala o joelho, passa Mertiolate e segue pedalando. Você é daqueles que é tão bom na arte de se sentir desconfortável, como diz aquela música que você curte tanto, que nunca pára no mesmo lugar: está sempre se mexendo, como aquelas pessoas quem tem insônia e se debatem na cama, tentando achar uma posição mais agradável... tua vida é isso: você se debate e se remexe, até espantar o que te incomoda, até se livrar do que te aporrinha, até se transformar e trocar a pele. Você sabe que é verdade o que dizia o bigodudo: “o que não nos mata nos torna mais fortes”!

Vamos, não fica assim! Vai na cozinha e come uns chocolates; ouve um pouco de rock, pulando em cima do colchão e tocando air guitar; bate uma punheta no chuveiro; pensa no amor que um dia virá, e na mocinha que um dia ainda há de te querer muito bem; faz isso. Só pra se lembrar dos pequenos prazeres que estão aí, ao alcance da tua mão e da tua imaginação, enquanto você fica aí, tristonho...

Vamos, a coisa não tá tão preta! Pode ser que agora você esteja viajando por um lamaçal, meio esburacado e nojento, com umas nuvens nubladas tomando todo o firmamento, e não veja lá muita razão para seguir viagem, mas não faz isso, amigo... Não larga esse carro no acostamento, derrotado, se dando de presente pros urubus. Por que quem pode dizer o que há no futuro? Novas paisagens virão... Novos cenários, novos climas, novos encontros, novas aventuras, debaixo de novos sóis e novas luas. Porque nunca se nada duas vezes no mesmo rio, nem nunca se está duas vezes debaixo do mesmo Sol, nem nunca se é exatamente a mesma pessoa de um dia para o outro... Se hoje você não gosta tanto de quem você é, se console pensando que poderá gostar daquilo em que se tornará! Time is on your side.

Eu lembro até hoje da noite em que a pinga te fez desembestar em confissões... foi um momento foda! Que você meio que estragou, quando correu a se esconder e se trancar dentro de você mesmo, no momento em que sentiu que tinha “passado dos limites”... Lembro do jeito como você baixou as pálpebras sobre os teus olhos molhados, com medo de deixar-se ver assim, tão vulnerável, tão perdido... E era madrugada, tudo no maior breu - e você ainda assim quis esconder o crime que cometiam os teus olhos, como se a escuridão não bastasse, como se fosse preciso recobrir ainda mais tamanha vergonha... E como acontece tantas vezes, num ataque de pudor, você quis se esconder, como se o teu choro fosse uma lepra e como se não quisesse que nenhuma pessoa no mundo te visse assim...

Pensou o quê? Que eu ia gostar menos de você só porque num se segurou e teve um pequeno breakdown? Pensou que eu sou o tipo de gente que iria te desprezar por essa demonstração de “fraqueza”? Mas não eu não sou assim... E prefiro muito mais aquele que sabe ser assim, sincero sobre suas dores, do que aqueles que estampam no rosto seus sorrisões e fingem que tudo está bem... Não gosto de quem finge que consegue ser alegre o tempo todo! E acho que eu acharia impossível amar qualquer pessoa que não chora jamais.

Então não faz isso, amigo, nunca mais: não esconde o teu rosto no braço quando sente a água descer! Não volta pra tua caverna, pro teu iglu, pra tua fortaleza! Vai fazer o quê?! Vai voltar a chorar preso no quarto, escondido no escuro, contendo os soluços, pra não alarmar ninguém, como sempre costumava fazer? Você era bom nisso de sofrer em silêncio, e todos nós, teus amigos, nunca nem sequer suspeitamos que você pudesse estar mal por dentro, já que por fora tudo parecia tão normal... E agora que você tá conseguindo ser verdadeiro sobre os teus sentimentos, vai fazer o quê?!

Vai voltar a acreditar que homem que chora é bichinha? Vai de novo ficar preocupado com a tua reputação de masculinidade e pensar que é coisa muito feia e vergonhosa? Vai voltar a fazer segredo das tuas dores? Vai rasgar todas essas folhas cheias de lamúrias, que você fica aí enchendo com teus garranchos, só pra não dar bandeira, já que quem lesse iria te achar um fracote? Vai sair lá fora, de olhos secos, cabeça erguida, com pose de vencedor, e se fazer de forte? Vai continuar a fingir que não precisa de ninguém? Vai tentar acreditar, ainda um pouco mais, que é possível ser feliz sozinho? Vai espalhar pelos quatro ventos que é “auto-suficiente” e independente? Vai fazer assim, como quase todo mundo faz?!

Mas não! Não faz isso! Ninguém está te pedindo pra ser de ferro e aço! Ninguém está te pedindo para ser forte! Ninguém exige que você seja mais que humano... E você não precisa se desculpar se está de olhos molhados: não há porquê pedir desculpas!

Vamos, não fica assim! Pra quase tudo tem concerto! De quase todo labirinto há saída! Faz assim: se num der pé você bóia! Se engasgar você tosse! Se sangrar você lambe! Se arder você assopra! Se o gosto for ruim você cospe! E se quiser uma mão, ou mesmo um ouvido, me chama! E se a dor for mais do que você pode aguentar, sei lá, você berra! Grita que uma hora passa. E chora, chora bastante, que também ajuda. E chora sem medo de ser visto – pois quem viria enxugar tuas lágrimas se ninguém pudesse enxergá-las? Chora como quem quer tirar do organismo um veneno, expelindo pelos olhos! Chora como quem se purifica.

Vamos, cara, não fica assim... Por hora segura firme esse volante e vai adiante – o caminho à tua frente é longo e você tem que saber enxergar que a estrada vai além do que se vê. Não desanima não - pois quem sabe o que é que te aguarda, ali, mergulhado no horizonte, lentamente crescendo no útero do futuro?

Força sempre!
Best wishes!
Teu soul brother,
XXXXXXX.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Prediletíssimo:

Somente a esperança, em toda a vida
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência resumida
que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos
árvore milagrosa que sonhamos
toda arriada de dourados pomos

existe sim; mas nós não a encontramos,
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos.

(vicente de carvalho)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

da série: GARIMPO INDIEGENA
"it's funny i like me best with a broken heart..."

Sempre tem dessas: o ano acaba, você vai e faz uma lista com os melhores do ano e, entra janeiro, descobre alguma pérola que deveria ter entrado no pódio. Casey Dienel, essa belezinha aí em cima, é uma pianista, cantora e compositora que já virou, rápido assim, meu brand new love affair. Amor à primeira ouvida - e à primeira vista, porque não é só aos ouvidos que ela agrada... Tem 21 aninhos, a idade mais sexy que existe (competindo com 17). Escreve bem pra caramba, como sabe quem frequenta o blogue dela, o que garante letras bem acima da média. Ela fica linda quando desafina. Ela tem um dos top 5 lá-lá-lás da história do vocal feminino. E ela fez um dos melhores discos do ano passado, "Wind-Up Canary", uma mistura de jazz, folk e indie pop que lembra um pouco de Fiona Apple, de Tori Amos, de Nellie McKay e até de Carole King - sem falar que ela também é fã de Pavement e gosta de escrever letras à la Stephen Malkmus - que acabam parecendo clever nonsense, como disse um crítico. Precisa dizer algo mais como recomendação? Num ano que foi recheado de grandes discos de meninas (Joanna Newson, Lisa Germano, Regina Spektor, Nellie McKay, Lily Allen...), esse da Casey Dienel é o meu predileto: adorável e viciante, daquele que acaricia teus ouvidos, que te deixa na maior paz... O disco acaba e tudo que você quer é agradecer por ter conhecido a menina mais doce do mundo.
She's soooo lovely.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

da série: OS LIVROS DA MINHA VIDA.


AS VINHAS DA IRA
de John Steinbeck

(Editora Record, 574 pg., R$ 54,90 no Submarino)


"As Vinhas Da Ira" é mais que um livro: é quase um Monumento Americano, daqueles que exige respeito e veneração idênticos ao que alguns sentem frente à Estátua da Liberdade ou à Casa Branca... Exagero? Talvez. Mas é quase unânime a opinião de que o clássico de John Steinbeck merece, pelo menos, ser guardado num santuário como uma das preciosidades mais valiosas na história da literatura made in USA no século 20 - segundo Leo Gilson Ribeiro, é "um dos três ou quatro livros americanos claramente discerníveis como obras-primas" (Caros Amigos # 59) - o que não é dizer pouco.

Lançado em 1939, o livro causou impacto imediato, conseguindo a proeza de se tornar rapidamente um clássico em várias frentes: “As Vinhas da Ira” foi um marco na história do jornalismo literário e da grande reportagem, um modelo inimitável de “literatura engajada”, e claro, um clássico instantâneo da literatura americana como um todo. Pra destacar a importância dessa obra, é só lembrar que a obra-prima de John Steinbeck (1902-1968) recebeu o Prêmio Pulitzer, foi diretamente responsável pela premiação de seu autor com o Nobel de Literatura em 1962 e foi magistralmente adaptada para o cinema pelo grande John Ford, talvez o maior dos mestres do western em todos os tempos, já em 1940.

"As Vinhas Da Ira" é um retrato detalhado de uma época conturbada da história norte-americana, feito através de uma narração literária impecável - mas isso não é tudo: o livro contêm ainda fragmentos de um protesto político feroz e empolgante. Steinbeck não só se pôs a contar uma bela história, e com um talento literário e jornalístico inegável, mas também povoou essas páginas com seus gritos de indignação e rebeldia, com vários chamados à misericórdia e à união... Dá até pra dizer que esse é um dos melhores livros-reportagem já escritos, se nosso conceito de livro-reportagem não for muito restrito e excludente, já que a utilização de personagens fictícios não impede que a obra seja um retrato fiel de uma situação histórica real. Arrisco até a dizer que “As Vinhas Da Ira” foi na história da literatura americana algo parecido ao que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, foi para a brasileira. Além disso, o "manifesto político" de Steinbeck que ainda não perdeu nada de sua relevância. Só pensar no fato incrível de que um livro de mais de 60 anos de idade – e gringo, ainda por cima... - pode servir perfeitamente para refletir sobre MST, concentração fundiária e reforma agrária no Brasil da década 2000...

Com certeza Steinbeck nunca pretendeu fazer com "As Vinhas da Ira" nada parecido com "jornalismo imparcial", nem muito menos com uma literatura que fosse meramente descritiva e factual. Não estaria errado chamar esse livro de um "romance de esquerda" ou um exemplo do que é fazer "literatura engajada" - apesar do perigo de ficar colocando esses rótulos redutores, que podem acabar por fazer de uma obra-prima literária algo que parece ser mera “propaganda ideológica”.

Steinbeck toma posição, explicitamente, a favor de um determinado estrato social e se coloca como simpatizante e defensor da "causa camponesa". Não vejo problema nisso - onde já se viu dizer que bom escritor tem que ser apolítico e neutro? Pelo contrário: acho até bem empolgante e louvável ver um autor que põe a literatura no campo de batalha e acredita nos poderes dos livros para transformarem o mundo (ou ao menos transformarem os homens - que depois mudarão o mundo...). Steinbeck é um autor lutando ao lado do povo, que empunha suas palavras como se fossem armas e utiliza as imagens literárias, e as vidas de suas criações fictícias, como argumentos na luta política real...

Os eventos descritos no romance ocorrem durante a Grande Depressão do começo dos anos 1930, época em que os EUA passavam por maus bocados. Após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, fato simbólico do início de um período de dura recessão econômica, que se estenderá até mais ou menos 1935, a situação está meio preta na terra do Tio Sam. Em alguns estados do Leste americano, especialmente Oklahoma, a crise econômica não é a única catástrofe com que os camponeses precisam lidar: uma tempestade de poeira violentíssima, conhecida por lá como Dust Bowl, faz com que os campos rurais sejam dizimados, o que obriga a população camponesa a fugir em direção ao Oeste numa enorme diáspora - alguns calculam em mais de 100 mil imigrantes...

Grande parte de "As Vinhas da Ira" narra um período na vida de uma família de camponeses, os Joad, pequenos arrendatários de terra trabalhando na agricultura em Oklahoma. Tom Joad, o segundo filho, acaba de sair da prisão e retorna à casa da família, encontrando o lugar absolutamente devastado e abandonado. Algo de feroz e impiedoso arrasara aquelas terras, agora ermas e silenciosas, cobertas de poeira e desertidão... Motivados por folhetos publicitários que convocam trabalhadores às centenas a irem até a Califórnia, e iludidos por doces sonhos de que encontrarão um paraíso em seu destino, a família Joad pega a célebre rodovia 66, afastando-se à força de seu lar e da terra que amam. Para trás ficam as casinhas desertas, nos campos agora dominados pela poeira e pelas máquinas.

Intercalando-se aos capítulos que contam a saga da família Joad, aparecem alguns "ensaios político-econômico-sociais" que, numa linguagem poética e arrebatada, são como pequenos manifestos de Steinbeck. Neles o narrador toma a palavra para si, deixando seus personagens temporariamente em segundo plano, como que adormecidos, para logo fazê-los retornar ao centro palco a fim de provar com um exemplo particular o que estava dizendo sobre a situação geral.

* * * * *

Não foi somente a ira da natureza em descontrole a responsável pela metamorfose. Aqueles campos foram invadidos por algo mais: o espírito capitalista, o industrialismo, a mecanização rural. O campo havia sido dominado pelas forças do mercado, que Steinbeck pinta com cores negras, cheio de rebeldia. Os bancos e as companhias privadas - essas "criaturas que não respiram ar, nem comem carne: elas respiram lucros e alimentam-se de juros" - haviam avançando com seus tratores para perturbar a vida pacata e tranquila de milhares de camponeses, entregues desde então ao desemprego e à fome...

O narrador-manifestante, enquanto a família Joad penetra na rota 66, vai se lamentando pelo ocorrido, praguejando e se rebelando contra a desumanização do campo e contra o uso da terra como instrumento industrial. Amedrontado pela invasão dos monstros de ferro, o narrador parece temer que os campos se transformem em lugares desertos, sem seres humanos, onde engrenagens e mecanismos industriais exploram a terra, sem nenhum sentimento e nenhuma gratidão: "a satisfação que o trabalho proporciona desaparece" e "com o sumir do encanto some-se também a profunda compreensão e ligação do homem à terra" (pg. 154).

Os Joad, apenas uma entre milhares de famílias na estrada, tem também suas sérias dificuldades. Além da falta de dinheiro, dos problemas no veículo, do cansaço e da doença, acabam enfrentando duas mortes na viagem. Porém, algo de notável e revigorante surge nos acampamentos onde os camponeses se juntam às beiras da rodovia: surge nesses "mundos móveis" um forte espírito de misericórdia e de ajuda mútua.

Nesses lugares "acontecia uma coisa estranha", diz o narrador: "as vinte famílias tornavam-se uma só família, os filhos de uma eram filhos das outras, e de todas. A perda de um lar tornava-se uma perda coletiva, e o sonho dourado do oeste um sonho coletivo" (pg. 262). A Mãe, mais à frente, conversando com Rosa de Sharon, sua filha grávida, profetiza: "Virá o tempo em que tudo isso vai mudar, quando a morte será parte da morte geral, e o luto uma parte do luto geral, e morte e luto são as duas partes de uma mesma coisa. E aí não vai ter mais coisas pessoais. E aí uma dor não mais doerá tanto, porque não será mais apenas uma dor pessoal..." (pg. 282).

Essa explosiva união de gente com muito pouco a perder começa a preocupar os poderosos, que viam nos "mundos móveis" perigosos locais de subversão d'onde poderiam eclodir revoltas e revoluções. "Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose sem atinar com a sua natureza. (...) A causa escondia-se bem fundo e era simples - a causa era fome, barriga vazia, multiplicada em milhões; fome na alma, fome de um pouco de prazer e um pouco de tranquilidade, multiplicada em milhões" (pg. 201).

Essas multidões de americanos, provindo do Leste, que trabalham por merrecas nas grandes propriedades do Oeste, "famintos e ferozes", que "tinham tido a esperança de encontrar um lar e só encontravam ódio", eram chamados pejorativamente de okies. Essa gíria é o equivalente a algum dos inúmeros xingamentos que as pessoas do Sudeste brasileiro dirigem aos migrantes nordestinos, por exemplo. As multidões de migrantes que chegam à Califórnia, cheios de esperança, são tratados com ira e fúria e obrigados a morar nas periferias miseráveis, as Hoovervilles.

Ao redor, enormes campos vazios e improdutivos que poderiam estar sendo utilizados para alimentar todas aquelas pessoas famintas, mas que estavam inacessíveis: a lei legitimava a propriedade privada dos latifúndios, e o crime contra a humanidade estava legalizado.. soa familiar? Quem ousasse invadir a terra para plantar seria tratado com os devidos mecanismos de repressão policial e estatal. O narrador-manifestante, profético, faz suas premonições sobre os resultados a que levaria essa situação insustentável, e continua sua crítica pesada contra seus inimigos:

"...os grandes proprietários, que têm acesso à história, têm olhos para ler histórias e saber do magno fato: a propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada a ser espoliada. E do fato complementar também: quando uma maioria passa fome e frio, ela tomará à força aquilo de que necessita. E também o fato gritante, que ecoa por toda a história: a repressão só conduz ao fortalecimento e à união dos oprimidos. Os grandes proprietários ignoraram os três grandes gritos da história. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos despojados, dos espoliados cresceu, e todos os esforços dos grandes proprietários orientavam-se no sentido da repressão. O dinheiro era gasto em armas e gases para proteção das grandes propriedades, e espiões eram enviados com a missão de descobrir conspiratas latentes que precisavam ser abafadas. A transformação econômica era ignorada, planos para a transformação não tomados em consideração; e apenas os meios de destruir as revoltas eram levados em conta, enquanto as causas das revoltas permaneciam irremediadas" (pg. 322).

Há um limite na capacidade de um homem suportar a fome e a desgraça, e após atingido um certo ponto de saturação este homem se torna uma bomba relógio de dinamite pura. Como Knut Hamsun em "Fome" e Joseph Conrad em alguns treços de "Coração das Trevas", Steinbeck também destaca a força sobre-humana que se exige de um esfomeado ao qual se pede que aja de acordo com os preceitos do direito e da moral da civilização. "Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas em seu estômago, mas também na barriga torturada dos filhos? Não se pode assustar um homem assim... ele já passou por todos os transes" (pag 320).

Da mesma maneira que Marx, nos momentos em que se deixava dominar pelo espírito messiânico, acreditou que o movimento histórico iria inevitavelmente acabar gerando o comunismo, Steinbeck faz seu narrador ser o porta-voz da vitória final dos oprimidos: a inevitabilidade histórica da vitória dos pequenos camponeses sobre os latifundiários é constantemente prometida nos "manifestos".

Os grandes proprietários
"sentiam-se diante de um pavor permanente: trezentos mil... se um dia esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil famintos e miseráveis; se algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia as terras lhes pertencerão, e não haverá força alguma, não haverá quantidade suficiente de armas para detê-los. E os grandes proprietários, que através das suas empresas tornavam-se ao mesmo tempo mais e menos que simples seres humanos, corriam para a sua própria destruição, e usavam todas as armas que concorriam para a sua própria destruição. Todos os pequenos meios, toda a violência, todos os ataques policiais às Hoovervilles, todos os agentes de polícia que, peito estufado, vagueavam por entre os acampamentos dos esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do dia da destruição e contribuíam para a infalibilidade da chegada desse dia" (pág. 322-323).


* * * * *

Mas engana-se quem se põe a ler "As Vinhas da Ira" esperando um livro ingenuamente "otimista", que deixaria pra trás todo o realismo e sensatez pra se transformar em um ilusório livro sobre uma revolução das classes oprimidas perfeitamente bem-sucedida. A obra de Steinbeck, bastante realista, não se renderá a finais felizes e soluções fáceis. O livro é sim um chamado à luta (um sonoro "Pequenos camponeses de todo mundo, uni-vos!"), mas a vitória dos oprimidos, caso se concretizasse no livro, o transformaria num sentimental e falso júbilo por uma vitória que, no mundo real, não chegou a ocorrer.

O problema persiste, e não foi somente um momentâneo período de dificuldades econômicas durante a Grande Depressão - e nem é só um fenômeno circunscrito aos EUA. O Brasil de 2007 ainda passa por uma situação muito similar: imensa concentração de terra na mão de poucos (com certas fazendas com territórios maiores que países europeus...), mecanização agrícola causando alto desemprego estrutural no campo, queima de safras para manter preços enquanto 50 milhões de brasileiros estão perto de passar fome... Sem falar que as Hoovervilles não são muito diferentes dos acampamentos do MST e que o governo e a polícia, muito mais que atentar para as causas da situação, investem em opressão, em guerra ideológica e midiática, em chacinas sanguinolentas como a de Eldorado de Carajás...

As imagens finais do romance são poderosas (e infelizmente não foram aproveitadas na adaptação cinematográfica de John Ford, que termina de um modo bem menos marcante...). Tio John, que recebe a incumbência de enterrar o filhinho recém-nascido de Rosa de Sharon, resolve deitar o feto ensanguentado no leito de um rio, para que este seja levado pelo fluxo e mostre aos inimigos o crime que eles cometeram. A "mumiazinha", morta após ser tão chaqualada e sentir-se tão esfomeada durante os nove meses de gestação, flutua morta rio abaixo, indo mostrar o tamanho da brutalidade que os latifundiários e poderosos estavam criando.

Após esse sepultamento fluvial, com o aperto da tempestade, os Joad são obrigados a ir embora, e em certo momento de sua viagem param em um galpão para se abrigar da chuva, onde se desenrolará o ato final do romance. Um homem e seu filho também estão abrigados no local, e o garoto avisa aos recém-chegados sobre a difícil condição de seu pai, que não come nada há muitos dias. As mulheres da família Joad - Mãe e Rosa de Sharon - entreolham-se e, sem palavras, compreendem-se perfeitamente e sabem o que têm de fazer. Pedem aos homens que deixem o local, e então Rosa, com os seios cheios do leite que deveria ser dirigido ao seu filho, oferece o seu líquido à boca do estranho esfomeado.

E então, mesmo que o mundo inteiro esteja contra eles, mesmo que a Natureza os castigue com tempestades de poeira e dilúvios, mesmo que a polícia lhes espanque como moscas, mesmo que os proprietários os explorem e os tratem como burros de carga, eles sabem que ao menos venceram em um aspecto – e num dos mais importantes. Sabem que são seres humanos que não pisam na cara de outros entes humanos, sabem que não tem nem ganância excessiva nem um egoísmo gigante que impeçam um ato de caridade, sabem que, enfim, apesar de tudo, tem um coração onde ainda flui um pouco de compaixão, e que, apesar de tudo, da miséria, da fome, da humilhação, mantiveram dentro de si uma sensibilidade e uma dignidade humana num mundo de pedra e dominado pela brutalidade. Num livro totalmente dominado pelo chamado à união e à misericórdia, a moça que oferece o seio cheio de leite à boca de um desconhecido esfomeado é o fecho perfeito para um livro primoroso: não conheço símbolo mais bonito que ilustre o que significa solidariedade e caridade.


CAMINHOS ALTERNATIVOS:
CAROS AMIGOS (Leo Gilson Ribeiro)
BRAVO!
PLANO A PLANO

ALBA OLMI
ROTTEN TOMATOES
MIL FOLHAS
CMI BRASIL: AS VINHAS DA IRA E MST

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Adoro essa velha safada. Fazia uns anos que eu não pegava pra ler as coisas dela, que tanto me fascinaram e empolgaram quando eu tinha uns 18/19 anos. Devo ter devorado quase que a obra completa da Hilda naquela época - e ela virou minha escritora predileta, disparado. Eu tinha certeza que essa mulher escrevia completamente chapada.

"Cascos e Carícias", coleta de crônicas, é o ponto de partida ideal pra quem não conhece o trabalho da Hilda: é divertido, sarcástico, provocativo, caótico e ultra-bem-humorado - ótimo pra desfazer aquela imagem que muitos tÊm da Hilda Hilst como a escritora seriona e carrancuda, que só sabe falar sobre morte, putrefação e as canalhices de Deus. Ela é muito mais que isso. É uma das maiores gênias da história da literatura brasileira.

Sim: Hilda Hilst é tudo de bom!

E já comentei que adoro uma blasfêmia?

"...por que será que todas as coisas ligadas à santidade são necessariamente ligadas ao sofrimento? Por que é preciso flagelar-se, jejuar, maltratar o corpo, mutilar-se, dar todos os bens, ser um pária na vida? Por que os humanos inventaram um deus ou deuses sempre ameaçadores, ávidos por sangue e martírio, as bochechas inchadas de tanto triturar a carne das criaturas? O conceito de martírio, holocausto, sofrimento para dar prazer a um deus é para mim inaceitável. O que pensar dos neurônios de Isaac entendendo que era para pôr o filho na fogueira? Todos esses supostos diálogos dos humanos com um suposto deus me lembram a Telesp em dias de chuva, você chamou Londres e te dão Carapicuíba ou Cururu-Mirim. Ninguém entendeu nada até agora (como na microfísica) e os humanos têm mesmo, segundo a Ciência, muitos parafusos soltos entre o neocórtex e o hipotálamo. Não me conformo também com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Para nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranóicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: "sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar". Até parece historinha sadô: "me bate, amor, me corte de gilete, me põe o armário em cima". Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não." (HILDA HILST, Cascos e Carícias.)

sábado, 6 de janeiro de 2007



Praia de Araçatiba, Ilha Grande, Angra Dos Reis/RJ
lugar do meu Reveillon (e sim, a foto ENGANA!)

(OBS: escrevi esse lance aí embaixo mais pra mim mesmo, pra registrar algumas coisas sobre minha viagem de fim-de-ano para relembrar com detalhes daqui a um tempo, mas achei que não havia nada de mal em publicar aqui também. Mas já vou avisando: é um texto bem Querido Diário... ou uma daquelas redações ginasiais: "Minhas Férias...")

A viagem foi uma Aventura de verdade, perigosa e selvagem como tem que ser (por que senão não tem graça!), um lance meio Lost: jovens perdidos na selva, longe da civilização e do luxo burguês, metendo o pé na lama, mochilão nas costas, re-aprendendo a viver com simplicidade...

Nosso destino: Ilha Grande, que fica a 1 hora de barco de Angra dos Reis, sendo considerada parte desse município carioca, e que é famosa por um antigo presídio (uma espécie de Alcatraz brasileira), hoje em ruínas, que costumava abrigar principalmente presos políticos (o mais famoso deles: Graciliano Ramos, que escreveu lá suas Memórias do Cárcere) e pelas dúzias de praias, separadas por morros, que formam o principal pólo de atração turística.

Meus 4 companheiros de viagem, todos simpaticíssimos sociólogos USPianos, já tinham passado um Reveillon em Ilha Grande uns dois ou três anos atrás, mas naquela ocasião tinham ficado parados em Aventureiros, uma das praias mais famosas e agitadinhas da ilha – o point jovem de Ilha Grande. Dessa vez a idéia era mais ambiciosa e mais pirada: queriam dar a volta inteira na ilha, a pé, saindo de Abraão e indo para Oeste, num percurso que os caminhantes de trilhas mais vigorosos fazem em 7 dias de viagem frenética.

Me contaram a história de um jeito que eu não me preocupei tanto. Diziam que era fácil conseguir camping, que todo vilarejo tinha lugar que vendia PF e marmita, que um monte de gente fazia o mesmo trajeto, que era sussa... Além disso, a gente estaria levando um monte de coisas para garantir nossa sobrevivência: uma pá de produtos alimentícios (dúzias de barras de Nutry, café com leite em pó, potes de Nutella, retangulinhos de geléia, cilindros de salame, feijoadas enlatadas, purês de batatas instantâneo, pacotes de macarrão e molhos de tomate, atum em lata, bolachas Maisena...), o fogareiro com botijãozinho de gás, o repelente, o bronzeador e os band-aids, a máscara de mergulho e o snorkel, o baralho e as garrafas de pinga... - só itens de PRIMEIRA NECESSIDADE :P.

Cada um de nós presenteou sua pobre coluna com um mochilão de uns 8kg de peso, recheado com uma mistura liquidificada de comida, roupas e partes de barraca, e com esse trambolhão nas costas nos metemos a pegar umas trilhas que, como eu logo iria descobrir, eram FODIDAS.

O primeiro dia da viagem foi de longe o mais traumático e assustador. Acho que nunca na minha vida me senti tão cansado, exausto e com saudade da minha vidinha sedentária quanto naquele dia. A coisa foi assim: depois de umas boas 8 horas de viagem Sampa –> Angra dos Reis, feita na madrugada (e durante a qual eu dormi mal e porcamente, acordando uma dúzia de vezes a cada manobra pirada do nosso motorista psicopata), chegamos à Angra (cidadezinha feia que dói) antes do amanhecer. Nos mandamos direto pro cais pra embarcar já no próximo barco pra Ilha Grande, que saía às 6h30 da manhã. Caindo de sono e com os olhos meio remelentos, me sentei ali no chão do barco enquanto ele deslizava sobre as águas, e lá pelas 8 da manhã chegávamos em Abraão, ponto de partida de nossa aventura.

A galera não queria perder tempo. A caminhada tinha que começar imediatamente, logo após um café da manhã reforçado, antes que o Sol começasse a queimar forte demais e nos derretesse feito sorvete. Eu tava morrendo de medo de entrar em colapso debaixo do peso daquela mochila, até porque eu tinha certeza que eu era o que tava mais mau preparado fisicamente para essa jornada e que provavelmente seria aquele chatão que sempre fica implorando: “Gente, vamos dar uma paradinha, né?” Mas fomo-nos...


(Mapa de Ilha Grande. Tá vendo a setona vermelha em Abraão?
Saímos de lá, em direção à Oeste. O máximo que deu pra ir sem morrer de exaustão foi Mataris... )

Nos informaram que a caminhada de Abrãão até Saco do Céu demorava 1h40. Ouvimos isso e dissemos: “bah, então é bico!” Depois descobrimos que não se deve confiar nos informantes de Ilha Grande. O tempo que eles dizem deve ser sempre multiplicado por 2. E, se por acaso você está com uma mochila de 10kg nas costas, deve ser multiplicado por 4. Resultado: andamos, andamos e andamos, por ladeiras e descidas e planos, entrando em morros e mais morros, horas e horas na sequência, e nunca que chegava a desgraça do Saco do Céu, que já nos parecia a Terra Prometida e nunca alcançada... E NADA de camping! E NADA de PF! E NADA de civilização! Só trilha e mais trilha e mais trilha, tudo enlameado, barrento, deslizante...

Descobrimos no caminho umas praínhas bacanas – a da Feiticeira, por exemplo, onde descansamos por umas 2 horas e demos uns bons mergulhos relaxantes, era muito massa... – mas a fadiga da viagem preocupava. Deu umas TRÊS DA TARDE e a gente ainda estava caminhando, todo mundo já meio grogue e zumbizão, quase desmaiando, com as pilhas fracas, e num surgia um único camping no nosso caminho pra gente se abandonar a um merecidíssimo descanso.

Eu já estava imaginando o pior: a gente ali, largado no meio do nada, naquela desertidão completa, armando barraca no meio duma praia qualquer, tendo que dormir com o medo de sermos atacados por alguns malucos nativos (aborígenes canibais!!!) ou de sermos expulsos pela Guarda Civil por acampamento em lugar ilegal. Sei que paramos uma hora lá para comer alguma coisa – mó fineza: umas fatias de salame, que não mataram a fome de ninguém, com umas bolachas Maisena molhadas em Nutella como sobremesa – e aí apareceu um tiozão, carioca das Laranjeiras, pra papear com a gente, informando sobre um certo camping do Moisés, que ficava ali por perto. Respirei aliviado.

Esse carioca das Laranjeiras foi o primeiro dos muitos “figuras” que a gente encontrou pela viagem... ficou ali contando histórias escabrosas sobre o submundo de Ilha Grande, comentando sobre o monte de cadáveres que já viu boiando na baía, com “peixe entrando e saindo do cara”... E falava sério, querendo assustar de verdade esses paulistas bobões perdidos no meio do nada...

Com ele tivemos também as primeiras lições sócio-políticas sobre a realidade de Ilha Grande, que vem sofrendo um lamentável processo de privatização que só acentua a desigualdade social já gritante que vigora por lá. Muitas praias, hoje em dia, já são inteiramente dominadas por mansões de ricaços e por pousadas e hotéis caríssimos para a burguesia. A praia de Freguesia de Santana, por exemplo, uma das mais bem afamadas da ilha, está sob o comando de um certo ricão que está praticamente gradeando e vedando o acesso à sua “propriedade”.

Daqui a pouco, Ilha Grande vai se tornar uma espécie de Parque de Diversões da Alta Burguesia carioca, dominado por meia dúzia de milionários. E a discrepância social é gritante, já que, em muitos de seus vilarejos, Ilha Grande tem uma população muito pobre e não-civilizada, principalmente de pequenos pescadores - Saco do Céu e Mataris, por exemplo, são vilarejos que parecem favelinhas: imundos, decadentes, sem luxo algum... sem falar que outros vilarejos, como Aventureiros, nem tem luz elétrica ainda...

Daqui a alguns anos, como pudemos constatar, o tipo de viagem que a gente tentou fazer vai se tornar impossível, já que os campings estão sendo extintos, as trilhas estão cada vez menos frequentadas e os turistas parecem estar sendo desencorajados. Um pouco, com certeza, é por preocupações perfeitamente aceitáveis com a preservação ambiental, já que turista costuma ser uma criatura meio destrutiva; mas um pouco parece ser, também, pelo desejo dos ricões de expulsarem todas as outras classes de lá e comandarem toda a Ilha Grande com suas mansões, suas lanchas e seus jet-skis...

Semi-mortos, nesse primeiro dia, conseguimos nos arrastar até o camping do Moisés para descansar após um primeiro dia que nos deixou pregadíssimos. Fomos muito bem recebidos por outro “figura”, o Dark, um negrinho simpático e com cara de louco de hospício, que meio que cuidava o camping para o dono, seu Moisés, que tinha síndrome do pânico e num era muito de tratar com gente estranha (sem zoeira – parece enredo de filme de terror, mas é tudo verdade...). Nossa sorte é que a senhora esposa do Moisés, patroa do Dark, nos ofereceu, por 10 pilas por pessoa, um prodigioso PF. Nunca comi tanto na minha vida.

Dois dias parados na Praia de Fora, acampados no camping do Moisés, quase sozinhos, retomando energias para retomar viagem depois. No primeiro dia de camping, depois que jogamos um truco e depois de eu ter apresentado ao povo o famoso jogo de baralho para bebuns popularmente conhecido como Sueca, alguém sugeriu a loucura: “vamos dormir fora da barraca, todo mundo?” Todo mundo já estava começando a ficar breaco. Um litro de pinga boazinha já foi inteira nessa primeira noite, e mais um pouquinho do começo da segunda garrafa (e só tínhamos três para a viagem...).

Eu achei que era sério o projeto de dormir ao relento, debaixo das árvores, num saco de dormir jogado na areia, ouvindo o marulhar ali pertinho, a melhor das canções de ninar... Mas o C. fugiu rapidinho pra dentro da barraca, assim que pensou que o resto do povo já tinha pegado no sono – amarelou! O cara instiga, dá a idéia e depois sai de mansinho... Ficamos eu, o Ca. bebum e a P. ali, largados no chão, parecendo loucos. Ainda demorei pra dormir. Eu fiquei ali, só curtindo minha loucura, chapado de pinga e de outras coisas também, olhando para o céu sem estrelas através dos galhos da árvorezona sobre nossas barracas, e pensando que a viagem já tinha valido a pena só por isso, só por essa memória que eu poderia guardar para sempre desse dia bizarro em que sofri mais que Jesus Cristo carregando a cruz, comi salame com Nutella e dormi ao relento...

Depois ainda rolou um passeio de barco com um outro figura que encontramos em Saco do Céu, e que estava rebelado contra as porquices da população local, até que finalmente encaramos mais uma caminhada monstro, saindo de Saco do Céu, parando em Japaris para umas pizzas brotinhos, e depois seguindo direto para Freguesia de Santana, Bananal e, finalmente, Mataris, uma praia horrenda, onde encontramos nosso segundo camping. Acreditem: é uma caminhada absolutamente GIGANTESCA!

* * * * *

No fundo eu curti esses esforços físicos monstruosos, apesar do cansaço, da dor nas costas e no pescoço e das noites mal-dormidas. Eu não acreditava que o meu corpo tinha tamanha capacidade de resistência, ainda mais estando assim, tão mau acostumado a maratonas do tipo... Passado o medo inicial de que eu fosse desmaiar no meio da mata e que não conseguiria completar a jornada, tendo que ser resgatado por helicóptero ou por maca de ambulância, às beiras da morte, comecei a me sentir quase orgulhoso de mim mesmo pela minha audácia e resistência.

Entrei na onda dos meus companheiros sociólogos e fiquei amaldiçoando as férias burguesas cheias de conforto e segurança, achando que não havia nada mais imbecil do que pagar um hotelzinho e ficar ali, na beira da piscina, tostando feito frango assado, sendo servido por garçonetes submissas, tudo seguro e garantido... Muito mais legal era fazer como fizemos: botar um mochilão nas costas e sair andando por aí, desbravando as matas, sujando a roupa e os tênis de lama, conhecendo a gente comum do lugar (e descobrindo figuras humanas inesquecíveis entre a “ralé”), banhando cada centímetro do corpo com suor, tomando tombos violentos e descendo as ladeiras de bunda no chão, feito escorregador...

Teve horas que eu me senti carregando uma cruz e achando que Jesus Cristo era fichinha – afinal, o cara só carregou o lance lá por algumas horas, enquanto que nós, mártires muito melhores!, fizemos por vários dias. Outras horas me senti na Guerra do Vietnã, penetrando em matas selvagens onde poderiam muito bem estar escondidos uns vietcongues sanguinários. Também me senti como um personagem de Lost perdido na selva, em busca do caminho de volta pra praia...

Deu até pra filosofar e tirar lições legais da experiência... :) Por exemplo: pode parecer a coisa mais imbecil e sem sentido do mundo se expor voluntariamente a uma quantidade tão imensa de sofrimento físico, aparentemente sem recompensa visivel. Será que somos masoquistas? Se fosse alguma competição ou esporte, tudo bem: a busca pela glória explicaria a nossa entrega ao martírio... Mas não era. Então como entender que cinco pirados resolvam fazer sofridíssimas caminhadas selvagens, sem nenhum prêmio esperando no fim, sem salvas de palmas esperando na linha de chegada? Mas tem vários fatores que fazem uma viagem desse tipo valer muito a pena, apesar de toda a dor física envolvida.

Por exemplo: os prazeres físicos são muitíssimo mais intensos depois de um prolongado período de privação. Nunca entrei no mar com tanto prazer e me sentindo tão deliciado quanto depois de ter andado na mata por umas três horas, suado, imundo e exausto. Nunca comi um prato-feito com tanta voracidade e achando tão delicioso o arroz-e-feijão mais fuleiro do que no fim de um dia de martírio. Nunca me senti tão bem por não ter nada pendurado nas costas como me sentia depois de soltar o mochilão depois de horas e horas carregando o troço no lombo.

Enfim: vale muito a pena suportar esses sofrimentos todos porque o prazer, depois, é muito maior e melhor, muito mais puro e inesquecível. É o óbvio: você nunca come com tanto prazer quanto como está esfomeado, de modo que suportar o sofrimento de ver a fome crescer é uma boa idéia para ter o prazer imenso de extinguir esse enorme desejo. É a mesma coisa quando a gente fica segurando o xixi ou o cocô, só pra depois sentir um prazer maior ao se aliviar. E isso não é piada não. Titio Freud mesmo dizia que uma das primeiras experiências auto-eróticas das criancinhas é justamente segurar o cocô para gozar mais depois com o prazeroso ato de cagar. E na vida é assim: se você não quer o sofrimento, também não vai ter o prazer. "The pleasure is not the same without the pain..." Você tem que aceitar e abraças as duas coisas - uma não existe sem a outra.

* * * * *

Depois da caminhada monstro até Mataris, todo mundo meio que desencanou do projeto louco de cruzar a ilha a pé e se abandonou ao cansaço. No dia seguinte, nos rendemos e pegamos um barco direto pra Açaratiba, o lugar onde passaríamos o Reveillon, a mais legal das praias de todas as que conheci em Ilha Grande...

O Sol não deu muito as caras durante a viagem toda e voltei pra Santo André tão branquelo quanto era. No 31 de Dezembro, aliás, choveu o dia inteiro: uma garoinha enjoada, interminável, de horas e horas, que nos obrigou a passar o dia inteiro num barzinho de beira de praia, bebendo cerveja desde as 11 da manhã e jogando meia-dúzia de jogos de baralho – truco, buraco, piff-paff, detetive, duvido... Mais à noite, a última garrafa de pinga, guardada para a ocasião, foi devidamente esvaziada para a virada – que se passou debaixo de garoa, nas areias de Araçatiba, quase sem fogos. Foi massa. Mas eu tava tão bêbado e tão com sono e tão com medo de pegar pneumonia depois de tomar tanta chuva na praia, que fugi logo pra barraca e lá pela uma da manhã do ano novo já tava roncando.

No dia seguinte, era hora de vazar. E é claro que aconteceu o previsível: num rolava busão de Angra dos Reis pra São Paulo no primeiro dia de 2007: tudo esgotado. Então tive que ir até Barra Mansa, esperar horas e horas na rodô de lá, para só então subir no Cometa pra Sampa. Resultado: um dia inteiro viajando. Saí de Iha Grande às 6h30 da manhã e cheguei em Santo André às 10 da noite. Querendo dormir umas 30 horas seguidas.