domingo, 30 de novembro de 2008

:: tragédia sem sangue ::


OS INDIFERENTES
,

de Alberto Moravia


A burguesia fede, mas tem grana pra comprar perfume. A vantagem que tem o escritor é que ele pode retratar cruamente este fedor, sem os disfarces e máscaras que, na vida real, com todas as magias de maquiagem e perfumaria, os bons burgueses ocultam dos olhares e olfatos. O romance de estréia de Moravia é mais ou menos assim: um retrato sem concessões de 4 personagens que parecem encarnar nojeiras burguesas - ou patologias decorrentes das instituições burguesas, especialmente a Família. Mas é mais que isso, pois não se limita a uma crítica de classe: é mais um labirinto existencial onde os personagens, como ratinhos desnorteados, ficam chocando-se em intermináveis paredes; e onde o que impera é uma "tendência geral ao descontentamento". Aqui desfilam vidas atoladas num lamaçal de tédio, monotonia e falsidade, que o autor descreve mais para diagnosticar uma doença do que para sugerir uma cura.

Moravia (um dos grandes autores italianos do século 20, já adaptado para o cinema em clássicos como O Conformista, de Bernardo Bertolluci, e O Desprezo, de Godard), é brilhante em "Os Indiferentes" ao fazer esta cirurgia de uma família com lepra moral, com câncer existencial. Ele vai trazendo à tona a bile negra dessas almas, como se sua pena fosse um bisturi descendo carne abaixo, para voltar a emergir besuntado de podridões. Em todo lado, pelo livro, dá pra sentir um olhar meio existencialista, meio comunista, analisando sem concessões, através do microscópio da literatura, algumas almas perdidas - que, hora ou outra, Moravia até parece ver com laivos de compaixão.

Este não é um romance histórico/político: nenhuma vez se situa o lugar e o tempo onde a história se desenrola. Os condicionamentos exteriores são omitidos: aqui os sintomas é que desfilam, não as causas da doença. De modo que "Os Indiferentes" é muito mais um mergulho psicológico no mundo insosso, vicioso e infeliz de seus 4 personagens principais. Quase uma tragédia sem sangue, é uma crônica de uma família burguesa em um momento extremo - de decadência, de angústia, de esfacelamento. Onde o elemento mais trágico é o fato de que nada se quebre, nada se rompa e tudo se arraste com tamanha morosidade. Pedimos sangue, revoluções, renovações, torcendo pela irrupção do novo! E tudo o que o autor nos dá é o testemunho de que no mundo burguês a mediocridade é que é lei e que não devemos esperar que eles, de dentro, consigam aderir à higiene pelo fogo.

O centro da história está num certo combate entre o velho e o novo, o fóssil e a espécie novinha em folha, que se desenha aqui na guerra não declarada entre uma mãe (Maria das Graças) e uma filha (Carla).

Imagino a mãe como uma daquelas ladies metidas a chiques, transbordantes de futilidade, que gostariam de desfilar nas ruas com um poodle bem vestidinho e um casaco feito com a pele de algum pobre animal quase em extinção. Mas ela não pode assumir esse papel de ostentação de luxo pois se acha em maus bocados: prestes a despencar alguns degraus na hierarquia social.

"...o medo da mãe se agigantava; nunca tinha querido saber de gente pobre, nem sequer conhecê-los de nome, nunca tinha querido admitir a existência de gente que trabalha duro e leva vida miserável. 'Vivem melhor do que nós', costumava dizer; 'nós temos mais sensibilidade e mais inteligência, por isso sofremos mais que eles...'; e agora, repentinamente, era obrigada a misturar-se, a engrossar a turba dos miseráveis; aquela mesma sensação de repulsa, de humilhação, de medo que tinha sentido um dia ao atravessar de automóvel uma asquerosa e ameaçadora multidão de grevistas vinha oprimi-la agora; não eram os desconfortos e as privações que a aterravam, mas a vergonha, a idéia de como seria tratada, do que diriam as pessoas de suas relações, todas ricas, estimadas e elegantes; ela se via, enfim... pobre, sozinha, com aqueles dois filhos, sem amigos, já que todos a abandonariam, sem diversões, bailes, luzes, festas, reuniões: obscuridade completa..." (25).

Já a filha Carla é a adolescente que, enojada e sufocada na gaiola da família burguesa, passa a desejar ardentemente estourar em mil pedaços sua tão insatisfatória vida existente. Mesmo que para isso tenha que apelar para os efeitos renovadores das catástrofes.

Como construir uma nova vida sem antes destruir sem dó a velha? A velha vida e a velha mãe. Seu plano de entregar-se ao amante da mãe, Léo, nada tem a ver com paixão, tesão, amor. É apenas a única saída visível que ela enxerga para algum tipo de existência diferente. "Por que recusar Léo? Essa virtude tornaria a lançá-la nos braços do tédio e da mesquinha monotonia de sempre; além disso, por um gosto fatalístico das simetrias morais, parecia-lhe que aquela aventura quase familiar era o único epílogo que sua velha vida merecia... 'Acabar com tudo', pensava, 'destruir tudo...' - e a cabeça lhe girava como alguém que se prepara para pular de ponta no vazio." (9)

Mas e a coragem de quebrar com a tradição e lançar-se no desconhecido? Há em "Os Indiferentes" cenas em que uma náusea quase sartriana toma conta de Carla. Mas isso tudo se passa nos recantos mais recônditos de seu coração cheio de nojo, sem que a mamãezinha sequer suspeite do desejo de subverter totalmente a ordem existente que ferve no peito de sua primogênita. Moravia é insistente na descrição de um cenário abominável, de um desejo ardente de mudança e de uma dificuldade endêmica de entregar-se a essa renovação.

O nojo: "Pequeno mas angustiante trajeto através do corredor; Carla olhava para o chão pensando vagamente que aquela passagem cotidiana deveria ter consumido o tecido do velho tapete que escondia o assoalho; e até os espelhos ovais pendurados nas paredes deviam conservar os traços daqueles rostos e daquelas pessoas que várias vezes ao dia, durante muitos anos, refletiam-se neles... o hábito e o tédio estavam de tocaia e atravessavam a alma de quem passava, como se as próprias paredes exalassem vapores venenosos; tudo era imutável, tudo era repetição..." (23)

A impaciência: "Uma dolorosa impaciência a possuía: 'Acabar', repetia para si, olhando aquela sala escura onde tantos anos de fogo tinham-se consumido em cinzas, e o grupo solene e ridículo que eles formavam em volta da lâmpada: 'acabar com tudo isso', e sentia-se cair naquele seu hesitante abandono como uma pluma num vão de escada..." (36)

O plano de ruptura: entregar-se a Leo, o amante da mãe, no dia do aniversário - o que, supostamente, deveria fazê-la, no dia de seu nascimento, nascer para uma nova vida. "Até mesmo essa infame coincidência, essa rivalidade com a mãe agradava-lhe; tudo devia ser impuro, sujo, baixo, não devia haver amor nem simpatia, mas apenas uma tenebrosa sensação de ruína..." (45)


MIGUEL E A INDIFERENÇA

O Mersault de Albert Camus tem um irmão-de-espírito! O protagonista de "O Estrangeiro", um dos mais emblemáticos dos romances existencialistas, recebia sem lágrimas e sem qualquer sinal de tristeza a notícia bombástica - que deveria ser terremoto abrindo fendas enormes em sua vida: a morte da mãe. Poucos livros começam de modo tão espantosamente frio: "Hoje, mamãe morreu. Talvez tenha sido ontem...". Existe algum outro personagem da literatura que melhor simbolize esse completo indiferentismo, que as pessoas ditas normais consideram uma monstruosidade? Sim: talvez o Miguel de Moravia seja ainda mais símbolo dessa moléstia. Até porque ele possui plena consciência de seu estado e se incomoda por ser como é. O que Mersault não fazia, já que assumia uma atitude orgulhosa, como quem sustenta ter razão em sua frieza e em seu desprezo pelos comportamentos sacramentados pelo coletivo.

No romance, Miguel é irmão da pequena Carla, a rebelde adiada, e filho da dondoca fútil Maria das Graças. Ele é mais uma encarnação de uma patologia que essa família burguesa asquerosa gera - e que quase acaba gerando um banho de sangue. Ele padece duma doença que me parece bem "mersaultiana": o terror de nada conseguir sentir de extremo, de arrebatador, de ardente. Ele é sempre exemplarmente gélido. Sua impecável apatia não parece ter cura. Para ele, tudo tanto faz. Ele é o oposto absoluto de um personagem de tragédia ou de uma donzela apaixonada de algum dramalhão de amor. O termômetro de seu coração marca sempre uma temperatura digna da Sibéria. A única coisa nele que é hiperbólica é a incapacidade absoluta de existir na hipérbole. Ele não consegue se comover, se engajar, pôr fé e mobilizar energia para alguma causa, algum amor, alguma rebeldia. O olhar que possui parece ser adoentado: daqueles que enxerga tudo cinza, sem cor e sem fascínio.

Mas em Miguel há uma cisão entre o que ele é e o que imagina que DEVE ser. Nele há inveja das pessoas que conseguem sentir com intensidade e autenticidade aquilo tudo que o deixa impassível. Seu maior sofrimento é não conseguir sofrer como fizeram os grandes mártires. O que mais deixa-o indignado é nunca sentir uma indignação tão incendária quanto aquelas dos grandes rebeldes e revolucionários. Tudo está tão ruim em sua vida pois tudo e todos, sempre, está no "mais ou menos", no "nem fede nem cheira". Incapaz de amar, mesmo uma mulher apaixonada por ele, e incapaz de odiar, mesmo o canalha Léo que come sua irmã e sua mãe ao mesmo tempo, Miguel é uma alma incapaz de se incendiar.

Rodeando estes três membros da família apodrecida, está uma espécie de hiena ridente e gargalhante: Léo Merumeci, uma espécie de canastrão, um burguês satisfeito e bonacheirão que revolta principalmente por ser feliz. Diz a Miguel, por exemplo: "é claro que você também está insatisfeito, do contrário não teria essa cara sempre fechada de sexta-feira santa. Eu, pelo contrário, meus senhores, faço questão de afirmar que tudo está indo bem, ou melhor, muito bem - e que estou contentíssimo e satisfeitíssimo e que se tivesse que nascer de novo gostaria de ser exatamente o mesmo...".

O retrato que Moravia traça aqui é mais de um labirinto do que de uma solução. Conheço poucos romances tão brilhantemente demolidores da família burguesa, tão mordaz em suas críticas, e que consegue, ao mesmo tempo, levantar personagens que soam absolutamente genuínos e não como meras encarnações de patologias. A maior tragédia, aqui, é que o sangue não se derrame, que o fogo não consuma esse prédio em ruínas, que nenhuma demolição abra espaço para novas construções, condenando essas pessoas enojadas consigo mesmas - e umas com as outras - à perpetuação da mediocridade.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

:: festança noisy! ::


"Se a gente não tivesse inventado o uísque,
teria dominado o mundo!"
algum bêbado irlandês


DJ Lux Lúcio
vai botar som na Funhouse na próxima segundona, no níver do Renóqui, tudo em clima irlandês de bebemoração hiperbólica e com muitas coisas barulhentas e caóticas acontecendo. O cartazete firmezura acima, que presta digníssima homenagem ao clássico game de Maldade Pura e Gratuita Grand Theft Auto, é outra realização da Marcolitus Graphic Design Incorporated, responsável pelos geniais pôsteres da Liga das Senhoras Católicas (os shows foram pro brejo... mas os pôsteres, meu amigo, "entram fácil nos anais da história, sem vaselina" (copyright Pirajuí)!). No treco tem até um retrato fidedigno da minha pessoa (ali à esquerda da boazuda, mandando uns scratches no vinilzão). Fiquei comovido. Ainda tô selecionando as musiquetas aqui, mas já adianto que será um set punque-powerpop-garageiro, cheio de bandinhas que ninguém nunca ouviu mas que acho meu dever apresentar: Makers, Exploding Hearts, The Gits, King Khan & The Shrines, Detroit Cobras, Bellrays, Sonics e coisas do tipo. Se pá ainda boto a "Funhouse" dos Stooges inteirinha, pra matar todo mundo a golpes de saxofone alucinado! Como diria o Matias: GLUE THERE!

terça-feira, 25 de novembro de 2008

:: sobrevôos sobre o planeta terra ::

Provas incontestes da minha incompetência jornalística e da inaptidão da mente humana para o profissionalismo responsável quando sob influência etílica excessiva estão disponíveis na minha desastrosa gonzo-reportagem sobre o "Planeta Terra" - lá na nova edição da Revista o Grito!. Um fiasco daqueles! =) Aproveitei no texto pra xavecar com mimos mil a Mallu Magalhães, mas fiquei sabendo que um certo barbudo pedófilo danadão já tomou conta da pequena... Sou de opinião que isso devia dar cadeia! Camelo sem-vergonha!


Let's tchubaruba!

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

:: tb não gosto da nasa! cadê meu disco voador? ::


ASTRONAUT!
da série: NA CASA DA MÃE JUANA (pt. II)

eu, cosmonauta da galáxia interior,
viajando avoado com as miras na eu-volução,
agora tenho um amiguinho do reino vegetal!
aliado q me deixa grávido de loucuras brilhantes,
que vou dando à luz às dúzias, com parto fácil...
i'm an astronaut in the sky of my own mind!

não é que eu tenha andado por aí a abraçar árvores feito um hippie,
nem que tenha comprado um bukê de rosas para a minha sacada,
nem que tenha entrado na onda vegan.
deixa disso...

algumas destas loucuras que brilham como sóis
minhas redes e radares não retêm!
voam ao meu redor como borboletas,
coloridas, insanas, excêntricas, febris...
que não se deixam aprisionar em vidros
para exibição em galerias ou poemas.

estou agora na torre de observação da nave,
sobrevoando meu próprio planeta,
chocado com os bizarros E.B.E.s (*)
que encontro em meus próprios bosques!
mando-lhes cartões postais desta estranhíssima terra!

(*) vivendo e aprendendo: a Gi me ensinou que "E.T." é para os fracos!
Chique mesmo é ser uma Extraterrestrial Biological Entity!


* * * * *

FAÇAMOS UMA PLACA DE ALERTA!

(muito sincera.)

POR FAVOR, NÃO ME SIGAM:
TAMBÉM ESTOU PERDIDO.

(e aposto que bem mais que você!)

mas se tô te confundindo,
é pra te esclarecer...


* * * * *

>>> JAZZIN' MY EARS
agora já ouço jazz como nunca antes ouvi. os helicópteros lá fora pareciam que estavam girando suas hastes velocípedes dentro deste dormitório onde obviamente – a lógica obriga – eles não estão. já estou ouvindo coisas lá no fundo da gravação de Art Blakey que se parecem com moscas zunindo ou um trombone peidando com vagar.


>>> ESPINAFRE E O MARINHEIRO POPEYE.
(ou OS PRIMÓRDIOS DE MINHAS BOAS RELAÇÕES COM OS V-G-TAIS)

- Ah, sim! Fui uma criança nutricionalmente muito bem educada, Meritíssimo! Que ótimos conselhos não me forneceram! Mamãe e vovó sempre me diziam que eu devia ter boas relações com o reino vegetal! Tudo que saía dele fazia mó bem pra saúde: as fruta, os legume, as verdura, as maionese, os grãozinho, os cereal killer, era tudo supimpa. Mas a gente ouve? De propósito, às vezes, só de birra, e outras por real nojo, recusamos as iguarias verdes. Agarramos hot dog, chocolate, pipoca doce e otras podreiras. E nem notamos que mamãe estava certa - que vegetal é o maior barato! Tenho um deles que é predileto, mas nisto existem controvérsias, e dado que gosto é relativo omitirei o meu em prol de verdades mais absolutas. Como serão as que já concebo concebendo. As dores do parto de grandes idéias!

Do que é mesmo que eu tava falando?

Eu, por ex, tenho até hoje uma visão bastante positiva da moral e bons costumes da cenoura, do alface, do tomate e das cebolas, que certamente são gente de bem, apesar de hoje superados na minha hierarquia por plantinhas bem mais bacanas. Espinafre na infância eu até gostava, mais pelo psicológico do que pelo gustativo, já que o marinheiro Popeye, desenho provavelmente patrocinado por alguma empresa hortifrutigranjeira querendo aumentar suas vendas de espinafre, tratou de nos catequisar. Comendo um potinho de espinafre – mais útil que o potinho de ouro no fim do Arco-íris! - você salvaria qualquer Olivia Palito, ainda que fosse mais sedutora e rechonchudinha, das garras de qualquer Brutus Brucutu, ainda que tivesse tomado mais anabolizantes. Eu tentei. Juro que m'entupia de bolinhos de espinafre, que ficavam nojentos como um Gremlin depois da primeira mordida, mas não me sentia transformar subitamente em Hércules. Taria satisfeito de ser He-Man, até porque na época nem manjava de gregas mitologias e era mais afeito a gritar "pelos poderes de Greyscol!". Nem tinha idéia do porquê falarem tanto em “tregos e troianos” pra dizer “todo mundo”. Como em: “Espinafre é capaz de transformar em valentíssimos heróis tanto gregos como troianos!”. Era o credo infantil da época. As nutricionistas e mamães rejubilavam-se feito cheerleaders em final de World Series.

O que eu estava dizendo é que hoje vô lá nas pizzaria e ao invés da tradicional calabresa, que é feita de porco cortado em rodelinhas, olho com outros olhos horrores que haveriam de me horrorizar em outros tempos: escarola com mussarela, brócolis com alho! Acredita que tô comendo dessas barbaridades? Dá a ilusão boa de que você está fazendo algo bom pra saúde. E vai que dá o maior barato! Sei bem que não, ou as mamães não estariam pondo brócolis e escarolas no prato dos filhos. Ainda não chegamos a um grau tal de civilização. Temos muito a evoluir! Um dia as mamães deste pequeno cosmos – our little corner of the universe! - ainda vão pôr cogumelos mágicos no prato de café da manhã dos filhos, como hoje fazem com os ovos gordurentos com bacon. E diz se não será uma evolução!

Evolução pois permitiria maior eu-volução.

* * * * *

>>> UM BABACA COM AUTO-CRÍTICA
Ê loucurinhas besta. Por eqto, aguardamos a transmissão das grandes epifanias! Dos versos poéticos que entram para a história! Dos sangramentos de Deus que você traz na algibeira! Aquelas descobertas que merecem berro bem mais trovoooso que o “eureka”! Aquelas sacadas que fariam os mestres hindus virem fazer um carinho na sua careca e convidar a escalar as hierarquias do monastério! Tu pensa que é genial, seu xarope? Cê é só um insanozinho temporário, que mal tem memória, que nem por 100 pilas conseguiria construir um narrativa linear, e acha essas mau escritas linhas, ainda tão presas, tão sem luz, tão sem asas, possam alçar vôo a tais extremos de glória... como flechas saindo deles para ti, cravando-se no teu peito, como mil seringas cheias de morfina, curando na hora as dores, os buracos, as incoerências, a fome, direto nas veias do coração, um novo energizante, gives us the rush, the high, the skies... Mas não.

* * * * *

>>> TODO EU É TODA UMA TURMA.

É escroto que vc tenha acreditado nas pessoas que te mentiram isso: QUE NA VIDA A GENTE SÓ PODE SER UMA PESSOA SÓ. Acorda, Cuzão. Numa vida desse tamanho, dá pra botar muito mais vida dentro, por contrabando. Por que hesitar entre o ser alguém e o ser ninguém, como você parece tão insistentemente fazer, ao invés escolher a terceira opção, tão mais legal: ser um monte de gente! Acho que é bem mais divertido. Como uma promoção das vidas: mil vidas em uma. Você pode ser tudo!

Um terremoto nos alicerces do "eu" provará ser muito benéfico. O inimigo é crermos que sabemos quem somos. Essa certeza precisa cair! Precisamos ficar temporariamente sem chão debaixo de nossos pés. Sondando o terreno. Pisando em várias pedras. Brincando com várias possibilidades sobre nós mesmos. Experimentando ser muitos. Notando que o eu é correnteza, como tudo o mais, e nada mais tolo que pensar-se estátua. Seres humanos adoram escrotear suas vidas brincando de estátuas! Devemos brincar é de ser cachoeira!

Não existe eu verdadeiro. O errado é a pretensão do eu de ser algo estável. Ele não é. E é teimoso em não aprender isso. As pessoas infiam em suas cabaças cabeças próprias essa babaquice do sou-só-eu. Eu também costumo ser tonto assim: achar que sou um. É uma babaquice gigantesca. Ser você, caro leitor, é uma bobagem imensa. Você é um completo babaca se você é uma pessoa só. Que desperdício de potencial! Como Woody Allen falou sobre Deus: "uma coisa que se pode dizer dele é que é um baita desperdício de potencial". Se toca, bobão, que ser um só é como comer só um bombom da caixa de bis da vida. Como é que vc vai gostar da vida só sentindo o gosto de ser essa miséria... você?!

A lição é que ninguém é ninguém, apesar de ninguém ser Todo Mundo. A gente é e deve ser conscientemente um conjunto de alguéns. A gente é toda uma turma.

Seja outros. Diferentes do que você pensa ser. Acolha-os. Deixe-os visitar. Segurar o leme. Comandar o barco por alguns momentos. Ninguém irá a pique. Não há risco de naufrágio. No horizonte: a perspectiva de uma sussidão, quando todos se confiarem e se deixarem fluir. É preciso soltar as rédeas que atrelam só um cavaleiro à carroça consciência.

* * * * *

>>> A EU-VOLUÇÃO É EU-DISSOLUÇÃO!
(E ALGO PIEGAS SOBRE BORBOLETAS...)

Deixa eu tentar explicar.

O eu evolui se expandindo, saindo de seu fechamento, rompendo seu casulo, abrindo suas janelas, arejando seus dormitórios, borrifando água nas paredes, deixando passar as correntezas limpantes, loucamente brancas, que arrastam todo o lixo em gulfadas, em furacões, em tufões dignos de Moby Dick. O eu evolui indo na direção de sua própria dissolução. Para ele, o suicídio é virtude. Mas não é bem suicídio como tratamos dele em termos humanos: alguém chegar todo ao fundo do poço e nele se tacar enfim. Traumatismo craniano. É suicidío no sentido de que uma larva se suicida para se transformar em borboleta. É suicídio de quem deixa de ser um eu e passa a ser muito mais. Um vaso que guarda o universo. O preciosíssimo universo. Claro que nesta mísera caverna que sou, posso guardar muito pouco desse descomunal tesouro. Mas tolo é quem não guarda nada. Por ter fechado as portas. E não falo guardar querendo instigar a poupança! Muito pelo contrário. O eu eu-volui exatamente por ser radicalmente anti-poupança. De modo que os tesouros explodem através de suas paredes. As paredes do eu param de guardar os tesouros e as moedas de ouro e os diamantes e as esmeraldas íntimas voam afora, aladas, quase machucantes de tão belas. Temos todos dentro de nós uma gaiola de borboletas coloridas, que poderia deleitar o olhar e o aroma encantar, mas que mantemos à chave. Deixa voar tuas borboletas íntimas, leitor!

Voar não para que tu as perca. Voar para que, voando, elas alegrem o olhar, dulcifiquem as almas, coloram os ares, e para que sintas-te alegre por ter tantos alegrado, muitos mais do que somente a ti mesmo.

* * * * *

>>> O CÉU (HIPóTESE TEOLÓGICA)
Se o Céu existisse, acho que seria impossível chegar lá sozinho.

* * * * *

>>> LIÇÃO DE SABEDORIA

ESPREGUIÇA-TE
COMO SE QUISESSE
COLHER AS ESTRELAS DO CÉU.


* * * * *

>>> NÃO À ABERTURA PELA MOTOSERRA!
Quebrar fronteiras. Ir dar uma passeio pelas estepes e periferias, longe do teu centro. Perder o centro não é perder o mastro, levar o navio a pique, estraçalhado contra o rochedo. Passear pelas margens ao redor do centro, conhecendo esses bosques, essas cavernas, essas ramificações, que como gânglios pulmores vão indo para mais fundo em nosso ser, é jornada que recompensa. Expandir esse centro. De consciência. Consciência se espreguiçando, indo com força em direção ao despertar. Como se quisesse colher do céu as estrelas. E re-espalhá-lhas pelo cosmo com mais lustro e brilho e luz. Não abra a tua cabeça com um martelo ou motoserra. Abra a tua cabeça como quem abre uma janela, e sabendo que lá fora, pelo cantar dos passarinhos, é sol e é luz quem chegam pioneiros.

Abre-te. Como se fosses uma janela.
Se chover, molha-te.
Se nevar, gela-te.
Se flecharem, fira-se.
Mas mantenha-as abertas e se abrindo.
Pois um dia haverá Sol.
Um Sol que nunca conheceram os que, por medo, viveram no escuro.

* * * * *

>>> OUT OF THE MATRIX!
Claro que ainda estou confinado. Mas sinto soldadinhos nos limites das minhas paredes obrando para derrubá-las. São janelas enferrujadas que estou empurrando pra fora com toda a força, na esperança de que se abram finalmente, num repente. Nós nos confinamos ao confinar nossa consciência a essa idéia fixa e alucinatória do nosso próprio eu! Esse conjunto de crenças e ilusões que olhamos magnetizados. Olha pra outro lado, consciência! Olha para eus que foram, eus que você teme ser, eus que quer ser, eus que você imaginou que foi ou... melhor: OLHA PRO MUNDO, consciência! THE TRUTH IS OUT THERE. Lá fora. Sai da Caverna Interior, da Jaula Fedorenta, desse Poço de Podridão, que é teu euzinho!

* * * * *

>>> BE AN UMBRELLA!
Quero ser dessas pessoas que se esquecem nas coisas. Que tratam-se como se fossem guarda-chuvas quebrados, esquecendo-se em qualquer lugar, até porque é dia de sol. Me perder lá fora. Pois se perder é se achar. Temos um universo como moradia e habitá-lo é nossa glória!

* * * * *

>>> A GENIALIDADE DE TUDO.
A genialidade de tudo se desnuda quando arrancamos as cortinas da consciência com os puxões benignos da erva santa erva. Ainda bem que eu não tenho cabeça! E ame-me ou deixe-me em paz.

* * * * *

>>> MOSTRE A BUNDA PARA A POUPANÇA.

O CONCEITO DE POUPANÇA DEVE SER DIZIMADO. EXPULSO DO MUNDO DA ALMA COMO O PIOR DOS VENENOS! Nada é para ser poupado. Pois alma não é cofre nem carro forte. Falo em alma e temo que as pessoas pensem de modo reliogoso tonto. É justamente o contrário. Estou falando que tudo dentro de nós morre com nosso corpo. Que na verdade somos tipo um saquinho plástico fácil de romper. Não convêm deixar nada nele! Tudo lá pra fora! Evacuar o prédio da mente como se fora um prédio em chamas!

As pessoas não percebem que a qualidade da experiência vivida é infinitamente mais importante que essa besteira da possessão. Vraiment demoniaque! Das almas que caíram em más graças, dizemo-las possessas. Estamos todos possessos pelo demônio da posse. E tudo que se pode ter nos será tirado. Pois a vida mesma nos veio emprestada. Nossa tocha está queimando em nossas mãos, em nossos corações, mas não somos os donos desse fogo. Participamos de uma corrida de revezamento. Logo sairemos da prova, fornecendo a chance para novos corredores.

* * * * *

>>> A MIRROR TO THE UNIVERSE
Mente foi feita pra ser jarro vazio onde o Universo se derrubar e se espelhar. Faça-te vazio para que o Universo caia dentro de ti. Com a Luz de uma explosão de AURORA BOREAL! Isso foi um delírio místico. ME FAZER ESPELHO. Onde o Universo todo se reflita. Verossímil e totalmente. Achas que conheces o cosmos? Dele só sabes um grão! O que nele consegue entrar pelo teu buraquinho de fechadura é miséria, miséria! Ninharia! Somos todos pequenos rastores, ratinhos, rastejôres, répteis, ralé das ruas, que ficam escondidinhos em seus porões malcheirosos, observando uma frestinha de luz mísera que se abre quase nada para um esplendor lá fora de que fugimos como loucos.

* * * * *

>>> REGINA SPEKTOR

"Love is the answer
To a question
I've forgotten.
But I know I've been asked.

AND THE ANSWER'S GOT TO BE LOVE."

* * * * *

>>> UMA FANTASIA
Mamãe, quero me mudar pra Amsterdam!

:: you are my sweetest downfall ::



This is how it works:
You're young until you're not
You love until you don't
You try until you can't
You laugh until you cry
You cry until you laugh
And everyone must breathe
Until their dying breath

No, this is how it works:
You peer inside yourself
You take the things you like
And try to love the things you took .
And then you take that love you made
And stick it into some
Someone else's heart
Pumping someone else's blood
And walking arm in arm
You hope it don't get harmed
But even if it does
You'll just do it all again...




I never loved nobody fully
Always one foot on the ground
And by protecting my heart truly
I got lost in the sounds I hear in my mind.
All of this voices (i hear in my mind)
All of these words (i hear in my mind)
All of this music (and it breaks my heart)

Suppose I never ever met you
Suppose we never fell in love.
Suppose I never ever let you
Kiss me so sweeet and so soft.
Suppose I never ever saw you
Suppose we never ever called.
Suppose I kept on singin' love songs
Just to break my own fall

(just to break my fall)





You are my sweetest downfall.

The history books forgot about us.
And the Bible didn't mention us.
Not even once!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

:: o grande estourador de bolhas ::

(mirò)

da série: NA CASA DA MÃE JOANA
(ou: viagens que meus amigos do reino vegetal me fazem ter.)

:: O GRANDE ESTOURADOR DE BOLHAS ::

"Para ficar sábio é preciso ser discípulo da morte. É preciso olhar para o abismo face a face, para compreender que o outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte. São apenas duas as coisas que a morte nos diz de sua beleza crepuscular, resumo de toda sabedoria: Tempus fugit, portanto, Carpe diem."

(RUBEM ALVES, As Cores do Crepúsculo)

O professor de "Sociedade dos Poetas Mortos", como lição que servisse como porta de entrada para a sabedoria, dizia aos seus discípulos: "remember, folks: you're food for worms" (lembrem-se, companheiros: somos alimento para os vermes). É preciso que esse trágico destino seja sempre relembrado! Porque não - nós não vivemos na devida consciência da morte. Lembramos muito de vez em quando que somos bonequinhos de matéria, carne e osso e veias recheando um esqueleto, com o túmulo já aberto, nos esperando. A vida cotidiana é, dizia o Ernest Becker, uma imensa campanha de negação da morte. Todo mundo finge que é eterno. Não surpreende, pois, que nos amemos tão pouco e que vivamos tão mal. Aprender a morrer é aprender a viver.

E é o contrário do que pensam: que tanta morte na tv, no cinema, no jornal, amplifique e expanda nossa consciência da morte. Como se fossem vários mementos moris que a indústria cultural nos bombardeia diariamente. Mas será isso o que nos ocorre, frente à sanguinolência hiperbólica da mídia: adquirimos a percepção vivida da nossa finitude? Ou isso gera muito mais uma indiferença, um embotamento, um dar-de-ombros, uma sinfonia de bocejos desinteressados? Um hábito. A morte torna-se tão comum como um pão com manteiga. E ninguém fica tendo consciência de um pão com manteiga.

Que criaturas efêmeras tão inconscientes de sua efemeridade! Iludidas pelos holofotes e pelas vitrines, pelos tubos catódicos e pelos carros do ano, pelas fofocas e pelas putarias, pelos dias que sempre teimam em nascer e as estações que voltam sempre parecidas - o inverno sempre frio, o verão sempre quente... - ficamos com essa noção de que o tempo gira em movimento de rotação. Que há retorno. Mas não há! Na estrada do Tempo é impossível transitar na marcha-ré.

OS INSTANTES NÃO VOLTAM JAMAIS.

Jamais. Cada momento é crepuscular. Nunca mais vai voltar. E não, na minha vida normal, na nossa triste vida normal, não vivemos em plena consciência disso. Tanto que os momentos em que temos essa "sacada" são quase de iluminação e epifania. Algo tão simples: essa percepção da verdadeira natureza do Tempo, que talvez seja libertação. Que talvez seja a chave que faça a vida desabrochar ao invés de minguar. O caminho, talvez, inclusive para o amor. Amará aquele que souber que os instantes não voltam jamais.

Saem milhões de pérolas brancas esvoaçantes de linda cor e luz de dentro de nós quando entendemos essas coisas. Que os segundos não voltam jamais. Que é preciso viver numa revirgindade perpétua da emoção. Sempre ser virgem para ser deflorado pelo momento que vem. Que é. Que sempre é. Pois o momento é uma bolha que explode. E quem o alfineta? O Tempo. Esse grande estourar de bolhas.

Quem vive confortavelmente embalado por esse som das ondas que fluem está na sabedoria, está na eternidade. Navegando nas águas da eternidade, mesmo que por tempo efêmero, mas olhando realmente para elas. Face a face. Viver sabiamente é viver de olhos abertos durante nosso passeio fluvial, na catarata corrente do fluxo, contemplando com alegria as águas da eternidade. Que são belas. E fizemos parte delas, por um tempinho. Só conseguimos ser eternos por um tempinho. Só nadamos na eternidade por um tempinho. Somos efêmeros nadando no eterno.

* * * * *

CADA INSTANTE É IRREPETÍVEL.

OS MOMENTOS NÃO VOLTAM JAMAIS.

Verdades que precisam se fazer CaRNe!

Não é pra analisar linguagem! É para analisar a verdade que a linguagem carrega. QUANDO O DEDO APONTA A LUA, O TOLO FICA OLHANDO PRO DEDO. Até dedos feios podem apontar para lindas luas. Frases feias podem conter verdades reluzentes. Não é só grudada à beleza que viaja a verdade. Ela às vezes se esconde, feito grego no cavalo de Tróia, por trás das vestes mais insuspeitas. Amargas, azedas, sanguíneas, viscerais. Pode vir de contrabando, por baixo do pano, como uma carta que se roubou na hora de embaralhar.

Fornecer peso de “nunca mais” a cada instante.


Se bem que falar "instante" já mutila o todo do Tempo. Falar em "segundo" já é falar numa invenção humana. Não é que o Tempo seja tipo uma régua, cheia de fiozinhos sujando o horizonte. Não é assim que o Tempo é! Percebo mais como um fluxo limpo, apesar dos banhos de sangue que gera. Sem estacas demarcatórias. Estas, nós é que inventamos. É o que se chama dias, semanas, meses, anos, séculos. Riscos pretos na nossa régua que impedem de ver direito o desenho lá atrás. O Desenho lá Fora.

O Tempo não tem a pele mutilada como o nosso tempo. Que é contável. O verdadeiro Tempo não se pode contar. Quando se começa a contar, volta-se à mutilação e à miopia. Não é contar o que se deve. É embarcar. Simplesmente embarcar. Nadando pelas águas da eternidade de olhos sempre bem-abertos. Vivendo cada evanescível momento com a clara consciência de sua raridade, sua emergência, sua irrepetibilidade. Tudo, sempre, é irrepetível. Isso que agora é, nunca mais será assim. Não volta. Os romanos não voltam. Os gregos não voltam. O século 18 não volta. O ontem não volta. O hoje também não. O amanhã não volta. Não há dois amanhãs iguais.


* * * * *

Perceber que os instantes não retornam jamais é o mesmo que tomar consciência da morte - ela que não é um momento, mas um processo: a perpétua dissolução e reconstrução dos átomos que dançam, fluindo.

Todo mundo diz saber que sabe que vai morrer. Mas quase ninguém vive nessa consciência. É difícil habitar esses desertos. Mas é necessário. Pois só à beira deste abismo, quando se percebe que a morte é real, que se é somente um corpo de carne nadando à deriva nas águas da eternidade, faz-se a compreensão de que os instantes não voltam jamais e abre-se assim a porta para o amor, fonte daquele céu em vida que é o único que vale. Isso é sabedoria. Não há sabedoria sem essa consciência de efemeridade. É a única coisa que pode pintar de reluzentes cores a pele dos momentos. E é neles, e só neles, que se pode ser feliz.

A gente não se percebe mutuamente efêmero. E o amor é difícil de nascer se não for desse fundo de efemeridade. Talvez não exista amor sem essa tomada de consciência. Só há amor porque há morte. Melhor: só há amor quando sabe-se que há a morte. Por isso os animais não amam. No universo conhecido, só há amor para seres que foram capazes de desenvolver a auto-consciência a tal grau que notaram-se efêmeros. Macaco algum consegue, ou estaria já andando com cara de homem.

Só têm fome de amor aqueles que sabem que vão morrer. E quando a gente percebe que vai morrer é que a necessidade de amor é maior. Por isso na maior parte do tempo não precisamos de amor. Pois esquecemos que somos mortais. Alguns habitam esse esquecimento como os favelados um barraco no morro. Vivem mal.

Não é que a gente dure para sempre. Não tem nada a ver com isso. Claro que morremos. Mas vivemos na eternidade que é o do Universo fora de nós, que existe de modo independente de nossa percepção dele. Não é porque vai se prolongar indefinidamente no futuro que o tempo é eterno. É eterno pois agora ele é imensurável. Agora é que é eterno, não na "eternidade" dos cristãos, que é pra depois, que "um dia vai começar". A eternidade não VAI começar - a eternidade JÁ É! Estamos nela. Nadamos nela. Estamos rodeados por ela. Mas frequentemente de olhos vendados.

(A salvação está menos na inteligência do que na abertura da percepção. É o que tantos já disseram, que a sabedoria não está com a razão, mas que é preciso de muita razão e trabalho racional para que a razão descubra sua própria insuficiência e a necessidade de se transcender. Pois a razão é gaiola. Pode haver um grau tamanho de fusão no real que a morte desaparece como problema. )

* * * * *

Talvez por isso a arte, os poemas, os quadros, as múmias, as fotografias: tentativas de reter em um cofre as bolhas de sabão que o Deus-Tempo estoura. Cronos devorando seus filhos. Nós tentando resgatar os momentos do massacre. Querendo reter os instantes irrepetíveis. O que nos dá a ilusória sensação de permanência. Mas talvez seja uma coisa como um pássaro se debatendo numa gaiola a consciência querendo se auto-registrar e registrar as acontecências do mundo. Registro eterno é burocracia. Nossa consciência vive em estado de burocracia até o limiar da Iluminação. A Iluminação exige o fim da burocracia mental! Saber que se precisa registrar é um passo. Pois há quem viva na completa vulgaridade. Sem perceber que cada bolha de momento é infinitamente rica e irrepetível. Somos todos nós, quase a maior parte do tempo. A descoberta do fluxo de consciência pelos escritores modernos deve ser decorrência dessa percepção que faz o artista: da efemeridade dos conteúdos da consciência. Que é eternamente fluida. Ao menos entre nascimento e morte. É tudo o que podemos saber. Mas pra quê registro? Pra quê tanta encanação com a retenção? Frente aos instantes que passam, cada um desfilando pela primeira e última vez no palco do universo, o registro é menos importante do que a atenção ao espetáculo. O importante é vivê-los, os instantes, degustando-os. Comer um a um como o mais suculento dos morangos.

sábado, 8 de novembro de 2008

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

:: a doçura de ser dois? ::



Fala-se muitas vezes da doçura de ser dois. O próprio Sartre, homem tão friamente racional, fazia sua esta fórmula. Acreditemos que ela não é um lugar-comum banalizado por um romantismo falso que se exprimiria em um lirismo insípido. Longe disto. Trata-se na verdade de uma evocação que toca a tão séria e difícil questão da felicidade, naquilo que ela tem de essencial. Em todo ser humano há uma sede viva, uma inquietação vital, à qual só o amor é capaz de responder.

Ninguém pode contestar que pela nossa própria constituição, pela nossa estrutura ontológica, pelo nosso estilo psicológico, a solidão está profundamente incrustrada em nós e representa uma ameaça permanente. Nascemos na solidão, morremos nela, e toda a nossa vida se desenrola sobre o signo dela. Mas, por estranho que possa parecer, ela mesma veicula em nós este desejo tão ardente de amor que só cresce à medida que somos cada vez mais ameaçados de ser reduzidos ao estar-só. Este conflito, que parece decisivo, tem o seguinte desenlace: a solidão profunda gera o desejo profundo de amar. Quanto mais se está só, tanto mais se quer amar e ser amado.

E, como a solidão é uma negação e uma privação, algo como o nada em relação ao ser, ela não resiste à afirmação do amor que um dia pode esboçar-se em nós. É que, na realidade, apesar das aparências, o homem não nasceu para a solidão. Carrega-a dentro de si como uma tentação e ao mesmo tempo como um mal temível. Mas a sua existência não é uma complacência com a solidão. Ela é a busca obstinada do amor.

Vivendo por si mesmo, o homem está ancorado na solidão. Mas a aspiração dele não tem por objeto – longe disto – o estar-só, mas o ser-a-dois. Duas solidões que se encontram, se superam e se lançam para fora de si mesmas, formam um amor.

E o amor não é, em suma, senão esta doçura de ser dois, que evocamos no início. É a esta doçura que se opõe a tragédia do estar-só. Talvez seja necessário viver esta tragédia da maneira mais profunda possível, talvez seja necessário atingir esse momento em que o coração estoura e onde o espírito morre, para compreender que o único caminho da felicidade humana é o do amor. Lembrem-se disto sempre os que receberam a graça de viver a doçura de ser-a-dois, e estejam atentos para não fazer soçobrar o seu privilégio em uma solidão que recriarão sob o impulso de seu egoísmo nefasto. O Eu só é verdadeiro se puder ser pronunciado diante de um Você."

* * * *

"Não é raro encontrarem-se homens tão infelizes, tão isolados em si mesmos, tão amargamente desiludidos, tão convencidos de que para eles não há outra saída senão o fracasso, que chegam ao ponto de não mais se atreverem a amar. Afundados na sua tristeza, acreditam fechados todos os caminhos, imaginam que para eles se acabou qualquer possibilidade de amor. Não somente vivem o fato do não-amor permanente, que parece ter-se tornado invencível, mas chegaram ao ponto de nem sequer entrever uma possibilidade no amor. Acreditam-se proscritos para sempre do país do amor e condenados a vagar eternamente pelos caminhos sem luz da solidão. A alegria de amar estará reservada exclusivamente a outros. Para eles sobra apenas o estar-só, com sua cor embaciada, seu gosto amargo e o seu absurdo.

Acumularam tantas feridas na existência que se consideram incapazes de amar. Não é o amor que se recusa a eles, são eles que o recusam. Vêem nele um sonho de que seriam indignos, abandonando-o àqueles que têm a audácia de ir em busca dele. Só conheceram e só conhecerão sempre – assim pensam – o insucesso; não têm outro universo senão o inferno da solidão. Sufocam o seu desespero, fingem não dar importância ao amor, deixam-no para os outros, que lhes parecem predestinados às alegrias tão invejáveis do ser-a-dois. Quanto a eles, o único destino que lhes cabe é o de estar-só. E se consomem no amargor, vegetam em seu casulo fechado, ao qual ninguém tem acesso, por decisão deles mesmos. São irremediavelmente infelizes.

Em cada um de nós dorme uma pontinha de masoquismo. Neles esta pontinha se transforma em aguilhão e os dilacera. Ninguém pode naufragar em uma solidão masoquista. O amor não é privilégio de ninguém e às vezes é quando se pensa estar mais longe dele que se lhe está mais perto. O amor se esboça como possibilidade no horizonte de cada homem. Para chegar a ele, basta não ter medo dele, nem de si mesmo. É pela fé em si e pela audácia calculada que escapamos à solidão, a qual, a despeito das aparências, apesar de estar sempre aí, permanece irrevogavelmente superável. O homem só é homem na medida em que estiver aberto ao amor e acreditar neste, ao menos como algo possível, não obstante todos os insucessos.


[charbonneau. "crônica da solidão"]

terça-feira, 4 de novembro de 2008

:: let's go trippin' ::


TU NÃO TE MOVES DE TI.

O triste desse lance de "Destino" é que a gente só pode ter um. Ou não? Entre o berço e o túmulo, estou preso a uma pessoa só. Sim, sei que ela é mutante e que, num certo sentido, vou morrer tendo sido mais de mil. Bem mais! Mas nunca vou ser um imperador romano, um faraó egípcio, um filósofo grego, um pintor renascentista, um compositor alemão, um apóstolo de Cristo, um proletário revolucionário, um rock-star inglês...

Tem tanta gente diferente de mim que eu gostaria de experimentar ser! Isso que nem comecei a falar sobre os bichos. Tem um monte que eu queria saber qualé a sensação de ser. Águia de super-olhos planando nas alturas. Velocíssima pantera correndo pelas estepes, mais rápida que o vento. Peixe também deve ser legal e refrescante, mas não queria ser dos muito miudinhos, que são logo comidos pelos peixes maiores e tubarões, que a natureza num é brincadeira, cumpadre, nem dos muito estúpidos, que não percebem que a isca está presa no anzol. Golfinho também deve ser o máximo, também. Sempre tratados com altos privilégios. E as garotas adoram golfinhos. Já vi nos filmes.

Ser árvore acho meio monótono e insosso. Tudo bem que sou sedentário e inimigo dos esportes, mas ficar a vida toda plantado também já é demais. Só toparia se pudesse ser uma árvore andante, como lembro de ter visto, acho, em algum filme de terror, conto-de-fadas ou Halloween dos Simpsons. Além disso, as pessoas me arrancariam frutas sem misericórdia. Sem nem suspeitarem que dói tanto quanto se me arrancassem um dente! Um filho! E os pirralhos me subiriam nas costas - digo, nos galhos... - achando que só porque não reclamo estou gostando de carregar no lombo tanto peso. Corro até o risco de que algum obsoleto casalzinho de apaixonados queira brincar de meter um canivete no meu tronco para desenhar um coraçãozinho com dois nomes dentro. Essas viadagens. Nem sabendo que em mim doeria como uma tatuagem que não pedi que me fizessem! E como seria duro, para mim, observar imóvel o espetáculo do amor alheio. Isso é duro. Sei bem.

O Sonic eu curtia quando pivete, zerei várias vezes, mas porco-espinho nem tenho muita vontade. Eles não podem se abraçar. Os humanos são capazes de conhecer o calor humano, mas e o porco-espinho, como é que faz pra conhecer o calor suíno? Num rola!

Ser minhoca, barata, rato, lesma ou pernilongo eu não tenho ambição. No fundo acho que seria até uma perspectiva interessante, mas é complicado ser essas coisas num lugar onde existem predadores de tão extrema periculosidade como são os seres humanos. Homem é um perigo! Os animais quase todos só são assassinos por causa da barriga que ronca: ou cê mata, ou cê morre de fome. Só o homem é assassino por capricho, por nojo, por distração ou por casacos de pele. O único que mata por esporte e esmaga debaixo da sola por sentir-se esteticamente ofendido. Que culpa tem as cucarachas se nasceram feias e meio asquerosas aos olhos humanos? Merecem por isso ser trucidadas? Tenho certeza que, aos olhos de algum barato, aquela baratinha que você acaba de reduzir a uma gosma era uma gatinha, um tesãozinho. E era filha de um casal idoso de baratas que, coitadas, vão sentir duramente o baque deste luto...

Sei bem que estou sentimentalizando a natureza, que tá longe de ser essa coisa bonitinha dos poemas bucólicos. Um monte de bichinhos que ficam se devorando uns aos outros, se matando uns aos outros, se perseguindo uns aos outros, eis aí o que a natureza pode ser que seja. Sei que existem as tais das simbioses, das uniões vantajosas, dos hospedeiros benfeitores, dos cogumelos mágicos e dos microorganismos bacanudos, tipo os lactobacilos vivos do Yakult. Mas, olha bem: a Natureza é também um imenso oceano de sangue!

E não sou muito melhor não. Por exemplo: pernilongo que me impede de dormir eu mato com prazer ao invés de conduzi-lo à janela mais próxima. Nem me pergunto sobre o valor da existência daquele organismo vivo que pode muito bem representar um dos mais espantosos aglomerados de matéria da galáxia conhecida. Mato sem pestanejar! É ser assassino desses pilantras ou passar a noite em claro. Por que com criaturas assim não há diálogo! Ia dizer o quê? "Por gentileza, Vossa Senhoria Pernilongo, seja sensato! Não tens remorsos de consciência por faltar tanto com o respeito a seu próximo que amanhã madruga para ir a seu nobre ofício? Sei que semelhantes não somos, e por isso eu até agradeço, mas já que calhou de termos que rachar este quarto nesta noite, por que não nos trataríamos de modo civilizado?" Mas não. Com essa gente não se pode usar de diplomacia! Eles não tiveram educação católica. São uns bárbaros, uns vândalos. Uns bebedores de sangue! Cada poro do meu corpo é visto somente como a abertura de um poço onde eles podem matar suas sanguinárias sedes! São uns ladrões do petróleo que trago nas veias. Meu ouro vermelho escuro. Faria essa pergunta cabeluda a Santo Agostinho ou Tomás de Aquino se pudesse encontrá-los: "que pode ter pensado Deus quando criou os pernilongos?" Ahhhh! Ia ser preciso muuuuita teologia sofisticada para me explicar isso! Por isso ser pernilongo também não ambiciono. Até porque, se entrasse em quarto humano, seria como adentrar a câmara de gás de um campo de concentração nazista. Sem perdão.

Nascer foi de longe a coisa mais estranha que já me aconteceu. De repente acordei num lugar e num tempo e numa situação que não pedi, não escolhi e não entendi até hoje porquê. Por que 1984? Por que São Paulo? Por que Brasil? Por que filho de meus pais? Por que, mais ainda, homo sapiens? E por que terráqueo? Mais ainda: por que sou? Quem me içou para fora do poço do nada? E por que demoraram tanto? E por que não demoraram mais?

Agora todos os outros destinos estão para mim perdidos. Só posso imaginá-los! E não nego que seja divertido. Se a vida nos limita a um único destino, pelo menos quem é homem tem o privilégio de sonhar com mil outros.

Tudo é um grande mistério. Me ocorre frequentemente essa questão absurda: onde estava eu antes de 1984? Já que não estava ocupado sendo esse babaca que vos fala, me parece mais ou menos lógico que "eu" estivesse livre para ser outras coisas por aí. Será que as fui e serei? Outros destinos: será que os vivi e esqueci? E que outros viverei, me esquecendo deste? O que hoje acho é só isso: que posso correr até o fim do mundo, mas não me movo de mim. E que posso nadar na correnteza do tempo, sempre mudando, mas sempre moro preso neste corpo perecível que, daqui a pouquinho, vai ser só um punhado de pó que o vento soprará pelos desertos do esquecimento.

:: shielded by familiarity's mist... ::


"Life and the world, or whatever we call that which we are and feel, is an astonishing thing. This mist of familiarity obscures from us the wonder of our being. We are struck with admiration at some of its transient modifications, but it is itself the great miracle. What are changes of empires, the wreck of dynasties, with the opinions which supported them; what is the birth and the extinction of religious and of political systems to life? What are the revolutions of the globe which we inhabit, and the operations of the elements of which it is composed, compared with life? What is the universe of stars, and suns, of which this inhabited earth is one, and their motions, and their destiny, compared with life? Life, the greatmiracle, we admire not, because it is so miraculous. It is well that we are thus shielded by the familiarity of what is at once so certain and so unfathomable, from an astonishmente which would otherwise absorb and overawe the functions of that which is its object."
[shelley. a defense of poetry.]

sábado, 1 de novembro de 2008

:: filmes da mostra, pt. 2 ::


:: LOVE LIFE ::
(Liebesleben), de Maria Schrader, Alemanha, 2008.

Já se tornou enjoativo de tão clichê evocar a clássica frase de Pascal – “o coração tem razões que a própria razão desconhece” – quando falamos sobre filmes de amor. Mas como evitar? Como um bumerangue, essa pérola retorna sempre que nos deparamos com sentimentos inexplicáveis, atrações absurdas e relacionamentos que o cérebro sente dificuldades em compreender porquê se estabelecem e se mantêm. Os neurônios, se confrontados, acabam apelando para a velha técnica de transmitir a culpa do crânio para o tórax: “são os desvarios do coração...”.

Em Love Life, excelente filme de estréia na direção da atriz alemã Maria Schrader (a moça aí ao lado), o espectador é confrontado com esse velho e sempre-novo mistério. Na saída da sessão, em meio ao burburinho das opiniões que este nobre repórter roubou com seus ouvidos de espião, era comum o seguinte comentário sobre Yara, a protagonista de Love Life: “Que razão tinha ela – que ‘tinha tudo na vida’! - para se tornar amante justo desse cafajeste?” Essa sensação de incompreensão é de fato algo que o filme nos comunica. Mas, conforme a narrativa progride e mergulhamos cada vez mais fundo na alma desses personagens, notamos que nenhuma das loucuras emocionais deles são assim tão inexplicáveis. E que, para explicá-las, é preciso recorrer não a razões, claro: são as irracionais emoções que explicam amores irracionais. E irracionais são quase todos os amores.

A premissa parece simples: forasteiro misterioso volta das brumas do passado, forçando uma família a reabrir suas feridas e retirar os esqueletos do armário. Parece familiar? Talvez, mas Love Life aborda o tema com frescor e originalidade, contando com interpretações genuínas e uma notável densidade psicológica. Nossa protagonista, a jovem universitária Yara, acaba se envolvendo numa relação tensa, absurda e dolorida com Arie, homem bem mais velho, que ressurge com inconfessas intenções de vingança contra os pais da mocinha.


Explorada e humilhada em relações sexuais repletas de sado-masoquismo, que lembram cenas de O Último Tango em Paris, do Bertolucci, ou O Império dos Sentidos, do Oshima, a garota acaba embarcando numa angustiante viagem de descoberta de suas raízes.

O amante é, desde o início do filme, retratado como uma espécie de vilão impiedoso que veio para fazer escândalo e bagunçar o coreto da família (aparentemente) feliz. Ele é um monstro que parece criado por uma feroz feminista querendo nos convencer de que os homens são capazes das mais repugnantes baixezas. A raiz do mistério está em descobrir porque Yara, que é casada com um marido ultra amoroso e atencioso, cai nas garras desse homem tão pouco amável. Nelson Rodrigues explica – talvez até melhor que Freud!

Não se trata de um Don Juan que coleciona conquistas de ninfetas ou de um “tiozão” que come lolitas por esporte. Arie, aliás, não tenta jamais seduzi-la ou assediá-la. Trata-a sempre com uma frieza que beira a crueldade. Na cama, ele a penetra sem carinho, com pressa e violência. Depois a atira porta afora como um brinquedo que se cansou de usar. E, por alguma profunda razão, entranhada nos abismos insondáveis do ser dessa complexa mulher, ela está, de algum modo, fascinada por aquele estranho tão grosseiro e maligno. E ela, uma jovem que tem tudo para estar razoavelmente satisfeita com sua vida, se lança no redemoinho de um caso de amor condenado.

Esse estranho e desigual casal tem pouquíssimo em comum – somente há, em cada um deles, uma vaga insatisfação, uma angústia indefinível, um vazio no peito que parece não ter causa. Ela, desanimada com seus estudos universitários, com a relação desagradável com a mãe tirânica e com a mornidão do maridão (que é excelente pessoa), parece ter fome de alguma aventura, alguma mudança, alguma besteira. Já ele, por sua vez, homem rodado, com milhares de quilômetros já percorridos, parece ter caído num estado de indiferentismo e tédio total. Nada o surpreende, nada o empolga, nada o comove. Quase a versão cinematográfica do Miguel, de Alberto Moravia, no clássico romance "Os Indiferentes".

Aos poucos, enquanto os véus caem e a relação adúltera passa a ser cada vez mais difícil de esconder, Yara vai descobrindo os segredos do passado de seu amante e qual a conexão deste com os pais dela. O quadro se esclarece e o comportamento vingativo e sádico do amante torna-se mais compreensível e seus abusos menos misteriosos. Love Life é um filme de bombásticas revelações psicológicas que subitamente nos fazem entender comportamentos que antes pareciam sem razão. Como num passe de mágica, as sombrias maquinações do coração recebem um banho de lucidez.

É a compreensão lúcida da falta de lucidez dessa obscura paixão que afinal liberta Yara desse amor destrutivo. Love Life, que é quase em tempo integral a descrição de um cativeiro emocional, de uma relação envenenada, acaba assim: como uma gaiola que se abre, deixando voar livre o pássaro antes preso.

Interessante notar, por fim, que o próprio título do filme carrega uma inteligente “sacada” e deixa no ar um certo mistério. Porque se “love”, no caso, for um substantivo, trata-se de “vida amorosa”; se for o verbo “to love” usado no imperativo, vira “ame a vida!” A ambigüidade na interpretação do nome é, aliás, muito propícia. Pois o brilhante filme de Maria Schrader, ao mesmo tempo que acompanha a vida amorosa de sua protagonista por sombrias e lamacentas estradas, vai desenhando lentamente no horizonte o Sol que irá nascer e fazê-la, afinal de contas, ser capaz de amar a vida.

NOTA: 9.5