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OS INDIFERENTES,
de Alberto Moravia
A burguesia fede, mas tem grana pra comprar perfume. A vantagem que tem o escritor é que ele pode retratar cruamente este fedor, sem os disfarces e máscaras que, na vida real, com todas as magias de maquiagem e perfumaria, os bons burgueses ocultam dos olhares e olfatos. O romance de estréia de Moravia é mais ou menos assim: um retrato sem concessões de 4 personagens que parecem encarnar nojeiras burguesas - ou patologias decorrentes das instituições burguesas, especialmente a Família. Mas é mais que isso, pois não se limita a uma crítica de classe: é mais um labirinto existencial onde os personagens, como ratinhos desnorteados, ficam chocando-se em intermináveis paredes; e onde o que impera é uma "tendência geral ao descontentamento". Aqui desfilam vidas atoladas num lamaçal de tédio, monotonia e falsidade, que o autor descreve mais para diagnosticar uma doença do que para sugerir uma cura.
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Este não é um romance histórico/político: nenhuma vez se situa o lugar e o tempo onde a história se desenrola. Os condicionamentos exteriores são omitidos: aqui os sintomas é que desfilam, não as causas da doença. De modo que "Os Indiferentes" é muito mais um mergulho psicológico no mundo insosso, vicioso e infeliz de seus 4 personagens principais. Quase uma tragédia sem sangue, é uma crônica de uma família burguesa em um momento extremo - de decadência, de angústia, de esfacelamento. Onde o elemento mais trágico é o fato de que nada se quebre, nada se rompa e tudo se arraste com tamanha morosidade. Pedimos sangue, revoluções, renovações, torcendo pela irrupção do novo! E tudo o que o autor nos dá é o testemunho de que no mundo burguês a mediocridade é que é lei e que não devemos esperar que eles, de dentro, consigam aderir à higiene pelo fogo.
O centro da história está num certo combate entre o velho e o novo, o fóssil e a espécie novinha em folha, que se desenha aqui na guerra não declarada entre uma mãe (Maria das Graças) e uma filha (Carla).
Imagino a mãe como uma daquelas ladies metidas a chiques, transbordantes de futilidade, que gostariam de desfilar nas ruas com um poodle bem vestidinho e um casaco feito com a pele de algum pobre animal quase em extinção. Mas ela não pode assumir esse papel de ostentação de luxo pois se acha em maus bocados: prestes a despencar alguns degraus na hierarquia social.
"...o medo da mãe se agigantava; nunca tinha querido saber de gente pobre, nem sequer conhecê-los de nome, nunca tinha querido admitir a existência de gente que trabalha duro e leva vida miserável. 'Vivem melhor do que nós', costumava dizer; 'nós temos mais sensibilidade e mais inteligência, por isso sofremos mais que eles...'; e agora, repentinamente, era obrigada a misturar-se, a engrossar a turba dos miseráveis; aquela mesma sensação de repulsa, de humilhação, de medo que tinha sentido um dia ao atravessar de automóvel uma asquerosa e ameaçadora multidão de grevistas vinha oprimi-la agora; não eram os desconfortos e as privações que a aterravam, mas a vergonha, a idéia de como seria tratada, do que diriam as pessoas de suas relações, todas ricas, estimadas e elegantes; ela se via, enfim... pobre, sozinha, com aqueles dois filhos, sem amigos, já que todos a abandonariam, sem diversões, bailes, luzes, festas, reuniões: obscuridade completa..." (25).
Já a filha Carla é a adolescente que, enojada e sufocada na gaiola da família burguesa, passa a desejar ardentemente estourar em mil pedaços sua tão insatisfatória vida existente. Mesmo que para isso tenha que apelar para os efeitos renovadores das catástrofes.
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Mas e a coragem de quebrar com a tradição e lançar-se no desconhecido? Há em "Os Indiferentes" cenas em que uma náusea quase sartriana toma conta de Carla. Mas isso tudo se passa nos recantos mais recônditos de seu coração cheio de nojo, sem que a mamãezinha sequer suspeite do desejo de subverter totalmente a ordem existente que ferve no peito de sua primogênita. Moravia é insistente na descrição de um cenário abominável, de um desejo ardente de mudança e de uma dificuldade endêmica de entregar-se a essa renovação.
O nojo: "Pequeno mas angustiante trajeto através do corredor; Carla olhava para o chão pensando vagamente que aquela passagem cotidiana deveria ter consumido o tecido do velho tapete que escondia o assoalho; e até os espelhos ovais pendurados nas paredes deviam conservar os traços daqueles rostos e daquelas pessoas que várias vezes ao dia, durante muitos anos, refletiam-se neles... o hábito e o tédio estavam de tocaia e atravessavam a alma de quem passava, como se as próprias paredes exalassem vapores venenosos; tudo era imutável, tudo era repetição..." (23)
A impaciência: "Uma dolorosa impaciência a possuía: 'Acabar', repetia para si, olhando aquela sala escura onde tantos anos de fogo tinham-se consumido em cinzas, e o grupo solene e ridículo que eles formavam em volta da lâmpada: 'acabar com tudo isso', e sentia-se cair naquele seu hesitante abandono como uma pluma num vão de escada..." (36)
O plano de ruptura: entregar-se a Leo, o amante da mãe, no dia do aniversário - o que, supostamente, deveria fazê-la, no dia de seu nascimento, nascer para uma nova vida. "Até mesmo essa infame coincidência, essa rivalidade com a mãe agradava-lhe; tudo devia ser impuro, sujo, baixo, não devia haver amor nem simpatia, mas apenas uma tenebrosa sensação de ruína..." (45)
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MIGUEL E A INDIFERENÇA
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No romance, Miguel é irmão da pequena Carla, a rebelde adiada, e filho da dondoca fútil Maria das Graças. Ele é mais uma encarnação de uma patologia que essa família burguesa asquerosa gera - e que quase acaba gerando um banho de sangue. Ele padece duma doença que me parece bem "mersaultiana": o terror de nada conseguir sentir de extremo, de arrebatador, de ardente. Ele é sempre exemplarmente gélido. Sua impecável apatia não parece ter cura. Para ele, tudo tanto faz. Ele é o oposto absoluto de um personagem de tragédia ou de uma donzela apaixonada de algum dramalhão de amor. O termômetro de seu coração marca sempre uma temperatura digna da Sibéria. A única coisa nele que é hiperbólica é a incapacidade absoluta de existir na hipérbole. Ele não consegue se comover, se engajar, pôr fé e mobilizar energia para alguma causa, algum amor, alguma rebeldia. O olhar que possui parece ser adoentado: daqueles que enxerga tudo cinza, sem cor e sem fascínio.
Mas em Miguel há uma cisão entre o que ele é e o que imagina que DEVE ser. Nele há inveja das pessoas que conseguem sentir com intensidade e autenticidade aquilo tudo que o deixa impassível. Seu maior sofrimento é não conseguir sofrer como fizeram os grandes mártires. O que mais deixa-o indignado é nunca sentir uma indignação tão incendária quanto aquelas dos grandes rebeldes e revolucionários. Tudo está tão ruim em sua vida pois tudo e todos, sempre, está no "mais ou menos", no "nem fede nem cheira". Incapaz de amar, mesmo uma mulher apaixonada por ele, e incapaz de odiar, mesmo o canalha Léo que come sua irmã e sua mãe ao mesmo tempo, Miguel é uma alma incapaz de se incendiar.
Rodeando estes três membros da família apodrecida, está uma espécie de hiena ridente e gargalhante: Léo Merumeci, uma espécie de canastrão, um burguês satisfeito e bonacheirão que revolta principalmente por ser feliz. Diz a Miguel, por exemplo: "é claro que você também está insatisfeito, do contrário não teria essa cara sempre fechada de sexta-feira santa. Eu, pelo contrário, meus senhores, faço questão de afirmar que tudo está indo bem, ou melhor, muito bem - e que estou contentíssimo e satisfeitíssimo e que se tivesse que nascer de novo gostaria de ser exatamente o mesmo...".
O retrato que Moravia traça aqui é mais de um labirinto do que de uma solução. Conheço poucos romances tão brilhantemente demolidores da família burguesa, tão mordaz em suas críticas, e que consegue, ao mesmo tempo, levantar personagens que soam absolutamente genuínos e não como meras encarnações de patologias. A maior tragédia, aqui, é que o sangue não se derrame, que o fogo não consuma esse prédio em ruínas, que nenhuma demolição abra espaço para novas construções, condenando essas pessoas enojadas consigo mesmas - e umas com as outras - à perpetuação da mediocridade.
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