domingo, 30 de novembro de 2008

:: tragédia sem sangue ::


OS INDIFERENTES
,

de Alberto Moravia


A burguesia fede, mas tem grana pra comprar perfume. A vantagem que tem o escritor é que ele pode retratar cruamente este fedor, sem os disfarces e máscaras que, na vida real, com todas as magias de maquiagem e perfumaria, os bons burgueses ocultam dos olhares e olfatos. O romance de estréia de Moravia é mais ou menos assim: um retrato sem concessões de 4 personagens que parecem encarnar nojeiras burguesas - ou patologias decorrentes das instituições burguesas, especialmente a Família. Mas é mais que isso, pois não se limita a uma crítica de classe: é mais um labirinto existencial onde os personagens, como ratinhos desnorteados, ficam chocando-se em intermináveis paredes; e onde o que impera é uma "tendência geral ao descontentamento". Aqui desfilam vidas atoladas num lamaçal de tédio, monotonia e falsidade, que o autor descreve mais para diagnosticar uma doença do que para sugerir uma cura.

Moravia (um dos grandes autores italianos do século 20, já adaptado para o cinema em clássicos como O Conformista, de Bernardo Bertolluci, e O Desprezo, de Godard), é brilhante em "Os Indiferentes" ao fazer esta cirurgia de uma família com lepra moral, com câncer existencial. Ele vai trazendo à tona a bile negra dessas almas, como se sua pena fosse um bisturi descendo carne abaixo, para voltar a emergir besuntado de podridões. Em todo lado, pelo livro, dá pra sentir um olhar meio existencialista, meio comunista, analisando sem concessões, através do microscópio da literatura, algumas almas perdidas - que, hora ou outra, Moravia até parece ver com laivos de compaixão.

Este não é um romance histórico/político: nenhuma vez se situa o lugar e o tempo onde a história se desenrola. Os condicionamentos exteriores são omitidos: aqui os sintomas é que desfilam, não as causas da doença. De modo que "Os Indiferentes" é muito mais um mergulho psicológico no mundo insosso, vicioso e infeliz de seus 4 personagens principais. Quase uma tragédia sem sangue, é uma crônica de uma família burguesa em um momento extremo - de decadência, de angústia, de esfacelamento. Onde o elemento mais trágico é o fato de que nada se quebre, nada se rompa e tudo se arraste com tamanha morosidade. Pedimos sangue, revoluções, renovações, torcendo pela irrupção do novo! E tudo o que o autor nos dá é o testemunho de que no mundo burguês a mediocridade é que é lei e que não devemos esperar que eles, de dentro, consigam aderir à higiene pelo fogo.

O centro da história está num certo combate entre o velho e o novo, o fóssil e a espécie novinha em folha, que se desenha aqui na guerra não declarada entre uma mãe (Maria das Graças) e uma filha (Carla).

Imagino a mãe como uma daquelas ladies metidas a chiques, transbordantes de futilidade, que gostariam de desfilar nas ruas com um poodle bem vestidinho e um casaco feito com a pele de algum pobre animal quase em extinção. Mas ela não pode assumir esse papel de ostentação de luxo pois se acha em maus bocados: prestes a despencar alguns degraus na hierarquia social.

"...o medo da mãe se agigantava; nunca tinha querido saber de gente pobre, nem sequer conhecê-los de nome, nunca tinha querido admitir a existência de gente que trabalha duro e leva vida miserável. 'Vivem melhor do que nós', costumava dizer; 'nós temos mais sensibilidade e mais inteligência, por isso sofremos mais que eles...'; e agora, repentinamente, era obrigada a misturar-se, a engrossar a turba dos miseráveis; aquela mesma sensação de repulsa, de humilhação, de medo que tinha sentido um dia ao atravessar de automóvel uma asquerosa e ameaçadora multidão de grevistas vinha oprimi-la agora; não eram os desconfortos e as privações que a aterravam, mas a vergonha, a idéia de como seria tratada, do que diriam as pessoas de suas relações, todas ricas, estimadas e elegantes; ela se via, enfim... pobre, sozinha, com aqueles dois filhos, sem amigos, já que todos a abandonariam, sem diversões, bailes, luzes, festas, reuniões: obscuridade completa..." (25).

Já a filha Carla é a adolescente que, enojada e sufocada na gaiola da família burguesa, passa a desejar ardentemente estourar em mil pedaços sua tão insatisfatória vida existente. Mesmo que para isso tenha que apelar para os efeitos renovadores das catástrofes.

Como construir uma nova vida sem antes destruir sem dó a velha? A velha vida e a velha mãe. Seu plano de entregar-se ao amante da mãe, Léo, nada tem a ver com paixão, tesão, amor. É apenas a única saída visível que ela enxerga para algum tipo de existência diferente. "Por que recusar Léo? Essa virtude tornaria a lançá-la nos braços do tédio e da mesquinha monotonia de sempre; além disso, por um gosto fatalístico das simetrias morais, parecia-lhe que aquela aventura quase familiar era o único epílogo que sua velha vida merecia... 'Acabar com tudo', pensava, 'destruir tudo...' - e a cabeça lhe girava como alguém que se prepara para pular de ponta no vazio." (9)

Mas e a coragem de quebrar com a tradição e lançar-se no desconhecido? Há em "Os Indiferentes" cenas em que uma náusea quase sartriana toma conta de Carla. Mas isso tudo se passa nos recantos mais recônditos de seu coração cheio de nojo, sem que a mamãezinha sequer suspeite do desejo de subverter totalmente a ordem existente que ferve no peito de sua primogênita. Moravia é insistente na descrição de um cenário abominável, de um desejo ardente de mudança e de uma dificuldade endêmica de entregar-se a essa renovação.

O nojo: "Pequeno mas angustiante trajeto através do corredor; Carla olhava para o chão pensando vagamente que aquela passagem cotidiana deveria ter consumido o tecido do velho tapete que escondia o assoalho; e até os espelhos ovais pendurados nas paredes deviam conservar os traços daqueles rostos e daquelas pessoas que várias vezes ao dia, durante muitos anos, refletiam-se neles... o hábito e o tédio estavam de tocaia e atravessavam a alma de quem passava, como se as próprias paredes exalassem vapores venenosos; tudo era imutável, tudo era repetição..." (23)

A impaciência: "Uma dolorosa impaciência a possuía: 'Acabar', repetia para si, olhando aquela sala escura onde tantos anos de fogo tinham-se consumido em cinzas, e o grupo solene e ridículo que eles formavam em volta da lâmpada: 'acabar com tudo isso', e sentia-se cair naquele seu hesitante abandono como uma pluma num vão de escada..." (36)

O plano de ruptura: entregar-se a Leo, o amante da mãe, no dia do aniversário - o que, supostamente, deveria fazê-la, no dia de seu nascimento, nascer para uma nova vida. "Até mesmo essa infame coincidência, essa rivalidade com a mãe agradava-lhe; tudo devia ser impuro, sujo, baixo, não devia haver amor nem simpatia, mas apenas uma tenebrosa sensação de ruína..." (45)


MIGUEL E A INDIFERENÇA

O Mersault de Albert Camus tem um irmão-de-espírito! O protagonista de "O Estrangeiro", um dos mais emblemáticos dos romances existencialistas, recebia sem lágrimas e sem qualquer sinal de tristeza a notícia bombástica - que deveria ser terremoto abrindo fendas enormes em sua vida: a morte da mãe. Poucos livros começam de modo tão espantosamente frio: "Hoje, mamãe morreu. Talvez tenha sido ontem...". Existe algum outro personagem da literatura que melhor simbolize esse completo indiferentismo, que as pessoas ditas normais consideram uma monstruosidade? Sim: talvez o Miguel de Moravia seja ainda mais símbolo dessa moléstia. Até porque ele possui plena consciência de seu estado e se incomoda por ser como é. O que Mersault não fazia, já que assumia uma atitude orgulhosa, como quem sustenta ter razão em sua frieza e em seu desprezo pelos comportamentos sacramentados pelo coletivo.

No romance, Miguel é irmão da pequena Carla, a rebelde adiada, e filho da dondoca fútil Maria das Graças. Ele é mais uma encarnação de uma patologia que essa família burguesa asquerosa gera - e que quase acaba gerando um banho de sangue. Ele padece duma doença que me parece bem "mersaultiana": o terror de nada conseguir sentir de extremo, de arrebatador, de ardente. Ele é sempre exemplarmente gélido. Sua impecável apatia não parece ter cura. Para ele, tudo tanto faz. Ele é o oposto absoluto de um personagem de tragédia ou de uma donzela apaixonada de algum dramalhão de amor. O termômetro de seu coração marca sempre uma temperatura digna da Sibéria. A única coisa nele que é hiperbólica é a incapacidade absoluta de existir na hipérbole. Ele não consegue se comover, se engajar, pôr fé e mobilizar energia para alguma causa, algum amor, alguma rebeldia. O olhar que possui parece ser adoentado: daqueles que enxerga tudo cinza, sem cor e sem fascínio.

Mas em Miguel há uma cisão entre o que ele é e o que imagina que DEVE ser. Nele há inveja das pessoas que conseguem sentir com intensidade e autenticidade aquilo tudo que o deixa impassível. Seu maior sofrimento é não conseguir sofrer como fizeram os grandes mártires. O que mais deixa-o indignado é nunca sentir uma indignação tão incendária quanto aquelas dos grandes rebeldes e revolucionários. Tudo está tão ruim em sua vida pois tudo e todos, sempre, está no "mais ou menos", no "nem fede nem cheira". Incapaz de amar, mesmo uma mulher apaixonada por ele, e incapaz de odiar, mesmo o canalha Léo que come sua irmã e sua mãe ao mesmo tempo, Miguel é uma alma incapaz de se incendiar.

Rodeando estes três membros da família apodrecida, está uma espécie de hiena ridente e gargalhante: Léo Merumeci, uma espécie de canastrão, um burguês satisfeito e bonacheirão que revolta principalmente por ser feliz. Diz a Miguel, por exemplo: "é claro que você também está insatisfeito, do contrário não teria essa cara sempre fechada de sexta-feira santa. Eu, pelo contrário, meus senhores, faço questão de afirmar que tudo está indo bem, ou melhor, muito bem - e que estou contentíssimo e satisfeitíssimo e que se tivesse que nascer de novo gostaria de ser exatamente o mesmo...".

O retrato que Moravia traça aqui é mais de um labirinto do que de uma solução. Conheço poucos romances tão brilhantemente demolidores da família burguesa, tão mordaz em suas críticas, e que consegue, ao mesmo tempo, levantar personagens que soam absolutamente genuínos e não como meras encarnações de patologias. A maior tragédia, aqui, é que o sangue não se derrame, que o fogo não consuma esse prédio em ruínas, que nenhuma demolição abra espaço para novas construções, condenando essas pessoas enojadas consigo mesmas - e umas com as outras - à perpetuação da mediocridade.