quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

:: into the wild ::


NA NATUREZA SELVAGEM
(Into The Wild, EUA, 2007, 140min.)
de Sean Penn


"Oh, it's a mystery to me
We have a greed with which we have agreed
And you think you have to want more than you need
Until you have it all you won't be free

Society, you're a crazy breed
Hope you're not lonely without me..."

EDDIE VEDDER




"The things you own... they end up owning you", dizia um raivoso Tyler Durden no Clube da Luta, conclamando seu discípulo a abraçar uma vida mais intensa e mais genuína, distante do materialismo vulgar e do consumismo desenfreado vigente no Império Americano - e no resto do mundo atingido por seus tentáculos malignos. Acatando a sugestão, o personagem de Edward Norton irá colocar tudo o que possui dentro de seu apartamento, deixar o gás se espalhar por cada centímetro cúbico e esperar que uma faísca exploda tudo para o inferno... Tentativa desesperada de escapar de uma jaula que é feita de coisas e coisas e coisas e onde a Vida de Verdade não entra.

Semelhante, mas um pouco menos niilista, é a atitude de Chris McCandless, personagem da vida real que serviu como protagonista para o livro de Jon Krakauer que Sean Penn adaptou para o cinema com maestria neste lindíssimo e empolgante Na Natureza Selvagem. Ano passado, o filme, que conta com trilha sonora original primorosa de Eddie Vedder e atuação cheia de garra do Elime Hirsch, faturou o Prêmio do Público como o Melhor Filme na Mostra de SP (empatado com Persépolis) - façanha que não é pequena.

Com vinte e poucos anos de idade, Chris McCandless era um jovem privilegiadíssimo: um diploma universitário, a perspectiva de entrar em Harvard, uma família rica pródiga em presentes de luxo, uma poupança de mais de 25.000 dólares... Ele tinha tudo para se tornar um respeitável engravatado, desses que vemos andando por Wall Street e entrando em grifes da elite, encarnação do homem americano que nada contentemente em sua piscininha de moedas de ouro feito um Tio Patinhas...

Mas ele mandou tudo pro espaço, movido por seu próprio Tyler Durden interior. Mandou um cheque com todas as suas economias para uma instituição de caridade, rasgou suas identidades e carteirinhas, desencanou de Harvard e da vida de trabalho assalariado e caiu na estrada para uma aventura de desbravação das incríveis paisagens naturais da América Selvagem - e também de descoberta espiritual. Chris McCandless tinha se tornado Alex Supertramp, o mendigão maltrapilho, o andarilho errante, cujo único lar é a estrada e cujo maior aliado é seu polegar...

Sem informar os pais ou a irmã de seu paradeiro, ele embarca numa longa aventura de dois anos, pegando carona em trens de carga, trampando em campos de milho, fazendo amizade com hippies e cantores folk, enquanto alimenta o sonho de se meter no meio do Alasca para uma temporada vivendo como um completo hermitão, na companhia dos lobos e das longas paisagens desérticas... Chris McCandless, ao se metamorfosear em Alex Supertramp, é como uma borboleta que alça vôo para longe da lama da preocupação material e, ao mesmo tempo um seguidor de Tyler Durden e dos estóicos gregos de 2.000 anos atrás, decide-se a viver com pouco, depender de quase nada e livrar-se de qualquer apego a bens materiais.

É com esse enredo que Sean Penn e companhia constroem esse poderoso filme, candidato a Novo Clássico Americano (o que Sangue Negro também parece destinado a se tornar), que questiona fundo todos os valores podres como a ganância, a competitividade e o consumismo que passaram a nortear a vida da América engolida pelo capitalismo. A América Paradisíaca que McCandless evoca é aquela do Thoreau, do Jack London e do Walt Whitman - aquela que precisa ser urgentemente ressuscitada antes que a catástrofe se consume.

Que Chris, ou Alex Supertramp, seja um herói que o filme trata de botar sobre um pedestal é inegável, mas não há excesso de idealização. Se por um lado parece óbvio que Chris está "dizendo coisas que precisam ser ditas, fazendo coisas que precisam ser feitas", fica a impressão de que sua rebeldia chega a um certo exagero e ele cai num isolamento tamanho que destrói sua sanidade e sua saúde. Fugindo completamente da "Sociedade" e da "Civilização", que ele considera (e com razão!) corrompidas pela obsessão do lucro e da posse, dominadas pela hipocrisia e pela politicagem, ele acaba caindo no meio de uma Natureza Selvagem que não tem o mínimo cuidado com suas criaturas.

Por isso, muito mais do que um filme sobre um homem que busca o reestabelecimento de uma comunhão perdida com o mundo natural, Into The Wild é também uma fábula cruel sobre os poderes cegos dessa Natureza que Camus olhava com olhos melancólicos, lamentando sobre a "terna indiferença do mundo". Neste sentido, é um filme que se irmana com o excelente O Homem Urso, do Werner Herzog, ao mostrar o quando a Natureza é uma imensa engrenagem capaz de esmagar os homens e os bichos sem a mínima misericórdia. Chris aprende, talvez um tanto tarde demais, que as praticidades da civilização são o que nos mantêm em um nível razoavelmente seguro de garantia de sobrevivência e que sem as facilidades e as conquistas da civilização caímos no nível das bestas mais selvagens. Não se trata, pois, de escolher um dos extremos, mas de encontrar algum equilíbrio possível entre as benesses da civilização e aquele contato direto com a Mãe Terra que não pode ser perdido sem que algo muito precioso se perca.

No final das contas, o espectador, que dificilmente consegue evitar se emocionar com o destino de McCandless, acaba pegando por contágio um pouco do tesão que ele tinha por se lançar no Oceano Imenso do Universo e nele se banhar. Ele é prova viva do que dizia o poeta: "Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo", mesmo que esteja com os pés descalçoes e não tenha domicílio fixo - sua casa é o universo. Into the Wild é um filme que nos dá vontade de cair na estrada, com o mochilão nas costas, sem mapas, sem relógio e sem destino certo, para explorar livremente este mundo tão vasto de que conhecemos só uma minúscula lasca. Mas é também um filme excruciante ao mostrar a solidão extrema em que Alex Supertramp acaba por se meter. Pelo menos essa solidão faz com que ele compreenda aquilo que é talvez sua descoberta espiritual mais profunda: " a felicidade só é real se compartilhada".

(9.5 / 10.0)