quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

:: =D ::

i'm in love with her
and i feel fine.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

:: i'll keep on singin' love songs / just to break my fall ::



:: LOVE ON DEATH ROW ::



De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Condenados à morte somos todos. Talvez amanhã eu não esteja mais aqui. Talvez você. Ou até mesmo o planeta, que apesar de não ser um ser vivo, é tão mortal quanto as criaturas que hospeda. Como ousar imaginar um prolongado futuro quando vivemos vidas tão frágeis, que vagam como lumes que uma brisa mais forte bastaria para apagar? Como deixar para depois os apogeus, adiar as consumações e só dar à felicidade a chance de chegar no futuro distante, se não sabemos nem se vivos estaremos daqui a um minuto?!

Quando você me contou que estava indo embora, a melancolia que me tomou acabou vencida por uma esperança maior. Sim, a separação iminente e inevitável - você, de mudança para uma cidade distante... - fulmina a minha esperança de um amor prolongado, que enchesse meu ano com suas benéficas marés de carinhos, afagos e mimos de que estou, faz tanto, tão precisado... Mas, ao mesmo tempo, não impede o sonho de um amor que, como diz Vinícius, não será eterno, posto que é chama, mas... que pode ser infinito enquanto durar. E imensamente terapêutico, para estes nossos dois corações tão estraçalhados e famintos, sem precisar para isso ser um tratamento prolongado. Há os que se curam ficando internados em U.T.I.s por meses e meses. E há os que se curam tomando, em poucos dias, doses cavalares do santo remédio. Eu continuava, continuo (e continuarei?), sempre a devanear: "O coração dela seria o melhor dos hospitais..."

E e meu coração alado, sonhando um tórrido mês de amor frenético, antes da separação... Ela que (ah romantismo tolo que me estraga a alma!) eu me digo que foi o Destino (ora! o Destino!) quem impôs. Sonhando um amor digno de um conto existencialista: um amor iluminado pela certeza de sua própria efemeridade. Que já nasce com os dias contados. Como se fosse entre dois condenados à morte. O que de fato somos. E não só nós dois. Quem disse que não poderia ser lindíssimo viver esse romance, mesmo com essa iminente separação no horizonte, fazendo-nos famintos um do outro, famintos de uma intensidade vivida que gere vívidas memórias, famintos de degustar o irrepetível banquete?! Será que não deveria ser esta a magnífica fome que ronca no coração dos amantes? A fome de quem sabe que as pessoas são passageiras e que é preciso amá-las como se não houvesse amanhã? Pois na verdade não há.

* * * * * *

Acho este um dos maiores charmes dos filmes do Richard Linklater que tanto moldaram as minhas fantasias afetivas, e que continuam instigando o meu desejo - Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do Sol: são filmes de amor lindíssimos justamente pois retratam o amor consciente de sua própria efemeridade. O casal sabe: só temos este dia. E tratam de degustá-lo com uma voracidade que não existiria se o tempo futuro fosse assegurado. Eles sabem que vão se separar. Por isso se amam tão bem. Pois isso há tamanha urgência na comunicação e no contato. E não se trata de fazer as coisas de um jeito afoito e superficial, como faz a tola juventude dos “ficantes”, que também vive de seus rolos ultra-efêmeros, mas que são também, muitas vezes, ultra insignificantes. Esses filmes provam que o efêmero pode ser extremamente significativo.

Acho que não é a quantidade de tempo que um casal passa junto que faz com que esse vínculo seja precioso: há muitos que se deixam ficar unidos um ao outro por inércia, por medo da mudança, pela morna segurança, pelo monótono conforto, sem que a admiração mútua ou um intenso desejo de um pelo outro conte qualquer coisa. Meu pessimismo me leva inclusive a pensar que tempo demais é uma força destruidora da beleza dos amores. Ah, esses casados de 20, 40, 50 anos... que sensaboria! Que tédio! Que ausência absoluta de paixão! Como deviam ser mais belos na aurora do feitiço, nos balés da conquista, nos primeiros beijos e transas, do que se tornam depois de um contato tão prolongado e tão desencantante. É essa a impressão que dá: que as pessoas perdem o encanto, umas para as outras, com o tempo de convivência. Não acho que isso seja inevitável, mas parece ser uma tendência forte. Gente enjoa. E eu não me acho diferente.

Acho até mesmo que nunca vou me casar, à moda antiga, do jeitinho que pedia a cultura hoje moribunda de nossos pais e avós – casamento monogâmico sacramentado pela igreja católica e vigente "até que a morte nos separe". Isso aí me parece uma múmia fedendo a formol, que logo logo vai sair completamente de moda. Daqui algumas décadas, talvez, iremos olhar para esse estranhíssimo costume – acreditar que Papai do Céu mandou a gente casar virgem com uma pessoa e viver com ela até a morte! – como algo semelhante ao canibalismo ou rituais de vodu de povos pagãos e primitivos. Acho que qualquer mulher desse mundo que tivesse a desventura extrema de se casar comigo ia acabar por enjoar da minha pobre pessoa, fatalmente, e acho que não levava nem 5 anos. talvez nem 5 meses. Não sou um ser assim tão interessante. Me considero muito, muito enjoativo. Já estou enjoadíssimo de mim mesmo, e olha que só vivo na minha companhia faz um quarto-de-século. Eu não desejaria esse triste destino a nenhuma pobre mulher deste mundo: passar na minha companhia todo esse tempo! Coitadinha! Por misericórdia prévia, eu me abstenho do casamento. Confesso que não sou um bom partido.

Acredito que a INTENSIDADE DA EXPERIÊNCIA VIVIDA interessa muito mais do que o TEMPO. Tanto que os momentos mais intensos da vida são vividos num Além do Tempo, num Esquecimento do Relógio, num Abandono Absoluto À Vivência, de um jeito que faz com que estes momentos equivalham a fragmentos de eternidade que seguramos em nossas trêmulas mãos por instantes. Não aguentamos o peso da eternidade por muito tempo. Só conseguimos ser eternos muito de vez em quando, e bem rapidinho...

São aparições súbitas. Mas nesses segundos se condensa um ouro que daria para encher muitas horas, muitos anos, algumas décadas. Não é preciso que a estrela cadente fique a cruzar o céu por 50 anos para que os olhos humanos que a testemunham em sua jornada no firmamento se sintam permanentemente maravilhados. Aliás: que chatice, que monotonia, se os espetáculos lindos da vida se demorassem muito no palco do Universo! A vida é serelepe, criança peralta, capetinha com fogo no rabo – não aguenta ficar sentada. É um filme de ação. Ação trágica, ação cômica, ação criadora e destrutora, ação dançante e polvilhante, explosiva e apoeirante, que efeito especial algum de cinema saberia representar, uma imensa orgia em que o impossível é estar estático, não só porque o Tempo não pára – é que TUDO NÃO PÁRA – e o tempo acompanha...


E claro que há, também, o MEDO DA FELICIDADE: pois como suportaríamos o peso de perdê-la? Só se embarca de alma inteira na viagem da felicidade quando se pode ter a convicção de que ela irá durar? Raciocina a fria razão: se há uma separação inevitável que nos aguarda, por que iríamos sequer COMEÇAR uma relação que teria que ser fatalmente rompida? Não é MENOS DOLOROSO para nós desencanar desde já deste vínculo, para que seu rompimento não nos maltrate muito depois? E o ardente coração, infinitamente tolo, infinitamente sábio, diz: mas eu quero! eu quero! Dê-me migalhas de amor, segundos de amor, ácaros microscópicos de amor, mas não me deixe completamente faminto!

Sem falar que o fato de toda festa ter um fim nunca foi motivo para não festejar. Nem o fato de que acabaremos todos mortos é razão para não viver.

Eu? Eu quero esse sofrimento. Eu prefiro esse magnífico sofrimento heróico à mornidão do sofrimentozinho cotidiano. Juro que prefiro me tacar de cabeça em um mês de amor tórrido, de completa entrega, mesmo que depois me despeça com lágrimas jorrando dos meus olhos e já me preparando para sofrer a doce tortura da saudade. Prefiro sentir um vínculo profundo e querido se rasgando a me separar de ti como se nada fosse: algo que se dissolve no tempo, que afoga nas negras águas do esquecimento. Não quero esquecer. Não me ofereça esquecimento, como se fosse um tesouro que, por piedade, você me estende, embrulhado pra presente. O esquecimento é a morte. É a morte agindo no cotidiano. Você eu quero lembrar. E quanto mais intensas forem as lembranças, melhor.

De você, quero uma tatuagem. Marcada em fogo na minha alma, indelével, inapagável. E sei bem da dor que é deixar-se tatuar: você não sabe o que é tinta e o que é sangue, se aquilo é beleza ou se é loucura, se é arte ou masoquismo. Ainda mais quando a tatoo desenha-se num fragmento de nosso ser tão frágil e elástico como o coração – aliás pulsante e inquieto demais para que o desenho saia sem deslizes. Mas sim, quero, aceito, imploro: tatua-te em mim. Quero te levar, vida afora, sempre na lembrança. Quero que, ainda que doa, você venha e, no tempo que nos resta, onde haveria espaço para um amor que beira o infinito, apesar de ser chama que parece tão mísera de tão finita, e marque-se pra sempre em mim.

Quero o teu corpo tatuado na minha alma.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

:: este niágara de que somos gotas ::

A MARGEM DE LÁ
- tateios sobre nirvana e samsara -


Não há animal que contemple mais os horizontes do que nós, os homens. O resto do mundo animal não se importa de arrastar o focinho na terra. E mesmo as águias voam como se voar (e viver!) fosse normal e nem se espantam que exista um Sol e um Céu. Pobres homens! Oscar Wilde dizia que "estamos todos na sarjeta, mas alguns olham para as estrelas". Hilda Hilst, capetinha, brincava com isso dizendo: "E quem olha SE FODE!"

Sim, abençoados e malditos, pobres e milionários, são esses raros animais que ousam olhar para as estrelas! Pois quem é que aguenta esse espetáculo? "Me apavora o silêncio eterno dos espaços infinitos", gemia Pascal, e é por isso que tantos ficam quietinhos e contentes em suas celas, em suas sarjetas, de olhos baixos, e que se danem os horizontes e os vôos... Ou então alguns levantam os olhos, sim, mas alucinando que há nas alturas deuses e anjos, paraísos e radiâncias, êxtases e belezas, tomando seus delírios e desejos por realidade. Minúsculos, e achando-se tão gigantes! Ah!... o que seria de nós sem a ajuda de tudo aquilo que não existe?!?

Haverá algum olho humano capaz de abrir-se para o Universo sem mentira, sem ilusão, sem distorsão, sem que se exploda de tanto assombro ou seja calcinado pelo Sol? Não sei. Um dia perguntaram ao Terence McKenna se havia algum perigo extremo no consumo das substâncias de Expansão da Consciência e Fusão Mística com o Cosmos como o LSD, a ayahuasca e os cogumelos mágicos. Ele respondeu: "Só há perigo se você acredita que se pode morrer de espanto".

Morreríamos de espanto se ousássemos abrir os olhos?

Dos animais, acho que não há nenhum que, como nós, esteja tão frequentemente com os olhos fixos no longínquo (e isso é quase o mesmo que tê-los fechados): no Céu onde um dia se entrará... na Utopia que um dia se realizará... na Verdadeira Vida que no presente está ausente... no Sono Eterno onde enfim se poderá repousar... no Amor sonhado e idealizado, que não chega e não chega, e vai sendo sempre e sempre adiado...

Entre nossas esperanças radiosas e uma realidade que não colabora, há essa cisma, esse terremoto, esse vazio, esse tempo das esperas vãs e desse cansativo caminhar pelos desertos onde todos os oásis não passam de miragens. E lá, na linha que cerca o mar, vislumbramos uma ilha distante, uma margem de lá, onde seríamos finalmente felizes, se ao menos soubéssemos construir o barco, se ao menos conseguíssemos lá chegar sem nos afogar...

O brilhantíssimo Heinrich Zimmer, no Filosofias da Índia, um dos Livros Maiores que conheço em matéria de Sabedoria Condensada, um dos livros mais importantes da minha vida, expõe de um jeito inesquecível e arrebatador a maneira como as filosofias do Oriente descrevem todo esse imenso símbolo: as duas margens, um rio tumultuado entre elas e a travessia árdua mas crucial que é preciso realizar de uma à outra. Uma das metáforas mais famosas do budismo conta que existe uma MARGEM DE LÁ que precisa ser alcançada, e a doutrina é apenas um bote: atingido o objetivo, não há sentido em carregar nas costas aquilo que te levou à Ilha do Nirvana. O budismo é dispensável, quando se atinge a Iluminação: era só um barco, um veículo, um auxílio.

O mais espantoso, e o mais difícil de compreender, é isso: que a Ilha do Nirvana e a Ilha do Samsara são a mesmíssima ilha.

É assim: você embarca num porto, na margem de cá, e navega. Você se perde nos mares. Digladia com Moby Dicks. Engole muita água salgada. Cospe muito sangue. Quebra muitos ossos. Quase sucumbe aos mil Maelstroms da jornada. Enfim, se triunfar, atraca em um outro porto, desembarca da odisséia marítima turbulenta e diz a si mesmo, aliviado, quase em estado de êxtase, que finalmente chegou "na margem de lá", de tão bem que se sente. Mas você desembarcou na mesma ilha de onde havia saído. A grande diferença é que possui novos olhos. A travessia te transformou a consciência. Nada mudou, lá fora: foi dentro que se operou uma remoção de catarata, uma correção de miopia, a instauração de uma Nova Visão.

A coisa mais importante que aprendi nas minhas "andanças pelo Oriente" foi, provavelmente, esta: que o Samsara e o Nirvana não indicam, de modo algum, dois mundos diferentes! Talvez seja isso que nós, ocidentais, achamos tão difícil de entender. Estamos viciados em cristianismo e platonismo: dividimos o mundo entre uma Dimensão Terrestre e uma Dimensão Celeste, entre um Mundo Inferior Sensível (de Transformação e Morte) e um Mundo Superior Espiritual (de Eternidade e Paz). Esse Dualismo é a nossa miopia. Julgamos que o Universo é dual. Buscamos chegar a um “mundo” diferente do nosso. Mas não há mundo além desse. E a Eternidade não vai começar depois: ela já começou. Somos seres efêmeros nadando num Cosmos eterno, que sempre o foi e sempre o será, e eterno não por ser imutável, mas eterno por ser eterna transformação, dissolução, construção e reconstrução. Uma imensa dança, sem começo nem fim.

Por isso é que me parece um equívoco tremendo traçar paralelos comparativos do budismo com o cristianismo e imaginar, por exemplo, que o Samsara equivale ao Inferno e o Nirvana ao Paraíso, como se Samsara e Nirvana fossem de fato LUGARES. Não são lugares. Não é através de um DESLOCAMENTO NO ESPAÇO que se irá de um até outro. O que significa: você pode ser um andarilho teimoso que erra por todos os cantos da Terra, que não chegará jamais a uma Cidade Encantada, toda polvilhada de ouro, esmeraldas, harpas e anjos, que se chama Nirvana. Nirvana não é um lugar. Samsara também não. Lugar só há um – é o que chamamos de mundo, e todos estamos nele. Todos estamos no mesmo lugar. Mas temos diferentes olhos para ver este lugar. Diferentes corações para senti-lo. E, principalmente, diferentes níveis de consciência com que o experenciamos.

Samsara é o estado daquele que tem os olhos doentes. Nirvana é o estado de quem tem os olhos sãos. Samsara é doença, Nirvana é saúde. Samsara é miopia, Nirvana é reta visão. Samsara é ignorância, Nirvana é sapiência. Samsara e Nirvana estão unicamente dentro de nós! E é DENTRO DE NÓS, e somente aí, que podemos dar o imenso passo de um ao outro. Por isso tanto se faz no Oriente no sentido da INTROSPECÇÃO, do RECOLHIMENTO. Pois a salvação está, não lá em cima, mas aqui embaixo: no mais profundo do poço de nós mesmos.

* * * * *

Enquanto os devotos dos dementes monoteísmos ocidentais caem de joelhos fitando os céus, levantando os braços em rogos e súplicas, esperando que chovam de cima as graças e os tesouros, tentando agradar aos Poderes Altíssimos com sacrifícios, oferendas, flagelações, lágrimas e atos virtuosos que agradem o Respeitabilíssimo Público Celestial, os orientais voltam-se completamente para DENTRO.

Poderíamos até dizer que no Oriente considera-se que “Deus está dentro de nós” e no Ocidente que “Deus está fora (e acima) de nós”, mas não acho que seria o julgamento mais justo. Pois no Oriente, o que se busca não é de fato um Deus interior, que moraria dentro de nós como uma fadinha numa semente, como uma pequena chama obscurecida pelas selvas fechadas de nossos corações egoístas - nada assim tão supersticioso e digno de conto folclórico para criancinhas. Se viaja-se para dentro, não é para descobrir Deus, mas sim para CORRIGIR o ERRO de PERCEPÇÃO, para APERFEIÇOAR o nosso natural (e pobre) ESTADO DE CONSCIÊNCIA, de modo a, de certo modo, ENTRAR EM CONTATO com um Deus que não está nem acima nem dentro de nós, mas um Deus que nos envolve, que nos engloba, em quem nadamos como peixes num oceano.

“Este Niágara de que somos gotas”, diz o Zimmer. Esta imensa duna de que somos grãos de areia. Este imenso espetáculo cósmico de que somos uma miseravelzinha partezita absolutamente insignificante e sem valor. Claro que este Deus dos orientais, que eles muitas vezes não chamam de Deus, se confunde com o Universo, com o Todo, com o Ser, com Tudo-Que-Existe. Sim: trata-se, no fundo, de pegar Tudo-Que-Existe e chamar isso de Deus. Spinoza, me parece, fez o mesmo. É o que se chama de panteísmo. Que não está muito distante do ateísmo. A este Deus é inútil rezar, fazer pedidos, penitências, acordos, promessas. É inútil depositar Nele qualquer esperança. Ele é absolutamente indiferente à vida humana. À vida em geral.

Estamos muito viciados num modo de pensar as divindades que é extremamente antropomórfico. Queremos imaginar um Deus que tenha qualidades morais humanas: que seja bom, que seja justo, que seja caridoso, que se comova com o sofrimento dos justos, que intervenha na realidade para modificá-la para melhor.... Este Deus que os monoteísmos ocidentais imaginam, Onipotente e Interventor, Cheio de Bondade e Poderio, que supostamente ficaria nas Alturas gerindo o mundo como um presidente, dirigindo o esporte da vida humana como um técnico, distribuindo penas e recompensas como um juiz, este Deus, apesar de sobreviver na fé delirante de milhões, já é uma hipótese sobre a realidade quase que completamente descartada pela experiência histórica. É só pensar em Auschwitz! No Holocausto não morreram só 6 milhões de judeus: a hipótese deste Deus também morreu, e sem remissão, sem volta. É absolutamente inconcebível que um Deus Onipotente e Cheio de Bondade pudesse ter criado um mundo onde um espetáculo tão grotesco fosse possível. É absolutamente inconcebível um Deus desses, existindo, e nada fazendo para impedir ou remediar tamanhos horrores.

Para os orientais, a META é a OBTENÇÃO DE UM ESTADO MAIS ELEVADO DE CONSCIÊNCIA, e de modo nenhum CONQUISTAR O DIREITOR DE HABITAR nesta outra “DIMENSÃO” que chamam de Céu ou Paraíso e que eles certamente reconhecem como uma alucinação. Não há Céu nem Inferno – há um só mundo, e ele PODE SER SENTIDO como Céu ou Inferno dependendo do MODO COMO NÓS O EXPERENCIAMOS, de acordo com a QUALIDADE DE NOSSA CONSCIÊNCIA. E não há dúvida de que a maioria está no Samsara! Neste sentido, budismo e cristianismo até concordam: ao dizer que estamos num Vale de Lágrimas e que a vida é sofrimento. Mas o cristianismo promete a felicidade para depois da morte, se a merecermos, sendo portanto uma religião das promessas de bem-aventurança no além-túmulo; enquanto o budismo deseja nossa libertação AQUI e AGORA, e considera, pelo menos a escola Mahayana, que TODOS são dignos e capazes de alcançarem, neste planeta, a beatitude que os cristãos só conseguem imaginar em outras “esferas”... É a felicidade humana terrena o que se busca! Não se quer ser feliz no além-túmulo, como pretendem fazer cristãos, judeus e muçulmanos! Quer-se o Bem agora, e não depois.

Não que sejam doutrinas “hedonistas”, de modo nenhum (com exceção do tantra, que com um pouco de exagero poderia ser descrito como uma espécie de hedonismo). Não se trata exatamente de “aprender a gozar” as “coisas boas da vida”. Essas filosofias de vida obviamente isso não conduzem a uma “ética” simplória que elogiaria uma vida centrada em degustar bons pratos e boas bebidas, fazer sexo com belas mulheres, ouvir bela música e deleitar-se com lindas obras da arte e da natureza... enfim, não se trata de PERMITIR QUE OS SENTIDOS BANQUETEIEM COM GULA no imenso restaurante de tentações que se chama mundo. Não. Pois os prazeres, todos eles, são vistos como transitórios, efêmeros e incapazes de gerar qualquer tipo de satisfação duradoura. São falsos bens, por assim dizer. Os prazeres são certamente prazeirosos, e seria uma absurdidade negar tamanha evidência, mas no QUADRO GERAL da vida não é verdade que uma felicidade se construa como uma mera SOMA ARITMÉTICA de prazeres. É possível viver uma vida repleta de prazeres e, ainda assim, ser infeliz. Quem duvida da miséria dos libertinos? Quem inveja o destino dos personagens do Marquês de Sade?

Trata-se, sim, da busca por um Bem Maior, mas este Bem Maior não é posto "fora" do mundo, num certo "além", que não passa de uma imensa alucinação dos monoteísmos ocidentais e de todos os idealismos filosóficos. No Oriente, o Bem Maior é uma Consciência Expandida. É a aniquilação de todos os dualismos: bem e mal, céu e inferno, prazer e dor, vida e morte. André Comte-Sponville considera como o "lema"mais importante da "história da espiritualidade" este apontamento de Nagarjuna, o maior dos sábios do budismo Mahayana: "Se você ainda diferencia o Nirvana do Samsara, você ainda está no Samsara". Zimmer complementa: "A iluminação significa que a distinção enganosa entre as duas margens, como se uma tivesse existência mundana e a outra, existência transcendental, é absolutamente insustentável."

Já estamos no Nirvana. Só não sabemos disso. Enquanto imaginarmos que o Céu é em outro lugar, estaremos no Inferno. "A verdadeira origem da descoberta consiste não em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos." (Proust)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

:: novo grito! ::

Tem artigo meu fresquinho na nova edição da Revista O Grito!. Dessa vez, tive que me virar tentando produzir algo decente com uma pauta espinhenta: fazer um "quadro cultural" sobre a África no "Mundo Pop" de hoje. Topei o trampo mais pelo desafio que é, para um jornalista cultural, com deadline apertado, que manja bulhufas de "world music", escrever sobre uma música que soa excêntrica e quase alienígena... Trabalho hercúleo encontrar o que dizer sobre o tema, sem deixar transparecer gostos pessoais e mais descrevendo a situação do que julgando o valor. Eu, sinceramente, acho o Buraka Som Sistema um baita dum porre: é um funk carioca de portuga muito pé-no-saco e que eu não tenho a mínima vontade de ouvir em casa (foi um semi-martírio ouvir o disco dos caras). Esau e Radioclit já é mais firmeza. De qualquer modo, essa onda de revalorização da cultura africana na música pop bem merecia uma matéria, que talvez seria feita melhor por alguém que manjasse mais do riscado, mááás... fiz o que rolou de fazer e acho que nem ficou tão ruim assim.... Logo mais, no Depredando, compartilho os discos! Por enquanto... glue there!

:: essa copiosa linguagem que de tudo transborda ::

goldsworthy


"Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Como aquele Sultão Mamude, que entendia a fala dos pássaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente vazio de solidão: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos.

Amemos o antigo encantamento dos nossos olhos infantis, quando começavam a descobrir o mundo: as nervuras das madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e horizontes; o desenho dos azulejos; o esmalte das louças; os tranquilos, metódicos telhados... Amemos o rumor da água que corre, os sons das máquinas, a inquieta voz dos animais, que desejaríamos traduzir.

Tudo palpita em redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coração, a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências. A rosa que se despede de si mesma, o espelho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos de quem dorme, tudo, tudo é um mundo com passado, presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou distraídos.

Mundo delicado, que não se impõe com violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o descubramos, sem se anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir: que não faz da sua presença um anúncio exigente: 'estou aqui! estou aqui!' Mas, concentrado em sua essência, só se revela quando os nossos sentidos estão aptos para o descobrirem. E que em silêncio nos oferece sua múltipla companhia, generosa e invisível.

Oh! se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente."

(Cecília Meirelles. Escolha Seu Sonho.)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

:: será isso "crítica de cinema"? ::


Pretensiosos devaneios e improvisos
sobre REVOLUTIONARY ROAD
de Sam Mendes

>>> A casinha branca, com gramado amplo, sem cercas ou arame farpado, numa rua arborizada onde cantam os passarinhos, em uma pacata e ajeitadinha vizinhança feliz nos ídilicos anos 50. É aí que o jovem casal Wheeler, dois bonitinhos e higiênicos americanos médios, se instalam para tentar reproduzir o doce teatro do american way of life como nos contam dele nas propagandas de margarina. Mas o fel derruba-se no caldeirão e a receita azeda. Nuvens negras virão nublar esse sonho solar. Gotas de sangue virão sujar esse quadro radioso onde a maravilha é inteirinha de fachada. Sejam bem-vindos à Beleza Americana II, mais um demolidor conto expondo as entranhas apodrecidas da Cultura Americana!

Para fugir dela, alguns explodem seus próprios apartamentos e organizam gangues urbanas de terrorismo lírico e físico, tentando trazer abaixo o império do capital e do consumismo, ainda que sob o disfarce de um certo Tyler Durden ou de um mascarado que traz um V de Vingança tatuado em sua furiosa alma. Outros, menos destrutivos, resolvem simplesmente se mandar para os ermos, como fazem os anacoretas hindus, e procuram Na Natureza Selvagem a intensidade vivida e o espetáculo dos sentidos que a vidinha capitalistinha nos nega. Alguns enlouquecem de tanta raiva mau-canalizada e saem atirando por aí, seja o yuppie playboy tornado serial killer de Psicopata Americano ou os garotos insuspeitados que se levantam com suas metralhadoras para dizimar Columbine em Elefante. São diferentes planos de fuga que realizam os presidiários da mesma penitenciária cultural. Conseguirão os novos “heróis” de Sam Mendes sucesso onde tantos outros fracassaram?



O casal Wheeler (mais ela do que ele, porém) quer fugir do convencional, do percurso traçado pela cultura, dos caminhos que todos seguem, da ordeira andança em fila indiana – mas terão coragem de dar o salto e abandonar a velha vida? Ele, Frank Wheeler (DiCaprio), 30 anos, suporta como pode um trampo que odeia, junto a colegas que o chateiam, trepando na clandestinidade com uma mocinha por quem não sente nada, só para descargo do tédio, traindo a esposa e os filhos para quem volta, dia a dia, sem nem sinal do tesão dos tempos primevos. Sente-se horrível por estar quase encalhando num destino que não queria para si: igual ao de seu pai, que trabalhara na Knox por 20 anos, estagnado como um navio ancorado em mares rasos.

Já ela, April Wheller (Winslet), desde sempre teve um coração com asas, afeito a fantasias, despregado do chão árido do realismo. Quando se conheceram, numa festa tediosa, ela revelou seu sonho: ser atriz. Fracassa feio. Ela é desse tipo de ser para quem sonhar é um martírio, já que a realidade jamais colabora. É dela que parte, também, a fantasia que norteia grande parte do caminhar do par pela Revolutionary Road: abandonar tudo, vender casa e carro, pegar carona no avião do Imprevisível e se mandar para a Europa, para a romântica e magnética Paris, onde – é o que imagina! - a Vida de Fato Começaria. Prova de que esta Terra de Oportunidades não é assim tão extasiante: há americanos que, sufocados debaixo da pilha de matéria do império, sonham com outros ares, sem nem suspeitarem que ali, também, na verdadeira França que se contrapõe à mítica França que idealizam, existe também o tédio e a sensaboria – que fizeram Baudelaire escrever tanto e tanto contra o “spleen” e que arrancaram de Rimbaud o gemido de insatisfação: “A verdadeira vida está ausente...”.



Para os Wheeler também: a verdadeira vida está ausente. A relação do casal é uma tensa gangorra entre uma vontade de lançar-se a uma aventura ímpar, que fizesse o sangue correr mais quente nas veias, e uma quase irresistível e abominável sedução pela resignação ao morno e ao sem sal. Vendo-os daquele jeito, inebriados com planos, tomando coragem para a decolagem, cheios de sonhos do que viria ser a Nova Vida que namoravam à distância, podemos até ver neles grandes HERÓIS em gestação. Há um heroísmo no coração desse casal que vai crescendo, tomando vulto, pedindo espaço – e alguns de nós, deste lado da tela, como testemunhas oculares desta luta, podemos até vibrar na torcida, na torcida, na torcida! Pois sim: seria lindo essa ousada ruptura com um destino mortão, esse salto no escuro de um futuro novo, essa tão louca e tão sábia decisão de mudar de modo radical o que ia mal. A coragem de tentar já seria um belo heroísmo num mundo onde os loucos são os mais lúcidos e a normalidade é a pior das patologias. Mas não; este não é um casal de heróis consumados, mas sim de heróis caídos, perdidos, fracassados. O fracasso deles espelhando o nosso. A tentativa de revolução deles instigando a nossa vontade por inventar a nossa.

Quando se consuma o fracasso de tantos lindos sonhos, a própria rua onde moram – a Estrada da Revolução – passa a parecer uma imensa zombaria que os demônios urbanos bolaram como escárnio. Não seria muito diferente se os dois fossem paraplégicos morando na Rua dos Maratonistas ou surdos vivendo na Cidade da Música. Pois, se Wittgenstein estava certo ao dizer que “revolucionário é quem se auto-revoluciona”, os Wheeler fracassaram feio na missão. Disseram-se palavras duras demais para que o perdão seja possível. Enfiaram o punhal muito fundo no peito um do outro para que retirá-lo da carne não gerasse uma hemorragia letal. Abandonaram de modo muito profundo a doçura e a civilidade para que a relação pudesse voltar a se açucarar. Perderam-se, desnorteados, esmagando suas cabeças e corações um contra o outro, continuando ambos presos dentro da cela cultural de onde tentaram se evadir.


Há muito tempo não víamos projetada na tela uma disputa matrimonial tão cruel. O casal Wheeler traz à lembrança todos os horrendos combates entre Liz Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, aquela imensa orgia da catarse de ressentimentos reprimidos com a qual Mike Nichols deixou marcado seu nome na história do cinema logo em seu longa de estréia. Um homem e uma mulher que tacam pedras e bosta na cara um do outro, por tempo integral, é de fato um espetáculo indigesto de se ver, mas ali parecia que um repouso, no fim da tempestade, era possível: não haveriam os dois de se aquietarem como dois exércitos cansados, um rendido ao outro, assim que a munição acabasse ou o campo de batalha estivesse já muito infestado de cadáveres?

Em Revolutionary Road, depois dos histéricos disparos das metralhadoras giratórias, uma chance de conserto do quebrado até se rascunha. Mas... é um rascunho que se amassa e lança-se ao lixo, besuntado de sangue, como um plano que sabe-se que não funcionaria. Depois da briga mais feia que o casal tem, tendo dito um para o outro os horrores mais imperdoáveis, nasce o dia seguinte em aparente calmaria. Ela, que no dia anterior era emanação pura de ódio, de desamor, de sadismo (“fuck whoever you like!”, diz April ao marido, e que bordoada!), aparece transformada numa doce, atenciosa e suave dona-de-casa, que prepara os ovos para o maridinho, o enche de mimos no breakfast e deseja-lhe um bom dia de trabalho, meu querido. Ele, que tinha amaldiçoado o ventre da mãe de seus filhos, fazendo uma das mais horrendas ofensas que se pode fazer a uma mulher, descobre-se surpreso com a súbita paz que se faz após a catástrofe da véspera. E embarca na viagem dela, fazendo o papel do comportado maridinho trabalhador que está contentíssimo com uma vida altamente convencional. Nem percebe a farsa. Pois aquilo é ela armando para ele um teste definitivo – e ele não passa.


No fim das contas, a matemática da vida oferece um resultado totalmente negativo às complexas aritméticas que estes dois procuraram equacionar. Os dois revolucionários falhados, mártires de sua própria covardia e crueldade, ficam assombrando como espectros esta melancólica Revolutionary Road - a rua das ilusões perdidas, das fantasias desfeitas e dos machucados sem remissão - onde pinga, gota a gota, do útero de uma mãe que está ferida demais para continuar vivendo, a vermelha e trágica água que mancha o prendado carpete do Sonho Americano.


( + + + + : new yorker - berardinelli - rolling stone -roger ebert - empire - ws post - omelete -portal de cinema - cinerepórter -pablo vilaça - cinesmacópio - ...)

:: A Graça de Deus ::


BERNARD MALAMUD
A Graça de Deus

(God's Grace, 1982, 216pg,
ed. Cia das Letras, trad. Isa Mara Lando)



"A remarkably consistent writer who has never produced a mediocre novel. He is devoid of either conventional piety or sentimentality. Always profoundly convincing."
(ANTHONY BURGESS)

"Malamud in his novels and stories discovered a sort of communicative genius in the impoverished, harsh jargon of immigrant New York. He was a myth maker, a fabulist, a writer of exquisite parables. (...) The accent of hard-won and individual emotional truth is always heard in Malamud's words. He is a rich original of the first rank."
(SAUL BELLOW)

"Malamud's vision is personal, original, and almost wholly unrelated to the most characteristic or normative Jewish tought and tradition. As for Malamud's style, it too is a peculiar (and dazzling) invention."
(HAROLD BLOOM)

"In this final moment of a brilliant career, the reader can feel a trembling urgency just below the surface: a writer's desperate need to shatter the rosy one-way mirror that stands between literature and life."
(DARA HORN)


Responda sem pestanejar: qual é o personagem mais sádico da história da literatura, o campeão supremo do mal, o chifrudo fedente a enxofre que cometeu as piores mortandades e crueldades? Algum vilão do Marquês de Sade? O Satã do "Paraíso Perdido" de Milton? A Marquesa de Merteuil de "Ligações Perigosas"? A Cathy Ames de "A Leste do Éden"? Quem sabe Hannibal Lecter? Talvez não...



O sempre hiperbólico Richard Dawkins sugere uma outra solução, provocativa e iconoclástica, mas que não deixa de ser bem plausível: “O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo...”. [deus: um delírio]

Isso me lembra de um trecho magistral da Hilda Hilst, que em uma hilariante crônica de Cascos e Carícias provocava: "Não me conformo com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Para nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranóicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: 'sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar'. Até parece historinha sadô: 'me bate, amor, me corte de gilete, me põe o armário em cima'. Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não." [cascos e carícias]

Em A Graça de Deus, o brilhante romance de despedida de Malamud (que o escreveu em 1982, morrendo em 1986), esta divindade terrivelmente temperamental e bizarra é retratada perdendo as estribeiras. Depois de muito aguentar as macaquices da raça humana, o Cara Mais Poderoso do Universo se enfeza feito um gângster, tem um ataque psicótico incontrolável e decide mandar tudo pras cucuias. Ele lança sobre a Terra um Segundo Dilúvio, monumental e impiedoso, que faz picadinho - ou melhor: dá um belo dum caldo... - em todas as criaturas vivas sobre a face do planeta. Ou quase. Pois um judeuzinho rabudo, que estava em seu submarino na hora do atentado da jihad divina, acaba sobrevivendo. Numa ilha deserta, ao lado de um grupelho de macacos, vai tentar recomeçar a aventura humana como um Segundo Adão.



Esse personagem, Calvin Cohn, é uma mescla de Robinson Crusoé, Adão Pós-Moderno e Mersault (o anti-herói de Albert Camus). E o pobrezinho se engaja num duelo de esgrima com um Deus que parece um Calígula sanguinário. Calvin vê-se ao mesmo tempo nos apuros de viver na selva pré-civilizada (ou pós-diluviana), na angústia de encontrar um modo de perpetuar a espécie humana (o que ele faz trepando com uma macaquinha) e na revolta contra o Criador e Descriador. A solidão mais completa fustiga o nosso herói ("quão desolado era o mundo; quão lúgubres as experiências, quando se é um só a experimentá-las!" - 37) e "não há ninguém para se condoer de sua sina" (40). Tanto que, "se fosse possível inventar um mosquito, Cohn o inventaria." (57)

O Deus de Malamud se parece com um chefe que despede todos os seus empregados por justa causa, por comprovada incompetência ou cafajestice, e declara a empresa falida. Diz Ele: "Desde o início, quando lhes dei o dom da vida, tinham uma perversa avidez pela morte. Por fim pensei: dar-lhes-ei a morte, já que estão imersos no mal. Destruíram a minha obra, as condições para sua sobrevivência: o doce ar que lhes dei para respirar; a fresca água com que os abençoei para beber e banhar-se; a fértil Terra verde. Os homens dilaceraram meu ozônio, carbonizaram meu oxigênio, acidificaram minha refrescante chuva. Agora afrontam meu cosmos. (...) Em suma, o mal predominou. O Segundo Dilúvio foram os próprios homens que provocaram" (15).

Leitores ingênuos podem ver nessa magistral parábola um mero romance alarmista, que puxaria nossas orelhas de seres moralmente corruptos com a ameaça de uma hecatombe punitiva. A "moral da história" seria: Deus vai nos dizimar se não nos transformarmos logo em bons garotos. Até porque "A atual Devastação, que termina em fumaça e pó, é consequência da autotraição do homem", como justifica-se o genocida super-poderoso.

Mas Malamud escreveu um livro muito mais profundo do que uma mera ficção alarmista, que qualquer autorzinho cristão apocalíptico e moralista de meia-tigela poderia ter composto. O autor não só soa os alarmes contra os abusos ecológicos e morais da raça humana, como usa a catástrofe para desencadear todo um estouro da boiada de questionamentos teológicos.

Pois Calvin, o último dos homens, não é exatamente um fiel ortodoxo e submisso. Suas dúvidas religiosas o levam a perigosos confrontamentos com o Poderoso Chefão, que por vários momentos chega perto de fulminá-lo com um raio, Ele que tanto curte súbitos extermínios. Na manhã após a tragédia,

Calvin "acordou enlutado, pranteando o fim do ser humano, da existência humana, de todas as vidas perdidas. Enumerou todas as pessoas de quem se lembrava e também as que não conhecera mas cujos nomes tinha ouvido. Lamentou o fim da civilização, da bondade, da ousadia, da alegria, de tudo que o homem fizera de bom" e "encolerizou-se contra Deus, que destruíra seu próprio sonho" (19). É com estupefação e revolta que ele se pergunta: "Por que a vida humana significa tão pouco para Ele?" (21) E como Ele se sentiria no direito de infligir tão severas punições, se foi Ele mesmo, dizem, que nos criou assim, com tão "sérias imperfeições" (77)? Calvin diz: "Sentia por Deus mais temor do que amor."

O Calvin de Malamud é também crítico ferrenho da indiferença emocional divina: "Ele [Deus] poderia ao menos ter um mínimo de sentimento e comover-se com a aflição humana; considerar que muitos têm pouco e muitos não têm nada e que os homens vivem apenas um minuto e morrem em plena flor da juventude"). Ele ataca também o "serviço mal-feito" que Deus fez aos nos criar como criou ("não teria sido tão difícil para Ele dotar-nos com um pouco mais de controle sobre os instintos!").

E, claro, Calvin trata com ironia esse Deus desequilibrado que fica dando piti. "Missão cumprida: a Terra depurada de criaturas vivas, exceto talvez por uma barata subnutrida debaixo de uma bacia de madeira em Bombaim, que Ele exterminará com Seu spray da próxima vez que ela mostrar a cabeça com suas antenas frenéticas. O que O faz ser tão teatral?" (32)



Mas Calvin, de certo modo, reconhece que Deus tem lá suas razões para estar iracundo e decepcionado. Nas palestras e aulas que ele dá aos macacos da Ilha, tentando ensiná-los a não cometer os mesmos erros que cometeu a extinta raça humana, ele comenta: "...o que vimos foi o homem fazer um serviço bem sofrível nas suas relações com os outros homens, amando de uma maneira apenas superficial. O amor não é um fenômeno dos mais populares. Fala-se muito, mas na prática a coisa só arranha a epiderme. Seja como for, em todos esses séculos o homem não conseguiu dominar sua natureza e dar um fim a essa matança sem trégua. O que estou dizendo é que ele nunca dominou sua natureza animal para o benefício de todos (...). Tampouco conseguiu inventar uma forma de altruísmo que funcionasse na prática. Enfim, o homem comportou-se a maior parte do tempo de maneira irracional, insensata, selvagem e bestial. Estou me referindo, é claro, às repetidas mortandades." (128)

Calvin sabe muitíssimo bem, por exemplo, que a História Humana, que sempre foi um encharco de sangue, virou uma podreira enojante de tão imunda depois do Holocausto ("todo aquele sabão judaico feito com os corpos esqueléticos assassinados nas câmaras de gás") e da bomba H ("os americanos jogando as bombas em todos aqueles japoneses que de nada suspeitavam, rastejando às oito da manhã em meio aos cacos de vidro tentando encontrar seus globos oculares") (129). Que Pai não se revoltaria contra filhos capazes de tamanhas obscenidades?

Pois esses ápices no HORROR que o Homem conseguiu atingir nestes escândalos que sujam o século 20 podem gerar dois tipos de confrontação teológica. Por um lado, a negação absoluta da Divindade, o ateísmo completo, que diz que uma Criação tão cheia de pecado não corresponde a uma Causa Divina e Bondosa. Além disso, se o Onipotente não se manifestou para impedir tamanhos massacres e indignidades, é certamente porque: ou é Do Mal, o que não corresponde a Deus, ou simplesmente Não Existe. Existe um Demônio ou não existe nada: a isso se reduzem nossas opções. Ou seja, a hipótese de um Deus Bondoso, Onipotente e Interventor morreu de vez em Auschwitz e devemos seguir em frente sem essa imensa ilusão que nos entravou o caminho para o conhecimento por milênios.

Por outro lado, para aqueles que conseguem prosseguir crendo, esses terrores podem gerar dúvidas do tipo: como pode Ele permanecer impassível frente a um espetáculo tão de revirar o estômago? Por que é que não vomita um Segundo Dílúvio pra limpar toda essa sujeira? Donde a chuva de cristãos apocalípticos e outros religiosos de comportamento paranóico - "o Fim dos Tempos está chegando! Preparem-se para o Juízo Final! - que não é preciso andar mais que uma esquina em uma grande metrópole para encontrar...

* * * * * *

Esse é um livro desbocado, provocativo, às vezes bastante obsceno. Mais parece um livro de juventude, em que Malamud se mostra com a impertinência de um adolescente peralta, imaginando situações que a maioria dos homens ficaria de cabelo em pé só de imaginar. É o caso das cenas de sexo inter-espécies em "A Graça De Deus". Pois a certo ponto do romance, nosso herói, perdendo as esperanças de se deparar com alguma fêmea homo sapiens sobrevivente do Dilúvio, bola um "plano ousado" para driblar esse pequeno empecilho.

"O extraordinário feito que tinha em mente valia uma punhalada no escuro" (156). "Se ele e a macaca Maria Madalenta, unidos pela afeição mútua, e qualquer que fosse sua maneira de assestar e penetrar ele conseguisse depositar naquele útero acolhedor um jato do seu audacioso esperma, isso poderia mais cedo ou mais tarde exercer o efeito que ele esperava. (...) a evolução dos primatas exigia, como fundamento, além de algumas afortunadas mudanças macroevolucionárias, uma certa potência cerebral. Partindo de uma criança produzida por uma combinação de homem e chimpanzé, os dois seres mais inteligentes entre todas as criaturas de Deus, poderia surgir essa nova espécie - em última análise uma invenção de Cohn..." (157) Enfim: ele literalmente se decide a "fazer macaquices com a evolução" (159).

"A Graça de Deus" é tão sarcástico e iconoclástico, tão desrespeitoso frente a tabus sexuais e religiosos, que mais parece a obra de um autor ateu brincando de escrever uma continuação para a Bíblia. Nem de longe soa como o último livro de um escritor célebre por ter raízes judaicas profundas, o que nos faria supor um certo respeito temoroso por Jeová. Ao deixar sua imaginação voar livre e solta na criação desta infame parábola, Malamud cometeu uma obra que beira a ficção científica distópica e satírica - algo como um Planeta dos Macacos ou um Senhor das Moscas todo besuntado de questionamento teológico e ironia mordaz. Ao fazê-lo, esse brilhante autor americano, fechando com classe sua carreira de romancista, me dá a impressão de que escreveu um novo capítulo - divertidíssimo, pungente e estarrecedor! - do maior livro de ficção científica que a humanidade já imaginou: a Bíblia Sagrada.

(Já falei sobre outro clássico de Malamud, "O Bode Expiatório", aqui...)