quarta-feira, 30 de abril de 2008

:: os filmes de abril ::




62. SOY CUBA (de Mikhail Kalatozov, Cuba/URSS, 1964 [divx]) - 7.9
63. CLOSE-UP (de Abbas Kiarostami, Irã, 1990 [divx]) - 8.0
64. SIMONAL - NINGUÉM SABE O DURO QUE DEI (BR, 2007 [É tudo Verdade]) - 8.8
65. O ESCAFANDRO E A BORBOLETA (de Julian Shnabel, França, 2007 [divx]) - 9.5
66. ROLLING STONES - SHINE A LIGHT (de Martin Scorsese, [HSBC]) - 7.9
67. BASQUIAT (de Julian Schnabel, 1996 [divx]) - 8.0
68. THE ADDICTION (de Abel Ferrara, EUA, 1995 [divx]) - 6.7
67. A CULPA É DO FIDEL (de Julie Gravas, França, 2007 [CineSESC]) - 8.9
68. NÃO ESTOU LÁ (I'm NOt There, de Todd Haynes, EUA, 2007 [HSBC]) - 6.9
69. CONDUTA DE RISCO (de Tony Gilroy, EUA, 2007 [CineSESC]) - 8.0
70. BEFORE NIGHT FALLS (de Julian Schnabel [divx]) - 7.8
71. ASSÉDIO (de Bernardo Bertolucci [CinUSP]) - 6.5
72. O PASSADO (De hector Babenco [CineSESC]) - 6.0
73. A VIDA DOS OUTROS (Alemanha, 2007 [CineSESC]) - 9.0
74. THE CIVIL WAR - pt1/9 (de Ken Burns [divx]) - ...
75. D.I.Y. or DIE (doc de Michael W. Dean [divx]) - 6.9
76. LADY CHATTERLEY (de Pascale Ferran, França, 2007 [CineSESC]) - 8.8
77. THE CIVIL WAR - pt2/9 (de Ken Burns [divx]) - ...
78. ENCONTRO COM MILTON SANTOS (Brasil, 2007 [CineSESC]) - 6.0
79. DOIS DIAS EM PARIS (2 Days in Paris, de Julie Delpy [divx]) - 5.5
80. GRASS - THE HISTORY OF MARIJUANA (de Ron Mann [divx]) - 6.2

ouro: O ESCAFANDRO E A BORBOLETA
prata: A VIDA DOS OUTROS
bronze: A CULPA É DO FIDEL!


menção honrosa: LADY CHATTERLEY e SIMONAL

:: a única desculpa de Deus... ::

(escher)



O DIA EM QUE DEUS MORREU
(um conto autobiográfico)

Justo no Domingo, após uma dura semana de aulas, ser obrigado a acordar às sete da madrugada!? Tortura! Eu não queria! Mas era exigido pelas forças superiores do Universo a agarrar a cadernetinha de presenças e correr pra Igreja, onde iria ouvir com sono e remelas nos olhos o lenga-lenga do padre, segurando aquele jornalzinho que dava vontade de espirrar, naquele ritual estranho, cheio daquelas latinagens incompreensíveis, daqueles améns em coro, daquelas cantorias piegas todas... Ah, a vontade que dava era de fazer corpo-mole, inventar alguma falsa doença, fingir desmaio na cama, ou mesmo espernear: “ah nããão, mãe! Não quero!”

Sorte deles que não fui criança de dar escândalo, nem de reclamar muito dos fardos que me punham sobre os ombros - desde cedo, demonstrei alto talento para a resignação. Tinha sido informado por fontes muito confiáveis de que quem faltava à missa nos Domingos corria o risco de ir parar no inferno – ou, pelo menos, se insistisse em não comparecer à casa do Senhor no dia adequado, perigava repetir de ano no catecismo. Eu não sabia o que era pior, tamanha a semelhança entre as penas: se era o inferno, se era repetir de ano no catecismo... Então ia – mesmo que fosse cambaleando de sono, amaldiçoando toda a Criação, mas ia!

Eu devia ter o quê? Uns 10, 11 anos de idade? Por aí. Sendo o filho mais velho da família, aquele que deveria ser o exemplo supremo para os outros que viriam a seguir, eu tinha que ser posto no bom caminho. Tinha chegado a hora de eu entrar oficialmente na minha jornada em direção ao Paraíso, que começava com o catecismo, seguia com a crisma e se consumava depois com o casamento imaculado, monogâmico e até-que-a-morte-nos-separasse... Eu seria um garoto-modelo. Obviamente eu não pedi nada disso (alguma criança é louca o suficiente pra pedir pra ir pro catecismo?!), mas meus pais devem ter achado que era “bom pra mim” ter minha educação religiosa iniciada bem cedo na vida. Sábia escolha! Antes que minha razão se formasse devidamente e eu começasse a me tornar capaz de questionar tudo o que iriam despejar no meu pobre cérebro ingênuo, me puseram lá. Todo mundo ao meu redor – pai e mãe, vó e vô, tios e tias, todos os adultos super sabidos... - me garantiam que era fundamental, essencial e vital passar por esse processo. E quem era eu para duvidar? Fui matriculado então na igreja de Rudge Ramos, São Bernardo do Campo, pertinho de casa. Alguns quarteirões andados e eu já estava naquela ruidosa praça lotada de pombos em alvoroço, carrinhos de pipoca e alguns mendigos, onde ficava o templo onde eu daria meu primeiro aperto de mãos oficial com o Cara Mais Importante do Universo.

* * * * *

A natureza das minhas relações com o bom Deus, que aliás era conhecido por mim pelo carinhoso apelido de Papai-do-Céu, foram por muitos anos bastante harmoniosas. Se eu me lembro bem, eu imaginava a coisa sim: o Cara Mais Poderoso do Pedaço ficava lá em cima, sentado majestosamente numa espécie de trono acima das nuvens, todo brilhoso e dourado, e Seu Imenso Olho ficava espiando cada um dos meus atos, palavras e pensamentos. Ele era como um detetive contratado 24hrs para ficar no meu rastro e não me deixar sair da boa linha – e ficava ali, com o caderninho em mãos, anotando faltas e acertos, levantando ou abaixando o polegar para minhas atitudes, fazendo suas contas para ver se me aprovava ou não na prova, afinal de contas.

Eu tinha certeza que vivia num mundo onde o Cara Lá Em Cima era um juiz severo que intervinha no jogo apitando seu divino apito, levantando cartões amarelos e vermelhos e dando suas broncas disciplinatórias. Minha vó e minha mãe tinham me convencido da Verdade Absoluta: Deus castiga!

Cheguei a comprovar empiricamente que Deus, de fato, castigava. Era tiro e queda: era só eu fazer alguma pequena maldade, contar uma pequena mentira, cometer qualquer pequeno deslize, que o castigo divino vinha a galope. Era só eu pensar na vontade que eu tinha de matar de pancada algum brutamontes lá da escola que, alguns passos à frente, ia com certeza tropeçar numa pedra e esborrachar meu joelho no chão. Era só desejar algo de mal para o meu irmãozinho que poucos passos à frente eu já dava de cara com um poste. Deus nem tardava nem falhava. Justiceiro exemplar! Até os crimes de pensamento e de vontade, que pessoa nenhuma ficava sabendo, ele descobria com o olhar raio-X de Super-Poderoso Dele... Nowhere to run, nowhere to hide.

Eu tinha, pois, que ser um bom menino, obediente, estudioso e que não fala palavrão - porque senão ia tomar umas chineladas divinas bem ardidas. Se fizesse porcarias demais, o Cara Lá em Cima (que num era brincadeira não!) ia me botar de castigo num lugar subterrâneo cheio de lava, espinhos e câmaras de tortura, onde eu seria assado num espeto com um frango depenado, para todo o sempre. Deus era do Bem, sim, mas tinha lá seus requintes de crueldade! Era de dar medo.

De bicho-papão e de fantasma eu nunca tive muito cagaço, mas de Deus... ô se sim! Anos depois, quando reconheci toda essa história só como um conto de terror que tinham inventado pra me assustar, comecei a achar de uma crueldade imensa esse terrorismo dos adultos ao nos transmitirem esses belos princípios do santo cristianismo... E depois eles não entendem porque nós, pobres crianças lobotomizadas por essa lindíssima doutrina, temos pesadelos, insônias e ataques de pânico! Um Deus desses, que tem um baita dum Parque de Diversões para Exercício Pleno e Impune de Sua Maldade, com mil e uma formas de torturar e machucar as ovelhas que se desgarram do rebanho, é de meter medo em qualquer um! Na época, porém, eu provavelmente achava que de algum modo misterioso o Cara estava certo e que era melhor não questionar nada – até porque questionar demais também estava na tábua de coisas proibidas que levariam à minha condenação.

Mas Deus também era um Ouvido sempre aberto para ouvir minhas lamúrias, pedidos, súplicas e dúvidas. Um interlocutor com quem eu podia conversar sobre tudo. Um amigo imaginário para quem inexistiam segredos. Uma força protetora e benéfica que garantia que, no fim, tudo ficaria bem. Claro que eu tinha decorado o Pai Nosso (que está no céu, santificado seja o vosso nome...) e a Ave Maria (cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito o fruto de vosso ventre, Jesus...) Era obrigado. Obrigadíssimo. No catecismo, quem fosse pego em silêncio na hora das orações em conjunto, ou quem errasse um verso, destoando do grupo, tomava uma bronca daquelas da Tia. Mas não gostava de papaguear essas frases decoradas. Gostava era das minhas conversas com Deus e de me convencer que estava sendo ouvido por alguém infinitamente compreensivo.

E toda noite, antes de dormir, conversava com o Cara Mais Fodão do Cosmos, para que ele continuasse simpatizando comigo e me favorecendo - isso depois de cumprir as minhas obrigações e declamar as decorebas nos ouvidos do bom Deus. Que, eu imaginava, devia estar um tanto enjoado de ficar ouvindo aquela mesma arenga, todo santo dia, da boca de milhões de pessoas, há pelo menos dois milênios... “como é que ele aguenta?”, eu me perguntava... “É como ouvir a mesma música mil vezes por dia, por 2.000 mil anos – e uma música muito ruim, ainda por cima!”

A resposta era clara: não só a potência, a bondade, a generosidade e quantidade de instrumentos de tortura que Deus tinha inventado para o Inferno eram infinitos. A paciência de Deus era igualmente infinita. Porque haja paciência para suportar todo esse bando de homenzinhos toscos, dia após dia, implorando por mil coisas ridículas para suas vidinhas minúsculas! Papai Noel não sabia o que era encheção de saco, pois só no fim-de-ano começava a ser incomodado no seu idílio gelado no Pólo Norte com milhões de cartas das pessoas, mas Deus, coitado, todo dia tinha milhões de mendigos puxando a calça dele e pedindo presentinhos... Ê trabalho desagradável!

Eu nunca fui um garoto materialista. Ou pelo menos escondia esse meu lado de Deus, para que ele não visse com maus olhos e não fizesse aquela Cara Brava Dele que eu tão bem conhecia - acreditando, bobo que só eu, que de Deus dava pra esconder algo. Então nas minhas rezas noturnas nunca pedi a Deus um Mega Drive pra substituir meu Master System, nunca pedi um novo cartucho de Fórmula 1 ou a nova versão do Fifa Soccer, um novo bonequinho dos Cavaleiros do Zodíaco ou mais um brinquedo pra coleção de Comandos em Ação ou de carrinhos de controle remoto... Essas coisas eu deixava para pedir ao Papai Noel, que era mais generoso com nossos ímpetos consumistas e tinha mais vontade de auxiliar o desenvolvimento do Capitalismo do que o seu chefe Papai do Céu.

O que eu pedia? Não me lembro tão bem assim, mas talvez isso: que minha mãe e meu pai não morressem de repente num acidente de carro, numa explosão ou de alguma doença louca, porque aí eu ia ficar sozinho no mundo e ia muito muito triste; que nenhum bandido entrasse em casa pra roubar nossa TV, videocassete, videogame e a minha arduamente conquistada coleção de desenhos da Disney (Alladin, O Rei Leão, A Bela e a Fera, O Corcunda de Notre Dame...); que a Natália começasse a reparar em mim e no meu olhar tão distante e tão apaixonado - e que o Lulinha não ficasse puto da vida comigo quando descobrisse que eu estava paquerando a irmã menor dele (ela era uma gracinha!)... Coisas assim.

Tudo ia muito bem comigo, segundo a opinião de todos, inclusive do Bom Senhor. Eu realmente não gostava do catecismo, e odiei ter que ir à Igreja duas vezes por semana no segundo (e último) ano do meu treinamento para o exército cristão – uma vez por semana e mais a missa dos domingos já não tava de bom tamanho não?! Também não fiz nenhum grande amigo lá, até porque conversar na aula era terminantemente proibido e qualquer brincadeirinha mínima era reprimida como se estivesse escrito na Bíblia que Deus odeia toda e qualquer piada e que ser alegre é proibidíssimo.

Dentro de uma igreja, sempre me senti como se ser alegre fosse um delito seríssimo. Sorrir não podia. Gargalhar então... faria com que se abrisse um buraco no chão e eu fosse sugado direto para o reino de Satanás. Eles estavam nos treinando para sermos seríssimos, graves como um túmulo, sem nenhuma ironia, nenhum sarcasmo, donos de uma devoção totalmente pura e carrancuda. A gente não estava ali para ser feliz, para fazer amiguinhos, para se “divertir”, claro que não! Estava ali sendo convidado a admirar um tal de Jesus Cristo que, segundo as historinhas que nos contavam, era o filhão de Deus que tinha sofrido para redimir os pecados da humanidade, e nós deveríamos sofrer como ele, carregar como ele a nossa cruz, nossa coroa de espinhos, arrastando pela Terra uma infelicidade perpétua, adoçada pela esperança de uma outra vida, bem melhor, que começaria depois, no além-tumúlo, se a gente merecesse...

* * * * *

Já contei que eu estava matriculado numa igreja pertinho de onde eu morava na época, no Rudge Ramos, São Bernardo no Campo, terra de origem do nosso futuro presidente Lula. Naquela época, eu ainda era um pivetinho, que nunca tinha sido muito de jogar bola ou taco na rua com os vizinhos, e não tinha muita experiência de andar sozinho por aí - até porque minha mãe, paranóica como costumam ser as mães, achava perigoso. A gente morava numa quarteirão não muito bonito na Rua Brasil, que já tinha todo um histórico de assaltos e sujeitos mau-encarados rondando por ali. Mas minha mãe achou que eu já estava bem grandinho e, já que era pertinho de casa a igreja, eu podia ir sozinho: tava na hora de eu começar a me virar mais, sem pedir carona toda hora, até pra ir na banca de jornal ou na videolocadora... Aliás, como vivemos num Cosmos organizado e harmonioso, tudo ficaria bem. Meu anjo-da-guarda me acompanharia pelo caminho e me defenderia de todos os perigos com seu divino escudo.

Acontece que eu, ingênuo que só eu, andava pelas ruas bastante despreocupado. Claro que minha mãe tinha me comunicado os clichês de milênios que sempre são ditos para as criancinhas em suas primeiras aventuras sozinhas no mundo, desde o tempo da Chapeuzinho Vermelho entrando no bosque com sua cestinha: “não fale com estranhos!” e “sempre olhe para os dois lados antes de atravessar... e sempre na faixa de pedestres!” Eu obedecia, claro, mas achava bobagem – não tinha perigo algum e eu era esperto demais para me deixar atropelar assim... Pensavam que eu era o quê, idiota?

A melhor parte do catecismo era quando a aula acabava e eu estava livre para ir embora, sozinho, tendo a liberdade para fazer meu próprio itinerário pelo bairro, que tinha lá seus interesses – podia dar um pulo na locadora e pegar um filme ultra-violento, porque a igreja sempre me deu vontade de ver umas coisas punk; podia pegar uns doces nas barraquinhas ali da praça; mas, quase sempre, meu divertimento era pegar um atalho por dentro do Mercado Municipal do Rudge, todo verdinho naquela época, onde ficava a minha banca de jornal predileta naqueles tempos, a mais comprida que eu conhecia.

E aí um dia, lá estava eu, alegre e saltitante porque a chatérrima aula do catecismo tinha acabado e eu estava livre pra voltar pra casa, e fui-me no meu percurso habitual: parei na banquinha para comprar a nova Herói para a minha coleção, quem sabe alguns pacotes de figurinhas auto-colantes para o meu álbum dos Cavaleiros do Zodíaco, e segui pra casa. No farol que dava para o meu quarteirão, parei às beiras da faixa de pedestre, folheando minha revista enquanto o semáforo não abria, despreocupado como um ingênuo cordeiro que nem suspeita estar no campo dos lobos.

E aí cola em mim um brutamonte de meter medo: pele morena, mau-vestido e mau-encarado, vestido nuns trapos já um tanto fedorentos, medindo uns 30 centímetros mais do que eu, pesando uns 40 quilos mais, possuindo uns 50% mais de massa muscular e muque. Eu demorei um pouco para entender que o que estava encostado ao meu corpo era um canivete. Demorei um pouco mais ainda para entender o que queria dizer a frase que ele me diz:

- Num tenta nenhuma gracinha que eu te furo. Já furei dois cara já.

Imaginem o Maguila encostando os ombros em Olivia Palito e terão uma idéia da cena e da desproporção de nossas forças. Eu podia até assistir meus seriados de super-heróis, mas ali não havia chance para eu dar demonstrações de heroísmo – não era valente desse jeito. Ele chegou gingando como ginga todo malandro que se acha o dono da rua. Com a atitude arrogante de alguém que sabe que está no poder e que vai pegar o que quer, mesmo que seja à força. Um cara que tinha cólera explícita nos olhos, que parecia estar num campo de batalha de uma guerra que anos depois eu aprenderia a chamar de Luta de Classes, e que, claro, viu uma presa muito fácil naquele garoto branco esquelético e arrumadinho que voltava pra casa da igreja folheando suas revistinhas e segurando, com incontida impaciência, suas figurinhas – louco para chegar em casa e rasgar com volúpia os pacotinhos...

De repente, então, lá estava eu, com uma faca encostada na minha pele, um maluco me mandando andar pelas ruas ao lado dele, me conduzindo para algum beco mal-iluminado ou deserto onde, eu já previa, algo de terrível aconteceria. Meu coração batia acelerado como um baterista de hardcore. Ao mesmo tempo eu estava gelado, paralisado, em estado de choque. Será que a minha vida estava acabando? Era esse o final da minha história, o desfecho do meu destino, morrer esfaqueado por um trombadinha por causa de um relógio e uma nota de dez reais?

O assalto em si durou pouco, menos de cinco minutos: uma rua deserta e sem saída foi logo encontrada, o canivete foi somente usado como instrumento de ameaça e não de “furação” e eu fui surrupiado dos meus bens de valor rapidinho, sem ter nenhuma gota do meu sangue derramado. Mas quando eu arrastei a minha carcaça humana de volta para casa eu era uma criança já completamente diferente da que tinha sido poucos minutos atrás – estava traumatizado como alguém que é subitamente atropelado e se levanta zonzo.

Dúvidas religiosas eu já tinha, apesar de não confessar a ninguém tão hereges ceticismos, mas esse evento só fez com se intensificasse o crescimento da descrença. Porque o que tinha acontecido não me parecia nem compreensível nem justo. Eu estava enfurecido e revoltado contra Deus, que nos diziam ser plenipotente e infinitamente generoso, e que ainda assim havia assistido impassível a esse espetáculo de indignar qualquer pessoa de coração: uma criança inocente atacada e roubada na rua por um hooligan sanguinário qualquer. Onde estava o desgraçado na hora em que eu mais precisava dele? Tinha pegado no sono? Estava ocupado demais com vigilâncias mais relevantes? Minha proteção não estava entre suas prioridades? Quer dizer então que se eu morresse, não faria nenhuma diferença? Eu estava indignado. Mais com Deus do que com o bandido.

Com Deus. Por ter criado uma bosta de mundo lotado de pobreza e desigualdade, onde pessoas têm necessariamente que virar criminosas ou então passar fome. Com Deus. Por ter feito esse bandido em particular cruzar justo no meu caminho e escolher justamente a mim como vítima. Com Deus. Por não ter se manifestado na ocasião em que eu mais precisava, mais o chamava, mais o invocava. Pensei, em retrospecto, que não seria nada impossível que o trombadinha, só por descarrego de ódio, me “furasse”, como ele ameaçou, segundo seu costume, e que Deus, me vendo ali, sangrando litros em cima de uma calçada desconhecida e deserta, não movesse um dedo de sua mão onipotente para me salvar. Será possível que Deus seja um canalha desse tipo, que assiste seus filhos sendo judiados e não dá a mínima? Eu estava completamente indignado.

Restava uma solução para o enigma: talvez eu fosse culpado de algum pecado, de algum crime que cometi sem perceber, de alguma imoralidade invisível para mim mesmo, e estava então sendo punido. Me vasculhei inteiro e não achei motivo que me fizesse merecer castigo tão desproporcional à suposta falta. Protestei para o Céu que eu era inocente, completamente inocente! Logo eu, um garoto tão comportadinho, tão estudioso, tão celestial, que nunca na vida tinha ficado de recuperação, que não era de traquinagens excessivas, que não quebrava os vidros da vizinhança nem maltratava os bichinhos, que até ia na missa aos Domingos, sendo tão arbitrariamente agredido!

As sementes da descrença já tinham sido plantadas em mim. Comecei a olhar para o mundo e perceber nele a feiúra, o descompasso, o sofrimento, a pobreza, a morte final de todos, e não podia evitar aquela sensação de que algo estava errado. Este planeta não parecia ser a obra de uma entidade infitamente sábia, bondosa e potente. O serviço estava muito mal-feito para que desse para acreditar nessa lorota. E na escola eu já estava começando a receber as primeiras lições de uma “educação para a realidade” - o que a religião nunca foi em toda a História. Professores de geografia chocavam a classe citando os números estratosféricos de seres humanos que morriam de fome todos os dias – 30 mil, me diziam. Professores de história narravam todos os massacres, genocídios e guerras de que está tão repleto o destino humano nesse planeta – e inclusive víamos slides dos campos de concentração nazistas, com seus fornos crematórios, suas câmaras de gás, suas imensas covas de massa. Professores de biologia explicavam o processo de evolução das espécies e a cadeia alimentar, mostrando que a gente não era muito diferente dum gorila um pouco melhorado, um chimpanzé depois de ter feito download dum upgrade, e que a natureza em geral era um espetáculo grotesco onde os bichinhos ficavam se entredevorando uns aos outros feito loucos, o tempo todo, uma começão sangrenta danada...

Deus ainda existia, mas era uma criatura cada vez mais repugnante, nojenta, de deixar indignado. Quer dizer então que Deus ficava lá sentado em sua divina bunda assistindo, todo dia, a 30 mil pessoas morrendo de fome? Quer dizer que Deus tinha permanecido imóvel e impassível enquanto seis milhões de judeus levantavam, um a um, suas súplicas ao Céu por socorro? Quer dizer que Deus tinha criado suas criaturas obrigando-as a, para sobreviver, ficarem se matando umas às outras em tempo integral? A pergunta, que doía fazer, mas que era inevitável, chegou: mas Deus não tem coração? Esse filho-duma-puta pensa o quê?! Que pode ficar eternamente silente e eternamente inativo enquanto a humanidade se estrepa?! E a conclusão se impunha: Deus não é tão bom assim. A indiferença, a omissão, a revoltante ausência de intervenção nas ocasiões em que uma intervenção era absolutamente indispensável, tudo isso foi transformando Deus em uma criatura insensível, sem misericórdia, sem amor, espectador passivo de um sofrimento que ele nada fazia para remedia. Uma criatura quase diabólica. Fiquei com medo de viver num mundo em que Deus e o Demônio era a mesmíssima coisa. Parecia.

Mas, por sorte, havia uma outra opção, muito mais plausível: que Deus não existia. Seu silêncio era o silêncio da ausência de boca e de pulmão. Sua falta de misericórdia e de amor era feito da ausência de coração, de corpo, de tudo. Sua inatividade e sua omissão era mero efeito de sua inexistência. Deus não era maldoso: Deus simplesmente não era. Se Ele existisse, seria necessariamente culpado. “A única desculpa de Deus é que Ele não existe”.

Eu continuei no catecismo, por inércia, por falta de ímpeto para a rebeldia, por obediência aos meus pais, porque já tinha feito mais de metade, por qualquer coisa menos por fé ou por desejo de estar ali. Aliás, ninguém no mundo lá fora sabia que um trombadinha com um canivete tinha assassinado Deus dentro de mim, para sempre. No dia da gloriosa consumação de todo o processo, a Primeira Comunhão, eu, com a hóstia na língua, não senti muita coisa de sublime ou transcendental. Não era nada muito diferente do que ter um pedaço de papelão derretendo na boca. Foi minha primeira e última comunhão.

Daquele dia em diante, nunca mais quis entrar numa igreja. Tinha tomado a decisão precoce de abrir os olhos para ver a verdade nua e crua, e não a versão distorcida e sentimentalizada, impregnada de desejo e de fantasia, que a religião nos vende como se fosse a realidade última. Da revolta contra Deus passei à angústia de viver debaixo dum Céu completamente vazio. Mas com o sentimento de ter efetuado um abandono legítimo. Porque Deus tinha tido sua chance e não passara no teste. Ele não tinha sido paternal, protetor, amante, misericordioso, generoso, bom. Deus tinha começado a me parecer um Demônio indiferente e omisso, que não se comove com os rios de lágrimas que choram suas crianças, que não move um dedinho de sua mão onipotente para ajudar ninguém, que permanece silencioso frente a todas as orações e súplicas e que, afinal de contas, criou um mundo cheio de coisa errada. E se fosse pra ter um Pai desses, eu preferia ser órfão.

terça-feira, 29 de abril de 2008

:: he not busy being born is busy dying ::


"Nascer é muito comprido."
(Murilo Mendes)


(E pra ninguém é missão cumprida.)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

:: virada curturá ::


"Minha morte não me quis."
OS MUTANTES

QUERIDO DIÁRIO,

...e esse foi o findi da Virada Cultural, evento anual trimmassa realizado pela Secretaria de Cultura de Sampa Town. Foi uma maratona de shows cansativa pra diabo, mas que valeu cada segundo. No fim desse quebrador fim-de-semana eu mal me aguentava em pé, tava com os tímpanos bem judiados e tinha um sono que pedia umas 16 horas ininterruptas de descanso redentor, mas mesmo assim valeu a pena - pra caralho.

Saí de casa às 8 e pouco do Sabadão, querendo pegar Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos no Teatro Municipal, mas a fila, de virar quarteirão, assustava. Mas fui lá e, valente, enfrentei o monstro mítico, acompanhado por um recém-adquirido amigo nigeriano (que faz FEA!), que me deu uma aula inteira sobre a explosão demográfica em Lagos e sobre a colonização inglesa no país (por isso adoro tanto morar em república: de que outro jeito eu conheceria um cara como o Tony?). O negão, gente-boníssima, me apresentou à sua namorada colombiana e bióloga e a seu amigo egípcio de dois metros e dez de altura – e esperamos e esperamos, dando passinhos de tartaruga na fila. Tempos de globalização!

Claro que (Murphy obriga) o teatro lotou rapidim e os babacas que, como eu, tinham ficado na fila por meia-hora ou mais, ficaram de mãos abanando – e levantando dedos médios para Deus e o mundo. Eu, que tava decidido a entrar no Municipal pela primeira vez, conhecendo as entranhas desse histórico edifício paulistano que abrigou tanta coisa antológica (como a Semana de Arte Moderna de 1922), fiquei esperando a próxima atração: Sá, Rodrix e Guarabyra! Nem curto essa bagaça, muito chumbrega!, mas tava decidido a olhar tudo usando a minha (qase) célebre Técnica da Devida Ironia. Minha teoria, filosofia muito fina e profunda!, é que certas coisas, para darem experiências estéticas suportáveis, precisam só ser vistas com a devida ironia. Dá certo! Botem fé!

Depois saí dando altos rolês pelo Centro Velho de Sampa, que eu conhecia bem pouco e com o qual me familiarizei mais nesse findi – porque eu só manjava mesmo sobre as redondezas da Galeria do Rock e só fui conhecer a Sé e o Largo São Francisco ano passado, com a Carolzita servindo como ótema guia turística. Na madrugada da Virada, que é um encontro marcado não só com atrações musicais, cinematográficas e artistícas legais, mas com a própria cidade com toda a sua diversidade, zanzei por ali até ficar impregnado com São Paulo – Prefeitura, Viaduto do Chã, Praça da República, São João, Ipiranga, Rio Branco, todas passeadas com o maior sentimento de aventura e perigo. Percebi o quanto eu gosto de morar na maior metrópole da América Latina, mesmo com toda a trashice que há por aqui.

Depois da breguice do Sá, Rodrix e Guarabyra, nada melhor do que pegar um pouco de METAUUUUUU pra molhar a alma com um pouco de róquenrou do mal. Fui lá ver o tio Paul Dianno, o primeiro vocalista do Iron Maiden, que tava fazendo um show em homenagem ao Killers, disco que eu, quando pivete, até curtia – e quem num foi fã de Maiden na adolescência que atire a primeira pedra! (Até hoje vejo com a maior nostalgia o meu The Best Of The Beast, duplo e com livrinho, que comprei por uma fortuna quando tinha uns 14 anos de idade e que era o item mais fantástico da minha então pequena coleção de discos...)

Dotado de uma carequinha reluzente e um cavanhaque tarântula, o gordo soltou o gogó num show pra headbanger nenhum botar defeito. As camisetas pretas das bandas mais diversas – Savatage, Stratovarius, Manowar, Helloween, Rhapsody... - eram vistas juntas a prestar homenagens pescoçais ao hômi. Mas o que achei mais bizarro foi um cara, figuraça, que parecia ter usado algo muito mais poderoso como enlouquecente do que álcool, com uma camiseta do Engenheiros do Havaí, que headbangava com uma insanidade maior do que qualquer outra pessoa no meu campo visual. Deu vontade de ir lá perguntar “cara, essa camiseta aí é pura ironia, né não?” - mas fiquei com medo de apanhar. Vai que o cara leva o Humbertão Guéssinjer a sério. Uma pessoa assim é de apavorar!

O ápice do show, porém, foi quando tio Paul Dianno resolveu mandar “Blitzkrieg Bop” numa versão crossover bem legal, um punk ametalhado bem duca, e aí os metaleiros se renderam ao pogo. Foi genial ver como o eterno clássico ramônico faz com que as barreiras entre tribos caiam imediatamente e os fãs de metal extremo, metal melódico, punk, hardcore e roquinho nacional mela-cueca se juntem na mesma dança.

Aí foi a hora de trombar o Rôôunnie, amigão vindo direto de Sbólândia para prestigiar a Virada, dessa vez tendo um colchonete amigo lá na rep onde capotar depois do evento - sem precisar dormir na grama da praça feito um mendigo como fez no ano passado. Juntos fomos enfrentar um organismo animal incrível, de nome científico muvuca extremis, que já estava lá, gigantesco, na frente do Palco São João. Era a hora do show mais aguardado da noite, pra mim: Mutantes. Sem Arnaldo e sem Zélia Duncan, obviamente sem Rita Lee, mas Mutantes é Mutantes.

Uma das maiores diversões do show foi a gente se embrenhando no meio do povo, como desbravadores de uma mata fechada, levando a falta de educação até o extremo pra tentar chegar mais perto do palco – e com quê sucesso! Nunca na vida eu tinha conseguido partir de tão lonjão e chegar numa visão de palco tão foda. Palmas para o Ronnie e a cara-de-pau contagiante dele (hehe!).


Eu achei o show absolutamente do caralho. Esse reunion dos Mutantes, que muita gente não botou fé (sempre tem quem xingue de caça-níquel e diga que defunto tem mais é que ficar morto e não vir assombrar o mundo dos vivos), eu tô achando ótimo. Já tinha adorado o show que eles fizeram para 50.000 pessoas no aniversário de São Paulo de anos atrás, precedidos naquela ocasião pela Nação Zumbi e pelo Tom Zé, que foi um treco absolutamente antológico: depois de 30 anos longe, os Mutantes voltando aos palcos, triunfalmente, frente a uma multidão daquelas...

O show deste Sábado eu achei ainda mais foda. O Sérginho Dias, agora líder inconteste da banda, tá rock-star bragarai e desembestou em pirotecnias de fritador muito legais. Hoje em dia ele deve ficar o dia todo lá no Playstation jogando Guitar Hero. Vários crássicos mutantes foram reproduzidos com grande fidelidade – curti especialmente “2001”, “Ando Meio Desligado” (com solo de guitarra extra longo) e “Não Vá se Perder Por Aí”. E tia Zélia que me perdoe, mas ela fez falta nenhuma, substituída com muito esmero por uma tal de Beatriz Menezes (que se não me engano costumava ser backing vocal) – a mina é muito foda. Ela cantando “Top Top”, aliás um dos pontos altos da noite, com o povo todo dando socos no ar na hora do “top top top top – rú!”, soou igualzinho ao disco. Sem falar que a “Balada do Louco”, cantada em coro por uma multidão, é sempre uma experiência transcendental de tão legal – ou legal de tão transcendental. “Juro que é melhóóóóóóór... não ser um normááááááál... se posso pensar que Deus sou eu..........”. Do caralho.

Às 5 da manhã, resolvemos que era hora de ir pra casa, dormir um par de horinhas para depois voltar para o Segundo Tempo da Festa. O serviço de busão tava trash e ficamos uns 45 minutos para conseguir voltar para a Cidade Universitária, onde fomos dormir quando o Sol já nascia e a claridade já invadia meu tosco quarto de cortinas escrotas que não barram porra nenhuma.

Pegar no sono às 7 da manhã e ter que levantar as 9h45 é um processo dolorosíssimo, digno de um mártir religioso, mas o pensamento de que o Cachorro Grande estaria subindo ao palco logo mais nos fez arranjar forças pra pular da cama, tomar uma ducha rápida, cozinhar um macarrãozão instantâneo e voltar para o Centro. Debaixo dum Sol escaldante (“só na cidade de vocês rola rock and roll ao meio-dia!”, gritou o vocal do Cachorro ao microfone, derretendo dentro de seu terninho...), os gaúchos deram uma estupenda aula de róque, como de praxe.



Poucas bandas desse país são mais legais de ver ao vivo. Nem sou tão fã da banda e ouço os discos deles raramente, mas em cima do palco os putos fazem qualquer público pegar fogo e soam como o The Who brasileiro deste começo de século. Para uma banda nova, já tem um repertório excelente, com crássicos que todo mundo canta junto como “Lunático”, “Sexperienced”, “Isso é uma Loucura” e o hino de louvor às drogas psicodélicas “Roda Gigante”. Tudo bem que o vocalista tem uma voz que, depois de um tempo, começa a irritar – e que a atitude dele deixa a gente imaginando que ele foi um molequinho gordo traquinas e rabugento que na escola tomava altas broncas do diretor por ficar peidando com a boca no meio da aula de ciências.

Pra fechar o Domingão, fomos lá ver o Orquestra Imperial. Nesse momento minhas pernas já mandavam frequentemente para o cérebro pedidos de férias, e o cansaço já batia forte (ai que saudade da minha cama!), mas mesmo assim resisti firme e forte, de pé, e até curti o show agradável e simpático dos caras – festança pura. Very grooovy. Pra mim, claro, a grande atração em cima do palco era o Amarante, parecendo estar breacaço e feliz feito uma criança - ele que por grande parte do show fica ali só de sacanagem, fazendo das suas zoeiras, fingindo que faz percussão, tomando suas latinhas de cerveja e dançando suas macacagens. Quando ele assume o vocal, é a hora de glória do Orquestra. Memórias afetivas dos Los Hermanos voltam à mente enquanto ele nos presenteia com aquela performance vocal ultra cool... Ele cantando “Bebo Sim” (e tô vivendo... tem gente que não bebe, está morrendo...), pra fechar o show, foi demais.

Jorge Ben, que tocou pra 30 mil pessoas, estava no nosso programa, mas tivemos que desencanar porque uma banda ainda mais importante pedia nossa atenção e dedicação: a nossa mesmo. E bóra pro ensaio na Teodoro, com cervejinha antes e cervejinha depois, pra acabar de reduzir meu ser sonolento até às beiras do desmaio... Mas foi duca. Já tão saindo bem as musiquinhas todas do Rancid, da Juliette Lewis, do Supergrass, do International Noise Conspiracy, do Stooges, do The Clash, entre outros, que vocês logo mais poderão conferir tocadas ao vivo nos palcos indie de nosso Brasil. Depois de acaloradas e divertidas discussões, estamos quase com certeza batizados como Liga das Senhoras Católicas (o meu nome predileto, Moicano Imaginário, acabou relegado e agora vai ter que virar nome de música...). Vocês ouvirão falar de nós nos jornais do futuro! Mesmo que seja nas páginas policiais.

sábado, 26 de abril de 2008

Texto novo sobre o Wilco no Depredando o Orelhão.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

:: as utilíssimas lágrimas de amor ::

(Isabelle Adjani como Adele H, a filha de Victor Hugo que endoideceu de amor,
no filmaço de François Truffaut L'Histoire D'Adele H)



"Para nosso consolo, o sofrimento tem lá suas vantagens. Um bioquímico americano, William Frey, descobriu até que as lágrimas de amor são utilíssimas. Como as de felicidade, e à diferença das de irritação, são muito ricas em proteínas. Segundo ele servem - como o suor e a urina - para eliminar toxinas do organismo; no caso, substâncias produzidas pelo estresse emocional.

Mas não é só do ponto de vista protéico que o sofrimento é necessário. Há tempos, e para minha total surpresa, Ziraldo me disse: "Eu nunca sofri." Dei-lhe pêsames, tentei convencê-lo de que estava perdendo um sentimento fundamental, de que como criador, privava-se de uma experiência indispensável à plena realização artística. Ele me olhava e ria, sem querer entender. Pena que naquela época eu ainda não tivesse lido Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, senão poderia ter-lhe contado a história da monja que em 1199 partiu em direção a uma distante abadia cisterciense, para obter, através das orações dos monges, o dom das lágrimas. Porém sem história para contar - as pessoas se fiam muito em citações altissonantes -, parecia que a louca era eu. Pois se todos vivem querendo ser felizes, Ziraldo, que o era ininterruptamente, só podia estar certo.

Mas outro dia ele chegou para mim com um sorriso e disse: "Agora eu já sofri." E ao dizê-lo tapou por um instante o rosto com a mão. Não escondeu o olhar por ter-me entregue um sentimento negativo, vergonhoso, mas sim porque ter sofrido fazia dele uma pessoa melhor. E teve pudor, como se estivesse me contando uma vantagem.

O sofrimento não nos faz melhores por ser, em si, uma coisa ótima. No auge do sofrimento, somos tão cegos quanto no auge da felicidade. Mas ele nos melhora porque é lento de diluir, e nessa lentidão desbravamos trilhas que o bem-estar fazia parecer inúteis ou inexistentes.

Sofrer por amor nos obriga a pensar esse amor vezes sem fim. Viramos o amor de um lado, examinamos tudo, viramos do outro, tornamos a examinar. E viramos e reviramos na tentativa de ver todos os ângulos, na esperança de que desse exame nasça o entendimento. Pois sabemos que entender nos ajudará a sofrer menos.

Assim, o sofrimento nos obriga a um tipo de atenção diferente da do amor. Enquanto este só está interessado em procurar as qualidades que lhe servirão de reforço, aquele acreditar procurar a verdade. No ato prático é pouco provável que a encontre, porque está envolvido demais, sem possibilidade de distanciamento. Mas à medida que o próprio mecanismo de observação progride, e o tempo passa, o distanciamento se faz, e começamos realmente a enxergar melhor.

Por outro lado, um sofrimento bem aproveitado nos acrescenta sempre alguma sabedoria, que poderemos aplicar em amores futuros. Não convém contar com essa aplicação para evitar outros sofrimentos, mas pode-se ter certeza de que ajudará na interminável construção da felicidade.

Das vezes todas em que estive infeliz nunca consegui pensar "que bom, eis que como um sábio no seu eremitério eu me enriqueço nesse sofrimento". Achei que era um inferno, uma maldição dos céus, uma injustiça. Cuspi sangue, cuspi maribondos. E quis sair do sofrimento o mais depressa possível. Qualquer outra atitude teria sido puro masoquismo.

Mas já tendo atravessado a pé vários desertos, olho para trás e vejo que de todas as travessias extraí coisas importantes. Voltam à minha memória aulas de geografia da infância, o Nilo subindo, inundando tudo, e retirando-se depois, deixando como herança a lama fertilizante. A imagem é melosa, mas acho que sofrimento de amor, sofrimento bem grande, é assim mesmo, uma tremenda inundação que nos leva de roldão, quase nos afoga, depois nos deixa ainda por um bom tempo bracejando de borco na lama. Mas que afinal, quando o sol brilha, quase para nossa surpresa, ajuda no fortalecimento de novas brotações."


(Marina Colasanti)


Achei biito ao extremo e me levou quase às lágrimas.

Daqueles textos que mais parecem com amigos-do-peito que, estando a par de tudo o que tá rolando, chegam dizendo no momento mais oportuno tudo o que mais precisamos ouvir.

terça-feira, 22 de abril de 2008

:: the power's out in the heart of men ::


"Come on baby in our dreams,
we can live our misbehavior"

* Pus um textão inédito, um tanto amalucado, ambicioso pra mais de metro e prolixo como de praxe sobre o ARCADE FIRE lá no Depredando - confiram! Fazia tempo que eu queria conseguir colocar em palavras tudo o que me fascina nesta bandaça canadense, mas demorei muito tempo pra digerir a obra (já são alguns anos ouvindo e penetrando cada vez mais fundo no mundo que eles criaram...) e pra sacar melhor (e poder explicar!) de onde vem tanto fascínio que eles geraram - sobre mim e meio mundo.

Pra mim o Funeral é um dos melhores álbuns lançados nesta década, sem dúvida alguma, e o Arcade Fire uma das bandas hoje, no mundo, que tem uma das propostas artísticas mais brilhantes. Se me perguntarem, as 3 melhores bandas do planeta Terra, atualmente, são o Radiohead, o Wilco e o Arcade Fire. Quem discordar que meta o bedelho nos comments aí embaixo - esse blog bem que tá precisando dumas polêmicas! :P

Acho que nunca escrevi uma resenha tão pretensiosa (e olha que como crítico musical eu sou bem pretensioso!), nem tão detalhista, nem tão "viajandona"... Mas esse é o tipo de obra que merece um tratamento minucioso assim e eu, como fã, não me perdoaria escrevendo pra eles menos do que eles merecem. Eu tenho que me conter para não acabar escrevendo verdadeiras Teses de Doutorado sobre os discos que eu amo. Conheço poucas pessoas que tenham uma relação tão insanamente obsessiva e excessivamente emocional com a música. Tenho que me tratar! :)

Mesmo que ninguém tenha saco pra ler o treco inteiro - e eu sei bem que é altamente improvável que alguém tenha a disposição e o gosto pela banda suficientes para ler com atenção e cautela tudo que eu despejei no papel... - pelo menos vou ficar feliz se meia dúzia de pessoas começarem a ouvir esse disco fodaço com mais cuidado, com o coração mais aberto, prestando mais atenção na poesia e deixando-se envolver pelos "climões" arquêidianos... E nesse ponto eu sou preconceituoso e não abro: quem não gosta de "Wake Up", "Power Out" ou "Rebellion (Lies)", me desculpem, mas boa gente não é!

Aliás, só para compartilhar uma felicidade besta provinda de uma trivialidade, sou um fã cada fez mais feliz da banda agora que sou o orgulhoso detentor duma camiseta trim-massa deles - cor vinho, com letras douradas, comprada barateenho na Galeria do Rock junto com aquela do Bart Simpson vestido à la Laranja Mecânica (outro presente adorável que não resisti comprar pra mim mesmo)! Tô adorando desfilar por aí como um garoto-propaganda ou outdoor ambulante desse treco esplêndido que é o Arcade Fire.



* Algumas palavras sobre o tio Zé Miguel Wisnik. Esse semestre, pela 1a vez, fui dar um passeio em outros rincões da FFLCH fora a Filosofia e tô frequentando, lá na Letras, o curso de Literatura Brasileira I com o Zé Miguel - autor de um dos livros sobre música mais excelentes que eu já li (O Som e O Sentido), idealizador do bacanérrimo Museu da Língua Portuguesa lá da Estação da Luz e músico/compositor que já foi parceiro do Tom Zé. E putaqueopariu, que aulas fodaças esse cara dá! Fazia tempo que eu não me empolgava tanto com uma disciplina. Se pá tá sendo a melhor que eu já fiz na USP.

As exegeses poéticas que o cara faz são tão brilhantes que eu fico boquiaberto de admiração. Incrível como um professor consegue ficar falando por 2 horas sobre um poema de uma dúzia de versos e fazer sair dele tanto conteúdo interessante e invisível à primeira vista. Cada poesia é como um fruto que ele espreme até retirar dele todo o suco possível e imaginável. Sem falar que o repertório do cara é tão vasto, e as relações que ele consegue estabelecer são tantas e tão brilhantes, que ele estabelece links com o resto do Universo partindo de qualquer coisinha minúscula.

Ele parte do Manuel Bandeira e sua Teresa das pernas estúpidas e daqui a pouco tá numa digressão monumental sobre Reich e a desrepressão sexual, sobre a herança maldita do Dualismo Cristão e sobre as Funções Cósmicas de Serviço ao Deus Eros e Dionísio prestados pela poesia erótica.... Ele parte do Oswald de Andrade e do Manifesto Antropofágico e daqui a pouco já tá falando os troços mais interessantes sobre a Tropicália, o Brasil do AI-5 e cantarolando clássicos dos Mutantes... Ele parte do Macunaíma e, claro, daqui a pouco tá dando uma Aula (com A maiúsculo) sobre a cultura e o folclore brasileiros. E sempre colocando música no meio de tudo - seja dividindo a classe em várias "seções" para cantar em "coro" um poema do Mário de Andrade, seja expondo as vanguardas musicais do começo do século (inclusive tocando, para uma sala bestificada, músicas do Schoenberg, do Stravinsky e do John Cage), seja desembestando em cantorias de marchinhas de carnaval ou sucessos populares nos momentos mais inesperados. Adoro o tio Wisnik! Ele tem uma das características que eu acho mais raras e mais bacanas de um professor: ele te dá vontade de ser como ele.

Sem falar que eu gosto muito mais do pessoal da Letras do que do pessoal da Filô. Não é só porque tem mais mulherada e sempre tem umas beldades pra gente ficar paquerando quando a aula perde o interesse, apesar disso contar pontos para o veredito favorável, claro. (Umas loirinhas mto lindinhas na minha sala! Pena que eu só olho!) Mas a Letras é duca também porque lá a galera é mais zoneadora, mais falante, mais jovem. De vez em quando, coisa incrível, as salas são ruidosas antes do começo das aulas, as pessoas conversam em turminhas e panelinhas (uau! que coisa!) e o professor tem que pedir silêncio pra galera do fundão como se estivéssemos no colegial - coisas que, acreditem se quiser, na filosofia não ocorrem jamais. Os filosofinhos são tão certinhos e comportadinhos que não lembro de quase nenhuma vez em que tiveram que ser postos na linha por medidas disciplinatórias. E ainda estão pra ser inventadas as panelinhas da filosofia. Povo mais individualista, sô! Tudo "solipsista"! (huhauhuahuha!) Quase um convento, a Filô! Um horror!





* Estive assistindo tantos filmes do caralho ultimamente, e que eu gostaria de comentar e recomendar, que fico até perdido e não sei por onde começar. Uma das melhores descobertas do mês foi o JULIAN SCHNABEL, artista plástico (é dele a pintura acima...) transformado em cineasta, de quem assisti todos os 3 filmes recentemente. Todos são foda. Julian Schnabel, por enquanto, só fez filmes biográficos, mas escolheu muitíssimo bem seus objetos de estudo - sempre personas da vida-real excêntricas, vivendo vidas extraordinárias e criando arte nas circunstâncias mais extremas e improváveis.

O primeiro filme dele é o BASQUIAT (1996), retrato punk e sem firulas da vida do pintor nova-yorkino, morto aos 27 anos d'uma overdose de heroína, que foi uma espécie de Van Gogh das sarjetas e a verdadeira voz dos subúrbios se manifestando nas artes plásticas da América. Com a presença dum hilário David Bowie interpretando Andy Warhol, dum porra-loucaço Benicio Del Toro como amigo de Basquiat e uma putíssima e super cor-de-rosa Courtney Love passeando seu sex appeal junkie irresistível pelas telas, não podia dar errado.

Seu segundo filme, BEFORE NIGHT FALLS (2000), traz Javier Bardem numa de suas melhores atuações (achei muito melhor do que aquela do Onde Os Fracos Não Têm Vez, filme que achei pra lá de super-estimado...). Ele é Reinaldo Arenas, poeta cubano homossexual que, depois da Revolução conquistada pelos rebeldes da Sierra Maestra comandados por Fidel e Che, começa a ser perseguido pelo sistema e passa por maus bocados em prisões para os maricóns, acabando por buscar exílio nos Estados Unidos, onde conseguiu publicar grande parte de sua obra.

Ao mesmo tempo que revela um dos podres escondidos da Cuba Comunista - sua homofobia extrema, que chegava ao ponto de confinar os gays em verdadeiros campos de concentração... -, o filme é, como Basquiat, um retrato vívido de como um artista é capaz de criar mesmo estando na maior das fossas e como a arte, para ele, acaba servindo como um tubo de oxigênio - se ele não a tivesse, decerto não poderia viver.

Já o terceiro filme, indicado a alguns Oscars no ano passado (inclusive de Melhor Diretor), é o excelente O ESCAFANDRO E A BORBOLETA (Le Scaphandre et le Pappillon, de 2007), meu prediletíssimo do Schnabel. Nele, um jornalista francês, chefão da revista ELLE, acorda um dia no hospital para descobrir que está numa situação pra lá de incômoda: paralisado da ponta dos pés até o último fio dos cabelos, ele não pode fazer mais nada - nem andar, nem comer, nem falar. Não pode nem mover um pêlo que for. Tudo o que lhe restou é um mísero olho são, que ele é capaz de piscar - a única janela por onde o mundo pode entrar. Por trás desse corpo completamente petrificado, porém, está um cérebro perfeitamente intacto, que pode pensar, rememorar, imaginar, sonhar e perceber com a perfeição de sempre. O nome desse estado de coisas terrível é LOCKED-IN SYNDROME, designação extremamente poética e adequada para um doente que está completamente trancado dentro de si mesmo. É indizível a maneira extremamente comovente, poética e polvilhada de melancolia com que o Julian Schnabel nos conduz para dentro da alma desse homem enquanto ele procura achar alguma razão para viver.


Se, no começo do filme, ele parecia estar desesperadamente em busca de um modo de se suicidar ('c'est ça, la vie?', pergunta com uma amargura infinita, ao ver-se reduzido a um completo vegetal, incapaz de comunicar qualquer coisa que seja de sua vida interior para os outros homens...), com o prosseguimento do enredo uma luz começa a aparecer, uma aurora, uma saída... Através de um novo método de comunicação desenvolvido pelos médicos, torna-se possível a única coisa que poderia salvar o cara da completa desolação: um modo de sua alma, aparentemetne confinada num corpo como dentro de um escafandro inexpugnável, fluisse para fora. É de chorar essa história de como esse cara, que foi tido pelo mundo como um completo vegetal, estupidificado para sempre, consegue, só com o piscar de seu olho, ditar um livro inteiro para legar à humanidade o relato de sua desgraça. É como se uma alma, gota a gota, fosse vazando de um corpo que todos acreditavam praticamente morto e inútil.

É uma história real. O livro "O Escafandro e a Borboleta" foi publicado na França, com repercussão extremamente favorável, e a julgar pelos trechos transpostos para a telona é, de fato, uma obra lindíssima e um bom exemplo do quanto a necessidade de comunicação com outras almas é uma das mais cruciais na alma humana. Fazia tempo que eu não via um filme tão doloroso de ver, com um personagem com um destino tão comovedor e com lições de vida tão urgentes, dadas a golpes de ferimentos emocionais inflingidos no protagonista e, por efeito dominó, no espectador. Sem falar que, cinematograficamente, o filme é impecável e revoluciona o cinema com um uso excelente e super original da "câmera subjetiva".

Julian Schnabel - guardem esse nome, corram atrás desses filmes.

Esse é um dos raros casos em que as biografias dos artistas são, elas mesmas, verdadeiras obras-de-arte.


(p.s. amigável: tenho tudo em divx - quem quiser eu gravo!)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

:: news broadcast ::



Deixem-me contar algumas novidades sobre a minha vidinha, que eu mesmo sempre considerei tão insossa e não-hollywoodiana ("eita vida besta, meu deus!"), já que ultimamente, vejam só, coisas têm acontecido (uau!).

* Pois a minha carteira, estropiadaça e sem nada de muito valor, que tinha sido roubada na USP, reapareceu misteriosamente no banheiro da ADMINISTRAÇÃO DA FFLCH, com toda a grana e os tíquetes de bandeijão surrupiados, mas com todos os meus documentos devidamente devolvidos. O que prova, contra todos os guevarinhas canhotos que insistem em fazer inflamados discursos contra o Sucateamento da Universidade Pública, que dentro da Facul do Governo até bandido é mais ético do que lá fora! (rs) O trombadinha teve a delicadeza de deixar o item roubado no lugar onde seu legítimo dono seria mais facilmente localizado! Me espanta a bondade das pessoas. :P Fiquei aliviado porque não vou precisar perder horas no Papa Tempo tirando todos os trecos de novo, eu que odeio filas, burocracias, taxas e num dou a mínima pros meus documentos, apesar de saber que posso entrar em apuros não estando na posse deles... Agora vou ver se largo-mão de ser besta. De hoje em diante, cadeados e paranóia - porque o mundo é foda.


* Entrei na P.I.C.(a) e agora tô fudidim-da-silva-sauro e vou ter que estudar direitim, como um bom filósofo, pra honrar o meu pertencimento ao coiso... Sendo que estudar direitim mesmo foi algo que eu não fiz até agora neste curso - nem no anterior, claro. Não é que eu seja totalmente vagabundo e passe meus dias coçando o saco e vendo TV - muito pelo contrário! Eu leio muito mais do que 90% das pessoas que eu conheço, mas quase nunca são os textos e os xeróxes pedidos pelo professorado. Só consigo ler o que eu curto, o que me interessa de verdade, o que chama minha atenção, o que me empolga, me inflama, me influencia, me comove... Não gosto de estragar o prazer da leitura, que é uma das coisas que eu mais gosto de fazer nessa vida (ler, ler e ler...), com o aporrinhamento de ler por obrigação. Até hoje não sei direito o que significa "ler por obrigação" de tão pouco que eu fiz isso...

Bão, o processo seletivo do Programa de Iniciação Científica da Filô consistiu em várias etapas - uma dissertação com um tema difícil ("O consenso universal é prova de verdade?"), uma prova de línguas (tradução de um textículo filosófico esquisitíssimo!) e uma entrevista tenebrosa, frente a 4 professores da Filosofia, numa salinha sombria no fim-do-corredor, que parecia um enredo kafkiano...

Na dissertação eu citei até Nelson Rodrigues ("toda unanimidade é burra!", eu gritei, mostrando que o fato de algo ser reconhecido como verdade-unânime não provamuita coisa, já que é bem possível que todo mundo 'teja loucaço). Na tradução eu fugi até a biblioteca (me permitiram!), colei dum dicionário dus bão e notei que meu ingrish tá em bom estado. E depois menti adoidada e convincentemente na entrevista, dizendo que considerava meu desempenho no curso esplêndido, justificando muito bem as minhas bombas, garantindo que tinha a maior vontade de seguir carreira acadêmica e participar dos seminários sobre Kant e Hegel, e que ia me dedicar de corpo e espírito à minha pesquisa, cuja relevância universal eu soube defender mutcho bem... Mas a verdade é que eu estava visando com greedy eyes a bolsa, bom complemento à Bolsa Família que por enquanto tem me sustentado, e que seria um bom help pro meu pocket tão fucked up nos últimos tempos...

Eu ando malzão de grana... Isso por ser, ainda hoje (23 de idade oficial, apesar dos 13 de idade sentimental), funcionário da V.A.S.P. e punk-com-salário. (E também porque eu bebo demais - e o Supermercado Padrão tá querendo mifudê de vez vendendo Vodka Izbika, 48% de teor alcóolico, de efeitos etílicos comprovadamente fuderosos, por 10 pilas! Sacanagem!) Por isso achei que era uma boa ter alguém me pagando pra estudar. Ainda mais podendo ler o que eu quero ler e não o que me mandam. O legal da P.I.C.(a) - não abandono mais tão carinhoso apelido... - é que você pode se aprofundar mais nos assuntos, temas e autores que mais curte, sem ser obrigado, como acontece na maior parte das disciplinas, a ler uns nêgos que tu nem tá muito a fim de conhecer ou que ainda não chegou na hora certa de enfrentar...

O meu orientador, segundo o meu amigo Rodrigo Malmsteen, é a cara do Renato Russo. Ele avacalha legal as perguntas estúpidas que lhe são feitas e dá umas aulas que deixa todo mundo achando que o Spinoza era o maior loucão. Nesse semestre a coisa mais legal é ir pras aulas de Filosofia Moderna I e ficar tão malditamente confuso, perdido, desnorteado e cheio de dúvidas irrespondíveis a ponto de pensar que tio Baruch de Espinosa escreveu tudo depois de fumar uns béques muito loucos em Amsterdam. Será que naquela época já rolava uma cannabis como auxílio psico-químico para os gênios filosóficos?!?

* A princípio eu queria fazer um trampo sobre o André Comte-Sponville, meu filósofo predileto, queridíssimo do meu coração (mais ainda depois que vi esse Penteado Punk Charmoso que ele tá usando! Mais galã que o George Clooney!). Dele eu já li as Obras Completas, alguns livros várias vezes, e a familiaridade com o pensamento dele é a maior possível... Mas ele é muito desconhecido e pouco respeitado na Academia (acho que ainda vai levar umas décadas para que ele seja reconhecido, mesmo que postumamente, como um dos maiores gênios filosóficos do pós-existencialismo...). Então resolvi escolher como tema de pesquisa algo mais vasto, apesar de relacionado com o sponvillianismo, e que me interessa bastante.

Vocês devem ter notado, se acompanham as publicações do mercado editorial e as sessões de lançamentos das grandes livrarias, que nos últimos anos têm se feito notar uma grande maré montante de obras atéias e anti-religiosas que procuram se contrapôr ao recrudescimento do fanatismo religioso neste começo de século 21. Isso rendeu até matéria na Veja, procês verem a repercussão pop do "fenômeno". O Richard Dawkins, com o seu "Deus: Um Delírio", o Michel Onfray, com seu "Tratado de Ateologia" (best-seller na França) e o próprio Sponville, com "O Espírito do Ateísmo", primeira sistematização do seu pensamento sobre questões religiosas, entre outros autores de menor quilate, indicam a existência desse novo fenômeno intelectual - que eu me propus a estudar.

É o fenômeno dessa Frente Militante Ateísta que se ergue, fazendo um estardalhaço dos diabos, para protestar contra o retorno do dogmatismo religioso, e toda a estupidez que ele traz junto, neste começo de século. Como disse meu orientador numa aula, esses dias: "As trevas retornaram, então se faz necessário que as Luzes voltem a se acender!" Esse "retorno das trevas", digno de um fime de terror (e quer Filme de Terror mais assustador que a Realidade?!?), é simbolizado muito bem pelas dúzias de atentados terroristas e homens-bomba que já mataram milhares em nome de Alá, por exemplo, dos quais o Onze de Setembro é só um entre centenas de outros exemplos. Ou por atos de censura absurdamente anacrônica a obras literárias, como ocorreu com o romance Os Versos Satânicos, ótimo livro do Salman Rushdie, que fez com que os malucos lá no Irã o condenassem à morte e o perseguissem como uma bruxa, como se estivéssemos ainda na Idade Média...

Eu me proponho, pois, a estudar o Ateísmo Contemporâneo, como ele se manifesta em autores como Dawkins, Onfray, Sponville, Conche e Ferry, fazendo um paralelo com outros clássicos do pensamento que argumentaram contra o fanatismo religioso. Também me proponho a fazer paralelos com obras literárias que também tratam dessas questões, como os clássicos do José Saramago ("O Evangelho Segundo Jesus Cristo") e do Nikos Kazantzakis ("A Última Tentação de Cristo"), sem falar no próprio Salman Rushdie.

Uma grande vantagem desse tema de estudo é que eu já li grande parte das obras que é preciso estudar, já estando bem inteirado nas argumentações que se faz para provar a inexistência de Deus e nas provas históricas da Imensa Quantidade de Sangue Derramado em nome do Divino, sendo que não vou precisar ler excessivamente, mas somente sistematizar o conhecimento que está contido nos grandes clássicos da literatura anti-religiosa.

Talvez eu vá colocando aqui os capítulos que forem saindo... A princípio, vou estudar mais à fundo estes 5 livros, todos excelentes e recomendados pra todo mundo:

FREUD - O Futuro de Uma Ilusão
FEUERBACH - A Essência do Cristianimo
RICHARD DAWKINS - Deus: Um Delírio
ANDRÉ COMTE-SPONVILLE - O Espírito do Ateísmo
MARCEL CONCHE - Orientação Filosófica


* Mudei de casa faz uns 20 dias, para a QUINTA república da minha Vida Universitária, somando Bauru e Sampa, e estou naquele período de Adaptação à Nova Goma, que não é lá muito fácil, considerando que você vai parar num lugar onde tem que conviver diariamente com uma dúzia de pessoas que nunca viu na vida. Mas eu curto. Adoro repúblicas e acho que, sem dúvida alguma, família é algo muito super-estimado.

Minha mudança foi motivada por razões complexas que não vou explicar agora. Junto com a Buçalouca Baurulândica, a Cicerolândia foi um dos lugares mais memoráveis onde já morei e eu saio de lá carregando muitas memórias curiosas, bizarras, excêntricas, insanas e psicodélicas. Nunca morei num lugar tão fodido, tão porra-louca, tão trash. Cheguei lá e o lugar parecia a casa do Trainspotting! Aqueles dois sobrados na Engenheiro Bianor, 50 e 54, foram o refúgio de criaturas dos mais diversos naipes - teve maratonista, professor de literatura, nutricionista, artista plástica, doutorando em odontologia, baixista de música clássica, junkie, educador-físico, jornalista de Brasília, peões de obra do metrô, prostituta, multi-instrumentista com cara de Sideshow Bob, bichas-loucas, entre outros, sem falar na salada cultural: só no período que eu fiquei lá, rolaram 2 espanhóis, um alemão, uma francesa, dois peruanos, um cubano, sem falar em cariocas, mineiros, gaúchos, baianos e seres que não devem nem ser terráqueos... Dá pra escrever um livro inteiro sobre essa república, reunindo todos os causos que todo mundo tem pra contar, e que daria um pau em qualquer coisa que o Bukowski já escreveu... Mas isso vai ficar pro futuro.

Eu teria mil coisas pra dizer sobre a Cicerolândia, um monte de história pra contar (que ficariam mais "seguras" se os personagens principais fossem transformados em personagens, pra não ofender ninguém...), mas isso fica pra outra ocasião. Até porque esse é uma espécie de momento triste, de Decadência Total de uma república que um dia já foi muito legal e que acabou, muito recentemente, perdendo todas as pessoas que faziam dela o que era.

Mas é nessas horas que a gente percebe que aquilo que faz o encanto, a magia, a aura de uma república são as pessoas que moram nela e com quem a gente acaba se ligando como que à uma segunda família – e que quando essas pessoas vão embora, se dispersam, tudo o que sobra é um montículo de concreto, tijolos e argamassa tão morto quanto um túmulo. Algo nada parecido com um lar ou um ninho. Como diz o David Byrne:

“glass, concrete and stone
just a house, not a home.”


* Ah, e a BANDA! A gente vai longe. Pode escrever.

Está na gênese algo que no futuro será MITO!

Eu já estive em outras bandas, no passado, mas essa é, de longe, a melhor. Todo mundo na banda é muito gente fina, simpático, bem-humorado, criativo, original e bacana. Tá sendo muito legal. E no passado recente arranjamos uma vocalista de verdade, decentíssima, e parou de ser tudo no esquema "Molecada", como estava antes. A gente tava parecendo uma banda de pirralhos de 15 anos que monta uma banda no colegial pra ficar berrando na garagem loucamente só pra chatear os pais. Agora o lance tá mais crásse. Somos uma banda de punk rock, temos duas membras femininas e estamos todos equipados com lindos moicanos imaginários. Por enquanto somos a Liga das Senhoras Católicas - isso até o processo na Justiça contra nossas pobres pessoas nos obrigar a mudar para um nome menos desdenhoso.

Estamos criando conceitos estéticos revolucionários tais como:

- o POGO MANUAL

- a TÉCNICA DO GUITARRISTA MISTERIOSO

- o APPROACH libidonoso eficaz à PEQUENA ROCKABILLY

- o GERALDISMO.

A banda é o Bernas na outra guitarra (que é piadista eventual do Peladin e Sem Malícia e já foi conhecido como Reginaldo Hendrix quando cuidava das seis cordas do Cuecas Rosas) , o Marco (que é meu sócio no Depredando o Orelhão e que já foi um dos melhores-amigos-do-ovo lá em Bauru) no baixo, a Ana Alice da Credencial Tosca e do Milhouse na batêra e a Paula nos gritos, berros, uivos, gemidos e demais vocalizações. A gente vai fazer história!

Já tive umas bandas do caralho, mas a maioria delas foi imaginária. Por exemplo: sob a alcunha honrosa de Bret Michaels (ver o auto-retrato cibernético e altamemente verossímil de nossos visús à direita!), fui o vocalista, guitarrista, idealizador e comedor geral de groupies à frente do inesquecível duo THE HIENAS, complementado por Aline Guarato no vocal, bateria, maracas, pífaros, chocalhos, meias-luas, xilofone, theremin, assovios, gritos-de-louco-de-hospício, dentre outros instrumentos inventados (naturalmente tudo ao mesmo tempo!) Fomos o maior fenômeno comercial, estético e vanguardista do que a imprensa se acostumou a chamar de PUNK BUBLLEGUM.

Eu era um deus-grego saído direto dum clipe de hard-rock farofa para fazer miséria no topo dos charts. Ela era uma mistura de Rita Lee, Debbie Harry e Courtney Love, doidaça com as substâncias mais diversas. E juntos nós éramos a banda mais fudida da história do rock and roll. O grupo se desfez quando a Polícia descobriu que seus membros estavam envolvidos com uma seita ocultista criminosa, responsável por genocídios e outras atrocidades, chamada Esquadrão de Extermínio de Micareteiros. Suicidaram-se na prisão.

(inda bem que as leis da física não se aplicam ao mundo da imaginação!)

Tive ainda uma banda com o Didiê e a gente ensaiava lá no apê dos meus pais em Santo André, para descabelamento geral de toda a família, que tinha que suportar, por grande parte dos fim-de-semana, aquelas sonzeiras dos Strokes, dos Black Crowes e do Incubus saindo do quarto às torrentes de microfonia. Achamos pelo Orkut mais 3 moleques para complementar o grupo, e chegamos até a fazer alguns ensaios na casa de um deles, uma mansão muito de plêiba nos jardins, onde tinha piscina, campo de futebol, quadra de squash, academia particular e observatório de estrelas com telescópios mais potentes do que os da NASA. Eu achei meio estranho fazer rock and roll com 3 riquinhos mimadinhos filinhos-de-papai - acho que preferia ter banda c'uns pés-rapados ou zé-ninguéns, gênios ainda não descobertos dos subúrbios... - mas até que o som não tava saindo muito mal. Mas aí o Didi, todo chique, foi e se mudou pros Estados Unidos, e a molecada estava em época de estudar pro vestibular, e os pais não aprovavam a "perda de tempo" com essa bobagem que é ter banda, então desfizemos mais esse projeto...

Mas agora vai! É noise na fita.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

:: roadmaps for the soul ::

Mapa
Murilo Mendes

Me colaram no tempo, me puseram
Uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
Limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
A leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
Depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
Me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
Gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
Alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
Nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
Tonto de vidas, de chriros, de movimentos, de pensamentos,
Não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
É por isso que sai às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
Depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
Na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
Presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
O mundo vai mudar a cara,
A morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
Me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
Na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
Vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
O vento que vem da eternidade suspenderá os passos
Dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
Vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar,
Me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
Os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
Aos soldados que perderam a batalha, às mães bem mães,
As fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
Dos amores raros que tive,
Vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
Tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
Estou no ar,
Na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
No meu quarto modesto da praia de Botafogo,
No pensamento dos homens que movem o mundo,
Nem triste, nem alegre, chama com dois olhos andando,
Sempre em transformação.

terça-feira, 8 de abril de 2008

:: seguindo as pegadas de lester ::



Continuo me exercitando como crítico musical lá no Depredando o Orelhão, onde estou postando vários ensaios e resenhas inéditos sobre discos crássicos dos anos 60 - confiram lá! 'Tamos chegando ao Glorioso Pódio da Década e logo eu vou distribuir as polêmicas medalhas de bronze, prata e ouro pros 3 Maiorais. Enquanto o resultado desse Top Ten não sai, confiram por lá os textos sobre o primeirão dos Mutantes, o Astral Weeks do Van Morrison, o Electric Ladyland do Jimi Hendrix, o Songs do Leonard Cohen, o Music From the Big Pink da The Band, entre muitas outras coisas...

Sem música a vida seria um erro! :)

:: "era uma estrutura querida..." ::


“Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convêm ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo Esse?” (14)

* * * *

“Há duas afirmações do amor. Primeiro, quando o apaixonado encontra o outro, há afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, projeção louca de um futuro realizado: sou devorado pelo desejo, a impulsão de ser feliz): digo SIM a tudo (me tornando cego). Segue-se um longo túnel: meu primeiro SIM é roído pelas dúvidas, o VALOR amoroso é a todo instante ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, a ascensão do ressentimento e da oblação.” (18)

* * * * *

"É meu desejo que desejo, e o ser amado nada mais é que seu agente. (...) E se chegar o dia em que eu tiver que decidir renunciar ao outro, o luto violento que toma conta de mim então é o luto do próprio Imaginário (era uma estrutura querida), e choro a perda do amor, não de fulano ou fulana.” (23)

* * * *

“O outro vive em eterno estado de partida, de viagem; ele é, por vocação, migrador; quanto a mim, que amo, sou por vocação inversa sedentário, imóvel, disponível, à espera, fincado no lugar, não resgatado como um embrulho num canto qualquer da estação.” (27)

* * * *

“No encontro, fico maravilhado de ter achado alguém que, por sucessivos e sempre bem-sucedidos toques, sem fraquejar, acaba o quadro da minha fantasia; sou como um jogador cuja sorte se confirma fazendo com que ele pegue na primeira tentativa o pedacinho que vem completar o quebra-cabeça do seu desejo.” (85)

* * * * *

“Se tenho tantas maneiras de chorar, é porque, talvez, quando choro, me dirijo sempre a alguém, e o destinatário das minhas lágrimas não é sempre o mesmo: adapto minhas maneiras de chorar ao tipo de chantagem que pretendo exercer ao meu redor através das lágrimas. Ao chorar, quero impressionar alguém, pressioná-lo ('Veja o que você faz de mim'). Talvez seja – e geralmente é – o outro que se quer obrigar desse modo a assumir abertamente sua comiseração ou sua insensibilidade; mas talvez seja também eu mesmo: me faço chorar para me provar que minha dor não é uma ilusão...” (42)

* * * * *

“Na vida amorosa, a rede dos incidentes é de uma incrível futilidade, e essa futilidade, aliada à maior das seriedades, é até inconveniente. Quando penso seriamente em me suicidar por causa de um telefonema que não acontece, se produz uma obscenidade tão grande como quando, em Sade, o papa sodomiza um peru. Mas a obscenidade sentimental é menos estranha, e é isso que a torna mais abjeta; nada pode suplantar a inconveniência de um sujeito que se desmancha porque seu outro parece distante, 'enquanto há ainda no mundo tantos homens que morrem de fome, e tantos povos que lutam duramente pela sua libertação, etc.”. (159)

* * * * *

“Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, e porque me deixo dominar por uma banalidade. Sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.” (47)

* * * * *

“Não ficarei, talvez, afinal de contas, suspenso nessa pergunta cuja resposta procuro incansavelmente no rosto do outro: o que é que eu valho?”


(ROLAND BARTHES, Fragmentos de Um Discurso Amoroso)

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Na escola da vida, meu coração só repete de ano.

(Atualmente, tô de recuperação.)

:: let 'em in on your secret heart ::


AULA (POÉTICA) DE ANATOMIA CARDÍACA


"conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?"
(ana cristina césar. a teus pés.)


Então sim, os amores galoparam sobre mim, eles e sua legião diabólica de desencantos e dores, e galoparam também sobre o coração, claro, ele que está em toda parte para quem, como eu, tem a Síndrome de Maiakavósvki (é assim nosso delirium tremens: "em mim a anatomia ficou louca!... meu coração não tem domicílio no peito!... em todas as partes palpita!"...). Muito se apagou, muito se quebrou, muito nunca mais vai ser o mesmo (ah, a inocência perdida, que nunca que será reencontrada...), mas algo, teimoso, obstinado, permanece pulsando, forte e sempre. No tórax, uma luz que nunca se apaga, um esplêndido pedaço de carne que não se deixa transformar em pedra, um animal incrível que sempre se regenera...

Então você acaba de adicionar mais um heartbreak à sua coleção? No big deal. A quantidade de fraturas que você teve que suportar ainda é baixa e humilde em comparação com a de muita gente que conheço e que de fato se tacou no bungee jump do amor sem saber se a corda aguentava o peso. A gente nunca sabe se aguenta, mas ainda assim se taca. É a mais sábia das loucuras. Se se espatifar no chão, tenta se levantar, mesmo que seja pra sentar na cadeira de rodas. Se o tombo for leve, a gente sobe de novo, na ignorância de novo, e se taca de novo. E ainda está pra nascer homem que só tenha tido sucessos in the matters of the heart.

O que eu acho é que quem nunca teve o coração quebrado foi por ter sempre protegido o coiso com uma cautela exagerada, resguardando detrás de fortalezas inexpugnáveis esse tão valioso órgão, nem suspeitando que Cautela Demais é um Grande Perigo. Pois há sempre o perigo de acabar por fazê-lo apodrecer detrás das grades por falta de uso. Pois coração também enferruja e, se existe, existe para ser usado até o abuso. Tenhamos dó de quem o põe detrás dum vidro à prova de balas!... ou dentro dum cofre, daqueles de banco de grão-fino em paraíso fiscal, à prova até de canhão e caminhão de demolição!... Quem nunca teve o coração quebrado nunca o usou de verdade - e esse não viveu. Vinícius já dizia. Tenhamos dó, muita dó, dos pobres seres que nunca quebraram o coração!

* * * * *

Criança que sai na rua pra brincar se suja, rasga o joelho, quebra osso, arruma briga, aceita bala de estranhos, não faz lição de casa, adquire maus hábitos, aprende novos palavrões, fica à mercê de trombadinhas e corre risco de vida - coisa i-na-cei-tá-vel!, dizem os pais mais protecionistas, aqueles que querem proteger os filhos até da Vida, esse Bicho Papão, que às vezes até mata. Mas não fazer isso equivaleria a não viver, coisa que acho mais inaceitável ainda. Conselho pedagógico, aos pais que somos todos nós, ao menos de nossos corações (que nunca nos obecedem direito, como todo filho): deixem vossos filhotes saírem para brincar! Eles voltarão pra casa imundos, encardidos, machucados, precisando de band-aid, mertiolate e até quem sabe gesso, mas deixem!

* * * * *

Formidável esse músculo, formidável!

Uma bomba incansável que teima em manter o rio de sangue correndo pelas avenidas das veias, sem fim-de-semana, sem férias, sem descanso. Se ele se decide a tirar um cochilozinho, por mínimo que seja ("só cinco minutinhos!", suplica ele, bocejando!), a gente entraria em pane e ia ser blackout na nossa cidade toda. Se a gente tem a sorte de estar rodeado de médicos, numa mesa de U.T.I., quando ele decide entrar em greve, os salvadores, esbaforidos, vão pular em cima do nosso tórax para redespertá-lo no choque, na marra, o mais rápido possível, como quem dá uns tapas e uns tabefes na cara do motorista de ônibus que ameaçou pegar no sono e despejar todos os passageiros, e ele inclusive, no abismo...

Formidável bomba-relógio, que não há quem consiga desarmar na maior marmelada, como é nos filmes hollywoodianos de bomba... Cada sístole e cada diástole é um tic, é um tac, é um grão de areia que cai do compartimento de cima da ampulheta, é um mililitro a menos de combustível que essa máquina tem para queimar...

Formidável órgão, com uma capacidade quase infinita para a estupidez... E uma miopia sempre imensa, que não há óculos ou lente de contato já inventados que resolva... Condição de cegueta que o faz tropeçar vezes sem conta nas pedras do caminho - e ele se levanta, sempre, depois de cada tombo. Às vezes se engessa, se recolhe, fica de molho. Toma até a resolução de não sair mais pra rua, não ficar exposto ao Sol sem protetor, não sair mais em odisséias em busca do Cálice Dourado. Tem seus desânimos e seus momentos em que se põe a cantar, desiludido: "Hoje tenho apenas uma pedra no meu peito / Exijo respeito, não sou mais um sonhador / Chego a mudar de calçada ao encontrar uma flor / E dou risada do grande amor". E mal ele acaba de cantar esse estribilho tão amargo, em que garante ao mundo que desistiu, e acaba sempre exclamando, como última palavra, "mentira!" E sai de novo, sempre acompanhado de seus olhos míopes e sua infinita capacidade para a imbecilidade, em busca do tal do grande amor que lhe disseram que existia. E que ele, idiota, acreditou.

Formidável órgão que, como uma estrela-do-mar, depois de ter um membro seu decepado, sempre se regenera. E quando se estilhaça, consegue se reconstruir de tal modo que um observador desatento nem nota que ele é um puzzle de cacos. Por mais que envelheça, sempre consegue voltar a ser como novo.

E tudo isso não impede que o coração se quebre sempre como se nunca tivesse se quebrado antes. Sempre dói como se fosse a primeira vez.

Quando ele funciona direito, o impacto da vida é maior: as alegrias mais intensas, as dores mais terríveis, os dilaceramentos mais extremos, as lágrimas e os risos sempre com tendência ao exagero. Mas agradecemos, mesmo que doa, pois nos sentimos viver.

Formidável órgão que continua trabalhando mesmo que não tenha se alimentado em muito tempo - anos até! Inexiste no mundo natural ou sobrenatural algo que sobreviva a tão prolongada subnutrição. Em tempos de fome, ele se alimenta da esperança dos frutos futuros e trabalha no plantio de novos pomares. Como pode tanta paciência e tanta inquietude coexistir na mesma criatura?

* * * * *

(Formidável criança louca e faminta,
cuja brincadeira predileta é a cabra-cega,
que sempre ama alguém que é ótimo no esconde-esconde,
que fica indo e voltando, aos pulos ridículos, na amarelinha,
sem nunca chegar ao Paraíso,
que fica oscilando entre o se erguer e o se deitar
feito um joão-bobo que tomou um soco na cara.
que às vezes fica acuado num canto, preocupadíssimo,
como um rei ameaçado de xeque-mate.
que é chutado pra cima e pra baixo por chuteiras descuidadas
sem nunca balançar as redes, para delírio das massas
[oh girl, stop kicking my heart around!]
que finge querer um tranquilo passeio de pedalinho,
mas se excita até a loucura nos loopings
e mergulhos no abismo d'uma montanha-russa.
que fica tempo demais com os braços estendidos
- em vão - no pega-pega.
que é quem mais se arde com a bolada da queimada.

e que, confessemos sem pudor,
também tem vontade de brincar no trepa-trepa.)

* * * * * *

Formidável músculo estúpido e tão sábio, que vive o tempo inteiro no escuro, no quarto sem janelas do tórax, onde nunca bate Sol... É só a pele, os olhos, os lábios, que se banham na luz; ele não! Escondido detrás de um muro opaco de carne e ossos, trabalha sempre nas trevas. Não é surpresa que enxergue tão mal. Toupeira dos subterrâneos, batendo na cegueira, esse é o coração - que só vêm à tona quando morre, arrancado numa autópsia...

Por causa dessa vida reclusa que leva, escondido no breu, não é bem visto pelas pessoas lá fora. As cicatrizes que têm marcando sua pele são invisíveis; os ganidos que solta, inaudíveis; o ronco de fome, silencioso. Só consegue se fazer ouvir pedindo auxílio ao pulmão que suspira ou grita, aos olhos que brilham ou choram, à boca que pede, suplica ou doa, à mão que o transcreve e o traduz... Mas, deixado só, com suas próprias forças, ele não saberia se dizer. Precisa virar poema, canção, carta de amor, prece, gemido, o que for. Mas nunca sai de verdade da cela apertada do peito. Por isso, talvez, a vida tenha, tantas vezes, esse gosto de solidão.

* * * * *

O coração é sempre o aluno retardado da sala, que sempre reprova nos exames, que está sempre tomando bronca do professor, que dá provas em excesso de mau-comportamento, insubmissão, inquietude, efervescência. É o que é mandado para o gabiente do diretor pra tomar advertência com mais frequência, o que mais fica com nariz-de-burro no canto da sala, aquele que mais serve de alvo para as cantigas sarcásticas que fazem a alegria da molecada:

"não sabe, não sabe,
vai ter que aprender!
orelha-de-burro,
cabeça de e.t.!"

De toda a turma caótica de alunos, é sempre diagnosticado pelos Vigilantes da Normalidade como hiper-ativo, insano e psicopata. Recomendam internação ou medicamentos. Ele não aprende fácil, insiste nos mesmos erros, desliza na matemática mais simples, deixa o raciocínio deslizar para a fantasia, perde o fio da meada caindo em devaneios, se debate contra toda e qualquer camisa-de-força que queiram lhe meter. É um rebelde nato e o pai de todas as rebeliões e de todas as indignações.

Por mais que o corpo que lhe serve de hotel envelheça (e por vezes o gerente se revolta contra esse hóspede arruaceiro e barulhento que mora no quarto esquerdo do andar toráxico e age no seu dormitório como fazem os rock-stars em seus camarins - caótica e destrutivamente!), o coração, no fundo, permanece criança. O mundo o chama para o trabalho, o estudo, a produção, a linha de montagem, o ser-útil, e ele se recusa - só quer saber de brincadeira, de alegria, de amor, da gratuidade do curtir a vida. Por trás de tudo, por mais que se finja forte e maduro, o coração continua sempre com desejos de criança e só aceita engolir a vida se ela for um fruto que vier com gosto de infância.

O coração é essencialmente infantil. Adultecê-lo é matá-lo.