terça-feira, 30 de outubro de 2007

:: novo endereço alternativo ::

http://www.muminha.blogspot.com

dlm.cjb.net continua valendo, mas com aqueles anúncios de merda.

:: bom conselho do meu frère charles! ::


“É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagavai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor...

(charles baudelaire. pequenos poemas em prosa.)

quinta-feira, 25 de outubro de 2007


:: KURT COBAIN E EU ::

Mesmo que eu retire meu Nevermind da plateleira só raramente e consiga passar meses longe do Nirvana (e sem sentir crises de abstinência!), mesmo que a figura de Kurt Cobain acabe, em certos períodos, sendo quase esquecida como um trampo velho em algum porão da minha mente, toda a minha velha cobainmania fatalmente retorna, cedo ou tarde – porque faz anos que eu vivo sob o signo de Kurt Cobain.

Ele sempre esteve lá, nos pôsteres colados à parede do quarto; no Mais Pesado Que O Céu todo grifado, exposto na prateleira de livros; no meio da coleção de DVDs, sob diferentes encarnações: Last Days, Kurt & Courtney, All Apologies; nos power-chords decorados e postos em prática toda vez que a guitarra vinha para o meu colo; nos calafrios na espinha que sinto até hoje ao ouvir "Smells Like Teen Spirit"; em todos os momentos em que eu, querendo gritar de raiva, achava mais fácil pôr In Utero no som e apertar play... Mais do que um cara que fez algumas das músicas mais estupendamente empolgantes que já ouvi, Kurt Cobain é um cara que ajudou a moldar quem eu sou como poucos outros seres humanos. Pois são realmente poucos os artistas da música com quem eu sinto uma conexão tão íntima a ponto de poder dizer que são meus amigos de infância que nunca me conheceram, meus irmãos de espírito que nunca vão saber que eu existo: além do Kurt, boto nessa lista o John Frusciante, o Jeff Tweedy, a Fiona Apple, o Jeff Buckley, e acho que só.

Quando eu tinha 16 anos, eu achava que queria uma vida igualzinha à de Kurt Cobain, sem tirar nem pôr. Era o meu sonho de consumo no supermercado dos destinos. Queria morrer jovem como ele (chegar aos trinta já era ser “traidor do movimento”!), de preferência suicidado, deixando na carta de despedida alguma frase do naipe de “It's better to burn out than to fade away”.
E tinha que ser suicídio chocante e cheio de sangue, para garantir ao mundo que eu não estava me indo embora por acidente ou acaso, mas por pura e simples incapacidade de suportar essa desgraça de vida onde tinham me metido sem que eu tivesse pedido. Um suicídio com o poder de um manifesto.

Mas antes disso queria chegar ao cume empunhando uma guitarra numa banda de punk rock adorada pela juventude, execrada pelos patrulheiros da moral e do bom gosto musical, que passa pelo céu do pop como um cometa e logo mergulha num buraco negro, desaparecendo do firmamento mas deixando nas memórias de quem o viu passar uma marca indelével... Queria uma esposa despirocada e talentosa feito a Courtney Love, companheiros de banda tão cool quanto Dave e Krist, amigos no mundo underground do rock americano tão cults quanto Mark Lanegan, Buzz Osbourne e Mark Arm... Queria viajar o mundo todo em tours regadas a rock and roll estupidamente agressivo e substâncias químicas ultra-nocivas e destrutivas... Queria até uma filhinha como a Frances, que criaria para se tornar a nova Patti Smith ou Debbie Harry.

Quando adolescente, segui o "velho" Kurt como um aluninho dedicado segue seu mestre... Fui ouvir Pixies, Vaselines, Meat Puppets, Leadbelly, Wipers, Scratch Acid, Butthole Surfers, Big Black, Mudhoney e Screaming Trees por causa dele. O que Kurt recomendava era subitamente posto na minha listinha de “must hear” e instantaneamente considerado com muito respeito, mesmo antes da audição. Fui ler Patrick Suskind, William Burroughs, J.G. Ballard e Samuel Beckett só porque fiquei sabendo que esses eram os escritores prediletos do meu ídolo – e quis fazê-los meus prediletos antes mesmo de descobrir se gostava deles de verdade ou não. Não vou dizer que foi o Nirvana quem me abriu as portas do punk rock, pois confesso que fui fã de Green Day um pouco antes (o Dookie é legal sim, pow!), mas que ajudou, ajudou. Meu amor pelo Nirvana veio antes do meu amor pelos Ramones, pelo Clash, pelos Stooges, pelo MC5, pelo Richard Hell... Sem o Nirvana, talvez eu nunca tivesse sentido tanta atração pelo punk rock e ele não teria se tornado meu estilo musical predileto (sim!).

E não vou dizer que comecei a tocar guitarra só por causa do Nirvana, o que seria romancizar demais esse enredo, (na época eu também gostava imensamente de Pearl Jam, Alice in Chains, Soundgarden, Stone Temple Pilots, Days of the New...), mas o Nirvana foi certamente uma das principais bandas que enfiou em mim o desejo de aprender como é que se lidava com aquele tão adorado brinquedinho de seis cordas que tantas pessoas legais seguraram para fazer História. E vocês sabem a dura sina dos adolescentes que se metem a aprender guitarra: tentam tirar músicas de Jimi Hendrix e solos de Jimmy Page e se sentem como um pedacinho de lixo, com vontade de encostar o instrumento e pedir aposentadoria precoce... Que alegria e que sentimento de poder era descobrir que você conseguia tirar “Breed”, “Polly” ou “About a Girl” em cinco minutos, enquanto sentia que precisaria de pelo menos uns 15 anos de estudo para reproduzir “Voodoo Child”! O encanto de "tirar" dúzias de músicas do Nirvana sem muita dificuldade é uma das memórias mais bacanas de toda a minha adolescência.

Desde sempre, a identificação com ele foi muito grande. E eu disse "identificação" depois de pensar muito na palavra mais adequada – que realmente não é “admiração”, “adoração”, “idolatria” ou “fanatismo”. Você não necessariamente admira ou aprova aquele com quem você se identifica: você só tem aquela sensação instantânea de “eu também sou assim...” ou de “ele é parecido comigo...”. Não é que eu ache Kurt Cobain o sujeito mais sensacional do Universo, nem nada parecido com um "gênio" ou um artista pra lá de revolucionário - mas de certo modo é como se os nossos destinos corressem como dois rios paralelos. Certas frases que ele soltava em entrevistas eu ouvia e me dizia: eu podia ter dito igualzinho.

Quando o biógrafo Charles Cross escreveu: "mesmo aqueles que o conheciam melhor sentiam que mal o conheciam...", eu pensei comigo: isso podia ter sido dito igualzinho sobre mim. Quando Kurt dizia que oscilava sempre entre ser um incurável niilista e um carinha sincero e vulnerável, acontecia o mesmo: "isso sou eu!". E também é ele falando exatamente o que rola aqui quando descreve a sensação de estar todo o tempo com saudades de casa, mas de uma casa distante, inencontrável, que parece tão tão longe que nem parece fazer parte desse planeta - tanto que Kurt adorava brincar com a possibilidade de que ele era um alien que caiu na Terra e foi adotado por seus pais, sem jamais parar de desejar um retorno ao seu planeta de origem. Em About a Son ele diz a frase já clássica:
"I feel homesick all the time - and so do all the other aliens."

* * * * *




About a Son é o nome do mais recente documentário sobre Kurt Cobain. Estreiou no Brasil na 31a Mostra de Cinema de São Paulo, numa sessão de Domingo à meia-noite, com a sala absolutamente abarrotada, inclusive com gente esparramada no chão, prova de que (lá vem clichê!) Kurt Cobain não morreu, e seu fantasma continua entre nós, e a fascinação que ele causa ainda não se esvaiu etc. etc. etc.

No filme não rola nada parecido com multidões ensandecidas, manchetes sensacionalistas de jornais, entrevistados esmiuçando a importância histórica do Nirvana ou a personalidade de Cobain - nada: Cobain está praticamente sozinho no filme, falando por cima de várias imagens de Aberdeen, Olympia e Seattle (as cidades que mais marcaram sua vida), do jeito low-key e anti-espetacular que é característico do cara. Após uma filtragem em 25 horas de entrevistas gravadas, até então inéditas, o diretor AJ Shnack chegou a um filme de 1h30 em que Kurt descreve sua própria história de vida, da infância até mais ou menos 1993, sem a intromissão de nenhum depoimento "externo". Kurt Cobain por ele mesmo, de fato.

O título do filme pode parecer uma boba enunciação de uma obviedade (quem não sabe que ele era um filho, ora?! Filhos não somos todos nós?!), mas é um grifo bem dado num detalhe biográfico essencial para quem quer entender a alma atormentada do pequeno Kurt: sim, Kurt Cobain também era um filho, é claro, mas um filho que se sentia neglicenciado, não-cuidado, abandonado... um dos piores tipos de órfão: aquele que possui um pai vivo mas sente-se emocionalmente tão desamparado que é como se o tivesse morto.

Vendo o filme parei para pensar pela 1a vez em certos versos que ele largou por aí, principalmente em "Serve The Servants", a estupenda primeira música do In Utero, quando o Kurt diz: "só quero que você saiba que não te odeio mais". Já pensaram nisso: não é curioso que esse "está perdoado!" tenha sido dito através de uma canção? Kurt e seu pai não se falavam havia anos e anos - se se falassem, Kurt não precisaria ter colocado num disco do Nirvana uma mensagem, ouvida por milhões, que poderia ter dito direto para o pai, num quarto fechado, numa cena que poderia acabar, talvez, num abraço e numa reconciliação. Mas não: ele mandou para o pai um mísero versinho, não exatamente parecido com um "eu te amo" ou um "obrigado por tudo", e ficou por isso mesmo. "Não te odeio mais". Essa foi, talvez, a coisa mais afetuosa que Kurt jamais disse para seu velho. Acho isso de uma tristeza de dar vontade de chorar.

About a Son não tem nada de idealização do "retratado", até porque se parece mais com um auto-retrato do que uma pintura feita por alguém de fora - e Kurt Cobain não se pinta como se fosse a pessoa mais sensacional, incrível e genial desse mundo, muito pelo contrário. Existe até mesmo uma chance grande de que muitos fãs extremistas do cara acabem por perder um pouco desse excesso de idolatria ao ver um filme que o mostra tão humano e tão cheio de defeitos... Um amigo meu, depois de ver o filme, fez esse comentário curioso: "se eu tivesse conhecido ele, talvez nem curtiria o cara...".

Pois é: o ser humano Kurt Cobain era tão fascinante e flamejante quanto o artista e o músico Kurt Cobain? Muitos diriam que não e que ele, na vida privada, em meio às pessoas próximas a ele, não tinha nada de muito admirável ou elogiável. O biógrafo Charles Cross chegou a dar uma alfinetada até cruel no seu biografado em Mais Pesado Que O Céu, dizendo que estar por perto de Kurt Cobain era "entrar num mundo de escapismo saturado de opiatos".

É por isso que eu até entendo quando, por exemplo, um dos entrevistados do doc All Apologies dá a opinião de que Kurt Cobain era um “ser humano desprezível”. Não acho que o seja (o que há de "desprezível" em ser infeliz e excessivamente angustiado? É por acaso uma "calamidade moral" não conseguir ser feliz? E o que era Kurt Cobain além de um menino perdido, confuso e que experimentava a vida como algo extremamente doloroso?), mas compreendo quem ache. Em muitos aspectos o Kurt me parece sim um sujeito antipático, uma pessoa de quem é quase difícil de gostar, um cara que, imagino, tinha o poder de “baixo-astralizar” qualquer ambiente. Imagino Kurt como uma estrela negra irradiando angústia e mau-estar por todos os poros. Imagino que estar por perto daquele homem poderia ser uma experiência intensa, fascinante, perturbadora, constrangedora, comovente, mas dificilmente seria “agradável”, "divertido" ou “encantadora”.

Nas entrevistas que ele dá, ele mantêm quase sempre o mesmo tom de voz monótono e apático, o volume jamais variando, como se ele fosse uma máquina programada para nunca transmitir a mínima emoção. Na expressão facial, a não ser nos momentos em que o rosto se contorce com os berros, a imobilidade constante parece uma máscara em louvor à apatia. Kurt Cobain parecia ter uma incapacidade generalizada e incurável para se entusiasmar com qualquer coisa que fosse – poderíamos estourar champanhes e convocar uma festa se o víssemos empolgado e radiante em relação a qualquer coisa desse mundo. Quando ele berrava, já no comecinho do Nirvana, "i'm a negative creep and I'm stoned!", estava dando uma perfeita descrição auto-derrisória de si mesmo: ele era mesmo um negativista extremo que passou grande parte da vida chapado, como quem diz: "tudo é uma merda e eu quero mais é me afogar na heroína e ver se morro o mais rápido possível...". Nem preciso dizer que esse niilismo levado ao cume não tem nada de cool ou admirável.

Ele tinha, parece, um certo mau-humor crônico que fazia com que quase todos que o conheciam o julgassem sempre emburrado, irado e pronto a saltar com uma faca sobre o primeiro ser humano que mexesse com ele... Ele fala tanto sobre a experiência infernal de passar pelo colegial sempre impregnado pelo sentimento de solidão por sentir que não pertence de verdade a nenhuma turminha, nenhuma panelinha, nenhum clubinho, nenhuma tribo... O desinteresse por tudo, o “tanto faz...”, o “tudo dá na mesma...”, aquela apatia de semi-morto que não tem paciência para o straight world, para a engrenagem de produtividade capitalista, para o "mundo normal" em que nos convidam a entrar e tomar nosso lugar... Não são poucas as vezes em que ele confessa: "estou cansado de ODIAR TODO MUNDO...". As tentativas que eles faz para tratar com sarcasmo seus próprios defeitos nem chegam a melhorar o quadro. Sabe o que eu acho? Kurt Cobain foi o primeiro niilista que foi alçado ao status de maior ícone cultural da juventude mundial. Sinal dos tempos.

E niilista até o fim: porque o suicídio é o coroamento necessário de todo niilismo levado a sério.

O suicídio de Kurt Cobain... sobre isso daria para escrever um livro. Um livro que teria análises psicológicas do falecido, remetendo a traumas de infância, enumerando antecedentes familiares para o comportamento auto-destrutivo tão continuamente demonstrado, diagnosticando nele mil e uma psicopatologias parecidas com a depressão, a esquizofrenia e o transtorno bipolar... Um livro com análises sociológicas, mostrando o quanto a engrenagem cruel da mídia, dos papparazzi e do star system sufoca certos artistas ao ponto do esmagamento - holofotes que assassinam como metralhadoras... Um livro com análises existenciais e filosóficas meditando sobre o fato trágico de que a fama mundial, o reconhecimento artístico e a fortuna material pouco podem fazer por algumas pobres almas, condenadas à perpétua angústia, e que, mesmo que aparentemente tenham tudo o que um ser humano parece precisar para ser feliz, vão e dão um tiro na própria cabeça... Um livro que clarificasse um pouco um dos atos mais fascinantemente incompreensíveis da história do rock. O homem tinha tudo. E não foi o bastante. Preferiu o nada.

O que sempre me deixou absolutamente chocado no suicídio de Kurt Cobain, foi, em primeiro lugar, o fato de ter sido o primeiro caso na história do rock em que uma das maiores estrelas do planeta tirou a própria vida (Ian Curtis ainda era um joão-ninguém no underground de Manchester, muito distante do status cult que adquiriria depois de seu auto-enforcamento na lavanderia; o Elliott Smith não passava de um ícone indie não muito conhecido pelas massas; outros suicidas são raros!). Mas foi também, em segundo lugar, o seguinte: esse suicídio foi anunciado, prometido, ameaçado por anos e anos a fio. Esse caso é uma prova de que é uma imensa bobagem achar que "quem ameaça se matar, nunca se mata", como pensam alguns. Em incontáveis entrevistas o Kurt fez referência explícita, direta e inequívoca a isso – e não estava de brincadeira. Ele era pródigo em frases como “i wanna kill myself half the time” e chegou até mesmo a cogitar a insana idéia de entitular o sucessor de Nevermind como I Hate Myself And I Want To Die – o que equivaleria a berrar para uma audiência de milhões de pessoas uma ameaça de suicídio direta. E não é preciso ser nenhum gênio da psicologia para saber que quase todos os suicidas não querem de fato se matar – o ato é um agoniado pedido por ajuda, por atenção, por consolo... A cry for help.

Acho essa uma das histórias mais tristes que o mundo real já me contou: o menino Kurt Cobain, por anos e anos e anos, ficou choramingando, em privado e em público, berrando suas dores num microfone para milhões ouvirem, confessando seu desconforto e seu mal-estar para que todos soubessem, ameaçando partir desse mundo para que alguém o convencesse de que valia a pena ficar, e ainda assim... Ainda assim ninguém quis, ninguém pôde, ninguém soube como salvá-lo. Com 27 anos de idade ele se vai, cansado de pedir por uma ajuda que não vinha, cansado de viver num mundo de que não gostava, cansado de estar cansado...

Disse ele, recusando a coroa (considerada por ele de espinhos) que a juventude mundial quis botar sobre sua cabeça: "não suporto ser descrito como o porta-voz da minha geração, até porque não tenho nada a expressar senão meu profundo mal-estar...". Por mais que ele não quisesse essa missão, foi isso que ele acabou por se tornar: o porta-voz do desconforto, da angústia, da raiva e do mal-estar de milhões e milhões ao redor do mundo que se filiaram ao culto do Nirvana e fizeram desta uma das maiores bandas da história do rock, aquela que fedia a espírito adolescente e estourava nos amplificadores algum do melhor punk rock já feito no planeta Terra...
E esse fantasma ainda vai nos atormentar por muito, muito tempo...

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

pet sounds... "parting gift"

Nem sei ao certo explicar porquê, mas acho esta pérola uma das músicas mais lindas da Fiona Apple, que continua sendo uma das cantoras que eu mais curto. Acho que não existe nenhum outro artista de quem eu possa dizer: gosto de todas as músicas que ele já lançou. Da Fiona eu digo sem medo: não há nenhuma das 32 músicas oficiais que ela lançou nesses 10 anos de carreira que eu não admire. She's so dear to me!

* * * * *

"...just as sincere as a dog does when it's the food on your lips with witch it's in love..."

* * * *

"the signs said 'stop!', but we went on, whole-hearted! It ended bad, but I love what we started..."

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

:: e olha quem chegou... ::


Começa hoje o já tradicional banquete de iguarias finas para todos os cinéfilos, a 31a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um daqueles eventos que eu aguardo salivando todos os anos... Esse ano tem os novíssimos do David Lynch, Gus Van Sant, Abel Ferrara, David Cronenberg, Hector Babenco, Ang Lee, Quentin Tarantino, Denys Arcand, Sidney Lumet, Hal Hartley, Michael Moore, Tornatore, Patrice Leconte, Milos Forman, Takeshi Kitano.... só pra citar alguns. Tem o filme do Godard sobre os Rolling Stones, tem documentário inédito sobre Kurt Cobain e tem Bob Dylan interpretado por uma dúzia de gente (inclusive minas!) no mesmo filme de ficção. Tem tb retrospectiva de um dos franceses mais cultuados dos últimos anos, Claude Lelouch, que fez uma bastante recomendada adaptação para o século 20 de Os Miseráveis. Tem o primeiro filme em inglês do enfant terrible francês François Ozon, o novo filme o Fatih Akin (diretor do excelente Contra a Parede, um dos meus filmes prediletos) e a mui aguardada adaptação de um dos melhores livros dos últimos anos (Reparação, do Ian MacEwan) nas mãos do diretor do ótimo Orgulho e Preconceito. Tem ainda Sean Penn dirigindo Into The Wild, Eduardo Coutinho novo, Amor Em Tempos De Cólera, Delirious, e mais uma pá de coisas... Meu itinerário para os 1os dias de Mostra vai aí embaixo - os leitores paulistanos desse blog que estão de bobeira ou de bode, colem lá e me trombem, certin'?

sexta
CRIMES DE AUTOR - 20:50 - Arteplex

sábado
ANTES QUE O DIABO SAIBA... - 19:50 - Arteplex
KURT COBAIN - SOBRE UM FILHO - 23:10 - Reserva

domingo
INLAND EMPIRE (de David Lynch) - 12:00 - Cine Bombril
BRANCE DE NEVE, DEPOIS DO CASAMENTO - 15:30 - Cine Bombril
MEU MELHOR AMIGO (Patrice Leconte) - 18:30 - Arteplex 3
ENTREVISTA (Steve Buscemi) - 21:00 - CineSESC

segunda
BOB DYLAN - I'M NOT THERE - 19:00 - Reserva Cultural 1
DO OUTRO LADO - de Fatih Akin - 21:30 - Reserva Cultural Sala 1

terça
JOGO DE CENA (Eduardo Coutinho) - 20:20 - Arteplex 1
VIA LÁCTEA (de Lina Chamie) - 22:00 - Arteplex 1

* * * * *

p.s.: vocês devem ter notado que a maldita CJB.NET está forçando a abertura de uma maldita página cheia de anúncios toda vez que se entra em qualquer endereço que usa esse desgraçado desse serviço de redirecionamento. Tô puto da vida! :P A solução para fugir do maldito AD que é digitar o endereço completo desse blog no Blogger, que é infelizmente enorme , difícil de memorizar e fácil de escrever errado (http://www.dirtylittlemummie.blogspot.com/
) - recomendo que vocês coloquem nos favoritos! Ou então clicar no "SKIP THIS AD" na diagonal superior direita do anúncio. Vou ver se arranjo algum meio para me livrar dessa aporrinhação, mesmo que tenha que mudar o endereço do blog... Sorry!

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

:: my monday at the movies ::



"Sa vie a été si triste qu'elle est
presque trop belle pour être vraie."

("A vida dela foi tão triste que é
quase bela demais para ser verdade.")
SACHA GUITRY, na epígrafe da biografia de Simone Beartaut


Jornalista: você tem medo da morte?
Edith piaf: menos que da solidão.



PIAF - UM HINO AO AMOR
[La Môme / La Vie En Rose, de Olivier Hassan, França, 2007, 140 min., com Marion Cotillard e Gerard Depardieu, visto no Espaço Unibanco/SP, dia 08 do 10]. Fazia tempo que eu não chorava vendo um filme! Já crescia em mim o medo de que a secura pudesse estar dominando o meu coração (ui!) ou de que a minha sensibilidade pudesse ter de algum modo congelado - mas aconteceu, surpreendentemente, com este primoroso filme francês que acaba de sair do forno. Um dos melhores do ano, de longe, e futuro parâmetro pra todas as cine-biografias sobre gênios da música a serem feitos - pois não cai na idealização exagerada do artista retratado, nem numa maçante narrativa linear de fatos de vida sucessivos. Piaf traz originalidade, frescor e poesia selvagem a um tipo de filme que bem merecia essa brisa de ar fresco...

Pois biografias de gênios da música é um gênero muito em voga ultimamente, aliás, que já nos deu retratos cinematográficos de Johnny Cash (Johnny and June, de James Mangold), Beethoven (O Segredo de Beethoven, de Agnieska Holland), Ray Charles (Ray, de Taylor Hackford), Joe Strummer (The Future Is Unwritten, do Julien Temple), Ian Curtis (Touching From a Distance), Kurt Cobain (Last Days, do Gus Van Sant) e, lá nos anos 90, de Charlie Parker (Bird, de Clint Eastwood), Jim Morrison (The Doors, do Oliver Stone) e Mozart (Amadeus, do Milos Forman). Saí do cinema tão extasiado que digo: esse Piaf entre direto no meu pódio de melhores bio-pics sobre personalidades musicais da história -
que filmaço!

E olha que eu nem sou (opa: nem era!) lá muito fã de Edith Piaf e fui ao filme só querendo me nutrir de detalhes biográficos sobre uma das maiores cantoras francesas. Era um filme a ser assistido só pelo bem da minha "cultura geral"! Até tenho um disco dela, a coleta Voice Of The Sparrow, que ouvi bem "por cima" e achei meio esquisitão, excêntrico, quase irritante, adquirido mais pela vontade de estudar francês do que por qualquer outro motivo - e confesso que preferia a Carla Bruni ou a Françoise Hardy nesse quesito.

Eu nunca chegaria ao ponto de dizer que Edith Piaf era dotada de uma voz cheia de "beleza" ou "encanto", nem ferrando. Aquela mulher cantando me dava a impressão de cordas vocais prestes a se rasgarem, de um canto que se erguia não dos pulmões, mas das vísceras retorcidas de uma anãzinha... O som que faria a voz de uma monstrinha, uma bruxinha, uma gnoma... Intenso, insano, exagerado, dramático, mas não exatamente "bonito"! Eu não achava difícil escalar Edith Piaf para um filme de terror em que ela, voando montada numa vassoura em dia de Halloween, saísse cantando aquelas canções sobre o submundo pornô de Paris para assustar as criancinhas... (Aliás: o Jeff Buckley tem uma imitação-sacana genial da Piaf num dos discos ao vivo dele - e o Buckley imitando uma bruxinha é um espetáculo bacana!).

Edith Piaf, a julgar por esse detalhado retrato fragmentário feito pelo excelente filme de Olivier Hassan, teve uma vida desoladora, trágica, "punk" - o que só faz seu triunfo ser mais emocionante. "Sua vida foi tão triste que é quase bela demais para ser verdade...", diz a primeira frase da mais respeitada biografia de Piaf já escrita (cortesia da biblioteca da FFLCH!). Que aquela menininha suja, maltrapilha, abandonada, rejeitada, deformada e duramente espancada pela vida fosse se tornar uma das maiores cantoras da história da França (da França!) era algo de muito improvável. E não é lindo de ver triunfar justamente aqueles que todos consideraram sempre como nada? Não consigo não me comover e me empolgar ao ver contada a história de alguém que sempre foi pisado, cuspido e escarrado, tratado como puro lixo, dando a famosa "volta por cima" e triunfando gloriosamente - provando seu valor para um mundo que sempre lhe disse: "você não vale nada!"

Cacos para um vitral: a mãe era quase mendiga e praticamente a abandonou (só a procurava para pedir esmolas); o pai, mísero contorcionista de circo, sempre com o pé na estrada, não teve tempo para criá-la; a pequena Edith é largada num puteiro aos cuidados de Titine, "mãe adotiva" que se divide entre os cuidados à criança e a meia-dúzia homens diários com quem se deita; na infância, passa alguns meses cega sem saber se jamais recuperará a visão; canta nas ruas suas canções do submundo, toda maltrapilha e mau-vista pelos gendarmes, em busca de alguns míseros trocados; descoberta por um caça-talentos (vivido por Gerard Depardieu), é depois injustamente acusada de cumplicidade em seu assassinato; quebra muitas costelas e ossos num acidente de carro; quando por fim se apaixona e começa, pela primeira vez numa existência tão cinza e tão negra, a ver la vie en rose, sua paixão é por um brutamontes boxeador e inculto, já casado e com duas filhas, e que, como se não bastasse, morre num acidente de avião quando voava para encontrar-se com a carentíssima Edith, que garantia que sem ele não mais viveria; aos 44 anos de idade parece uma anciã recurvada, cansada e prestes a desmaiar nos primeiros passos. Que uma criatura aparentemente tão frágil conseguisse retirar de seus pulmões aqueles inacreditáveis vulcões musicais é um prodígio indizível.

Marion Cottillard, estão dizendo por aí, não interpretou Edith Piaf; ela se tornou Edith Piaf. No cartaz do filme, um crítico de cinema de respeito dá o veredito: "o mais profundo mergulho de uma artista na alma de uma outra artista que já vi numa tela de cinema". Não é exagero. Marion Cottillard mergulhou nessa personagem com uma entrega tamanha que quase se perdeu dentro dela, se confundiu com ela, roubou dela a imagem das multidões. De agora em diante, milhões de pessoas, quando ouvirem o nome Edith Piaf, ao invés de se lembrarem da original, vão ver surgir na consciência as dúzias de caras, atitudes, trejeitos, expressões e falas de Marion Cottilard. Do mesmo jeito que Audrey Tautou será sempre lembrada por Amélie Poulain, Marion Cottillard sempre será lembrada por Edith Piaf. Marion já está sendo cotada para o Oscar de Melhor Atriz por essa impressionante personificação de Edith Piaf, mesmo que todos saibam o quanto é raro alguma atriz que não é de língua inglesa vencer o prêmio - Fernanda Montenegro, que ficou de mãos abanando quando foi indicada por Central do Brasil, que o diga. Não vai faltar quem diga que a Academia adora premiar atrizes lindíssimas - e é o caso de Marion... - que aceitam o martírio de se enfeiarem para encarnar seus personagens (e todos sabem o quanto Piaf tinha reputação de ser horrorosa...).

Que cena acabou me arrancando lágrimas? A última, claro, quando soa a pleno poder "Je Ne regrette Rien". E outra, também, que achei ainda mais impressionante - quando a música se fez silêncio e o cineasta conseguiu comunicar todo o poder daquela artista fazendo que se calasse justamente o seu maior encanto - a voz... Sim, talvez tenha sido o fato de eu estar ali, nas primeiras fileiras do Espaço Unibanco, quase colado à tela, sozinho numa noite de segunda-feira, sem nada que me distraísse daquele desfile de luzes e cores e sons que passava frente aos meus olhos, tomando quase todo o meu campo visual. (Ando preferindo as primeiras fileiras: me ajuda a esquecer que estou num cinema; me ajuda a "cair dentro do filme"). Ou talvez a leve sonolência que eu sentia nesta sessão tardia das dez da noite, eu que tinha acordado cedo, achando que a lentidão da minha mente até ajudava que eu "mergulhasse" dentro do filme. Caí dentro dele de um modo como fazia tempo que não acontecia - caí dentro e me esqueci de mim. Aconteceu justamente quando, ao invés de eu ter meus ouvidos bombardeados pela voz de Edith Piaf, a cantoria tornou-se muda e o retrato foi feito só com imagens - aquelas mãos antes tão tímidas que ganham coragem e alçam vôo, aquele serzinho murcho e temeroso que enfim desabrocha, aquela larva se transformando em borboleta, tudo envolto numa iluminação absurdamente linda... Uma das cenas mais magníficas do cinema em 2007 - coroando um filme bonito pra diabo.

Edith Piaf - Non je ne regrette rien

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux !

Balayées les amours
Et tous leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro

Non ! Rien de rien
Non ! Je ne regrette rien
Ni le bien, qu'on m'a fait
Ni le mal, tout ça m'est bien égal !

terça-feira, 16 de outubro de 2007

ddd: "epopéia da carência"


"Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. (...) Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente.” (...) “Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação da carência – bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.” CLARICE LISPECTOR. A Paixão Segundo G.H.


(DDD. Maio de 2007. UNEDITED.)
Viver é carecer, amigos. Sem vergonha. Não nos choquemos com a intensidade de nosso precisar, com o tamanho do nosso penar, pois é só isso que nos leva a nos ligar. Viver é carecer com a fome, e lançar-se ao seio da mãe, ao assalto à geladeira, ao fruto no pomar, ao restaurante distante, à panela da vó cozinhando no fogão. Viver é carecer com a sede e ir atrás de bebedouro, correr até a garrafa de coca-cola, abrir a boca para o céu para sorver a chuva, molhar as mágoas no boteco. Viver é carecer de sentido e lançar-se a construir igrejas e divindades, utopias de mundos melhores e amores redentores, contos-de-fada onde vencem os bons e perecem os maus. Viver é carecer de calor e ir tiritando se esconder dentro da barraca, debaixo das cobertas, à frente da lareira ou no abraço do amigo – ou de qualquer um capaz de doar calor humano sem cobrar. Viver é carecer de memória e apelar para agendas, post-its, recados escritos na mão; é bater o click da máquina fotográfica para ter pra sempre cada momento, podendo revivê-lo muito depois de passado, e escrever e contar para manter vivo o que já morreu. Viver é carecer com a solidão e correr o mundo em busca de doces companhias, de uma roda onde conversar, de um ombro onde chorar, de um ouvido para quem confessar, de um rosto para contemplar, de um ninho onde repousar. Viver é carecer com a ânsia de expressar e ir correndo buscar refúgio, quando tudo entala na goela, no telefonema pra mãe ou no divã do analista, na conversa em turbilhão com o amigo ou no desabafo lançado ao papel. Viver é carecer de amor e sair por aí, a perambular, à procura da metade que nos vai completar, da pessoa que vai nossos peitos plenificar, da presença que todo penar estancará... Viver é carecer de vida e não querer render-se a ser somente um bicho que come, bebe, defeca, dorme e morre - e loucamente aspirar por uma Vida que seja com V maiúsculo, aventureira e intensa, imprevisível e plena, cheia de loopings e mergulhos no abismo, que dá tantos frios-na-barriga e vertigens quanto um passeio de montanha-russa. Viver é carecer daquilo que nos cure as feridas, dos band-aids que cicatrizem pequenos cortes, das pomadas que sarem grandes pancadas, dos gessos que endireitem ossos quebrados, dos beijos que nos colem os pedaços do coração partido. Viver é carecer daquilo que nos resigne a morrer e se agarrar assim a tantos e tantos sucedâneos da imortalidade, a obra imorredoura, o filho continuador, as gerações vindouras, a espécie sobrevivente, o paraíso no além-túmulo, na cotidiana reza para que continuemos tendo fé e que nada surja que nos desengane.

Não se acanhem de carecer, amigos, nem se orgulhem de poderem se auto-sustentar! Ninguém consegue não precisar. Viver é carecer e nossa vida é o zigue-zague que a carência traça no canvas do mundo, deixando no quadro um retrato das nossas mil faltas e do constante ir adiante da nossa busca. De encontro em desencontro, de rua sem saída em horizonte, através de suas mil formas, nos movemos sempre na direção que nos é indicada pela carência, pelo impulso do desejo, pela alavanca das necessidades. É a carência que traça o nosso destino, que constrói nossos amores, que nos impele a todos comes e bebes, que nos move para todas as lareiras e todos os abraços.

Bem-aventurados os pobres de espírito e de carne, pois deles é o dilacerante reino da vida!

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

:: tem a ver! ::

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar?

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

(joão cabral de melo neto)

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

EXTREMA CAUTION: DDD !

Arranquem os trincos das portas!
Arranquem as próprias portas dos batentes!
WALT WHITMAN


Uma curiosidade sobre a minha ilustre pessoa que só vai fazer com que todo mundo me ache ainda mais esquisito do que já acha:

janeiro: 89 pgs
fevereiro: 59 pgs
março: 39 pgs
abril: 43 pgs
maio: 56 pgs
junho: 56 pgs
julho: 54 pgs
agosto: 67 pgs
setembro: 38 pgs
outubro (até dia 10): 20 pgs

Fonte tamanho 12, espaçamento simples.

total: 522 pgs.

Isso aí é o número de páginas de Word do meu Querido Diário, versão 2007 - e só as coisas digitadas! Rolou cara de pasmo? Ficaram boquiabertos e admirados? Consegui "chocar"? Pelo menos despertar uma pitadinha de curiosidade voyeurística em alguém?

522 páginas - e falo isso mais com espanto do que com orgulho. Falo quase envergonhado. Sem falar que tenho ainda os meus famosos "cadernos de aula", que contêm qualquer coisa menos anotações que tenham a ver com as aulas - inclusive o meu chiquérrimo caderno azul, começado em julho e atualmente na página 47 (tudo rabiscado em salas USPianas! Sou ou não sou o Aluno Ideal?!?), aquele que a Aline tanto queria surrupiar e eu não deixei, nem que a vaca tussisse, e que começa assim, ó: "Parece a mais boba das bobagens e das infantilidades isso, um Querido Diário, coisa dos tempos românticos, efeminada e pouco viril, própria dos mariquinhas! E em papel, em plena Era Digital, quando a caneta periga ficar obsoleta e nenhum autor entrega ao editor um Manuscrito..."

E tem gente me dizendo, olhando para esse blog meio abandonado, que não recebe textos inéditos faz um par de semanas, que eu ando escrevendo pouco! Pura ilusão: ando escrevendo um bocado, muito mais do que seria natural para qualquer ser humano normal (mas graças a deus não tenho a menor ambição de ser normal!), inclusive nos momentos mais indevidos - na facul e no trampo, por exemplo. Minha relação com a escrita chega perto de ser diagnosticável como maníaca - quem sabe até mania patológica, daqueles a ser tratada no manicômio ou no convento. Enquanto alguns correm para o banheiro para cheirar uma carreirinha de cocaína sempre que a coisa aperta, eu corro para o papel para tomar minha dosinha diária da minha drug of choice. Já falei bastante sobre essas coisas todas numa antiga egotrip,
"Confissões de um Viciado em Escrever", e vou tentar não me repetir aqui...

Só andei me perguntando seriamente o seguinte: por que só continuo a publicar no blog só 5% das coisas que escrevo? Por que tenho ainda tanto medo, tanta insegurança, tanta vontade de me resguardar e de revelar somente um fragmento mínimo do que eu sou e faço? Por que é que só abro um buraquinho de fechadura ultra apertado na minha alma e deixo que os voyeurs vejam tão pouco? Por que será que quase 95% de tudo que escrevi em 2007 permanece preso na gaveta, inacessível a qualquer ser humano que não eu? Why
do I keep it like a secret?

Um pouco, é claro, pelo óbvio: um Diário é algo íntimo demais, confessional e constrangedor demais, para ser posto na Internet assim, de forma "bruta". Sem falar que sempre fico me perguntando: será que as pessoas em geral tem algum interesse verdadeiro em saber o que é que eu escrevo sobre a minha própria vidinha? Ou será que só achariam isso um imenso dispêndio inútil da minha energia num lance exibicionista, egocêntrico e "narcisista"? Será que é um vício de caráter muito sério eu ficar tanto tempo debruçado sobre os meus próprios sentimentos, pensamentos, angústias, inquietudes, sonhos, fantasias e o escambau?

Será que o meu olhar deveria estar mais voltado para fora, para a sociedade, o mundo, a galáxia, o infinito, ao invés de se obstinar nessa introversão tão exagerada? Será que não há assuntos mais pertinentes a tratar do que a minha vida, os meus sentimentos, as minhas memórias? Não seria mais útil que eu escrevesse sobre o aquecimento global, os experimentos com eugenia, a guerra civil no Rio de Janeiro, a morte de Deus ou os dilemas da pós-modernidade? Afinal, que importa "eu", esse mísero eu, minúsculo no meio dos outros 6 bilhões de eus que existem, minusculíssimo no meio dos outros trilhões e trilhões que já existiram e já deixaram obras de arte, livros, esculturas, atos, pegadas e marcas?

E mais: as pessoas que fazem parte da minha vida, será que elas gostariam de se ver utilizadas como "personagens" do meu Diário? Achariam bacaninha e legalzinho aparecerem como coadjuvantes da minha jornada, ou sentiriam como se fosse um incômodo eu estar expondo-as assim aos olhos do mundo? E será que gostariam de saber tudo o que eu penso e sinto sobre elas, ou preferem ficar na ignorância, acreditando no que mais convêm, acreditando que são pra mim o que elas gostariam que fossem?

E mais: aquilo que acontece entre 4 paredes, em momentos de intimidade, merece ser posto num palco, debaixo dos holofotes, ou merece ser guardado nas sombras, num santuário escondido de que são dignos todos os segredos? E outra: e se eu me revelar demais e sentir que ninguém se importa? Se fizer um imenso esforço para escancarar os portões da minha alma e depois sentir que o mundo quase todo dá de ombros e diz: "e daí"? Se me abrir demais e não sentir que me chega em retribuição nada parecido com compreensão, identificação e calor humano? Não seria melhor, ao invés de deixar essas confissões escritas num blog na internet, para qualquer um ler, escolher alguma pessoa especial e compartilhar só com ela esses segredos? Acho que tenho suficiente carinho pelos meus segredos para querer guardá-los - e guardar a opção de dá-los de presente para alguém. Mas não pra todo mundo.

Essas dúvidas todas que eu estou esbopçando por aqui só se agravaram mais conforme minha vida foi se tornando mais povoada e menos solitária, e o meu destino foi se cruzando e se enlaçando com outros destinos, até que eu não soubesse mais, ao certo, o que revelar e o que esconder, o que narrar e o que silenciar, mesmo que eu soubesse que sempre pequei mais pelo excesso de silêncio e que sempre seria melhor o desabafo à repressão... Tem horas que eu sinto que quero contar tudo. Absolutamente tudo. Aquela coisa de viver numa casa de vidro, de ser um livro aberto, de deixar que me vejam como se eu fosse transparente... "Why must we always be untrue"?... Queria contar tudo o que aconteceu nesses últimos tempos, tão intensos, tão maravilhosos, tão sofridos, tão cheios de suspense, nessa minha vida sentimental que não me dá sossego e me faz viver em permanente estado de queda em abismo de montanha russa... Queria falar de amor, das minhas felicidades e desgraças de amor, dos meus pequenos sonhos realizados e das grandes fantasias ainda adiadas.... E queria narrar inteirinho um certo Sábado, seus precedentes e consequências, suas minúcias e seus brancos de memória, seus cheiros e gostos - um certo Sábado que chaqualhou a minha vida feito um terremoto - e eu digo "obrigado!", com toda força. Um certo Sábado que só eu e ela sabemos o que foi e porquê foi, que só eu sei o que foi pra mim e só ela sabe o que foi pra ela (ah, solidão...). Queria fazer jorrar pra fora o meu coração que ainda não se disse por inteiro... Mas ainda hesito.

Tudo isso pra dizer que eu meio que me decidi a começar a publicar uma quantidade maior de coisas saídas dos meus "cadernos íntimos" por aqui - UNEDITED AND UNCENSORED! (apesar de eu ter plena noção de que há muita coisa não-editada e não-censurada muito mais interessante do que o meu Diário - como a seção de pornografia das locadoras). É um experimento meu: não sei se vou me sentir desconfortável com isso e abandonar essa idéia, ou se vou gostar desse novo passo à frente que dou para cada vez viver menos brincando de esconde-esconde. Tô inaugurando, pois, uma nova série nesse blog - DDD (Direto do Diário). Sempre que vocês virem essa sigla, bem... run for your lives! :P

Como estamos começando o mês de outubro, achei uma boa dar uma passada de olhos por outubros de anos passados, pra ver como é que eu andava naqueles tempos, e resolvi postar aqui certos trechos escolhidos desses outubros de outrora. Claro que escondi os trechos mais crus, mais feios, mais banais, mais escrotos - e todos aqueles (e são tantos!) que são testemunho de uma psique problemática e excessivamente angustiada. Desses espetáculos sombrios ainda prefiro poupá-los, caros leitores (ó como sou piedoso!)! Algumas coisas desses trechos de diário eu acho realmente ridículas e de uma pieguice que me envergonha (vocês vão ver só quando lerem sobre "a pescadora do lago dos corações", onde o meu "bóia ao léu"!); outras acho pedantes e pretensiosas (todo metidinho à filósofo, né cuzão?), algumas excessivamente pessoais para que vocês possam entender direito o que está rolando; de algumas poucas coisas eu até gosto, mas não direi quais. Estão aí, disponíveis pra quem quiser ver, entregues de bandeija para quem tiver o interesse, que tão poucos nessa vida têm ou tiveram, de me conhecer melhor - inclusive os meus defeitos. Não garanto que vá ser boa coisa, mas... it's worth a try.


* * * * *

DDD (Direto Do Diário)
OUTUBRO DE 2006:

Talvez seja essa a hora, mais do que nunca, para usar esse espaço pra me revelar mais ao mundo. Não era essa a intenção original? Parar de querer elogios e pagação-de-pau – querer somente dizer toda a verdade sobre mim e sobre a minha vida. O blog como um palco de strip-tease. Mas um strip que não é feito pra seduzir, encantar, deixar o público excitado e com tesão; um strip humilde, totalmente anti-kitsch, que é vontade de me mostrar exatamente como eu sou, com todas as forças e fraquezas, virtudes e defeitos; homem, e não anjo ou gênio. A humilde confissão da minha humanidade.

Engraçado que desde o começo do blog era essa a intenção diretriz, o objetivo supremo. Batizei o Dirty Little Mummie, desde o princípio, como um “blog pornográfico”. E, de certo modo, acho que consegui mais ou menos me manter fiel à proposta.

É que os pudores não são assim fáceis de extirpar. Parece que é só muito aos poucos que consigo me livrar da minha vergonha de me despir, só com muito vagar, e sempre através de mudanças gradativas, é que vou conseguindo coragem pra me assumir, pra ser quem sou, sem pedir desculpas e sem abaixar a cabeça. Talvez o blog tenha servido como uma ótima oportunidade pra que eu treinasse a arte da revelação. Aos pouquinhos, sinto, vou chegando cada vez mais próximo da capacidade de fazer uma confissão verdadeira, compartilhar meus segredos mais profundos... já tendo certeza de que guardar segredos e reprimir expressões é muito mais terrível do que simplesmente dizer a verdade.

Creio no sublime alívio e “purificação” interiores gerados por uma torrente de verdade jorrando dos porões e catacumbas da alma... Zweig concordaria comigo. Hoje sei muito bem que não quero mais ser fechado.

Nunca mais comprarei tijolos e argamassa para remendar meu muro e fortificar ainda mais a fortaleza. Hoje só me interesso pelos martelos, pelos tratores de demolição, pelas técnicas de rápido derrubamento de paredes... Mudei de profissão: hoje sou construtor de pontes; meus dias de pedreiro, construtor de paredes, ficaram no passado. Enquanto procuro pela chave-mestra que abriria todos os meus cadeados e portões, vou usando chaves e mais chaves nessa jornada empolgada de abrição. E já sinto o ambiente mais arejado, as janelas escancaradas finalmente deixando entrar Sol e brisa...

Hoje eu sei que as portas da minha alma só se abrem por dentro – e eu não quero nada mais na vida do que conseguir abri-las. Pois não é segurança, conforto e proteção o que ganhamos com nossos muros e proteções: é só solidão.

O amor não bate em portas trancadas.

O amor não bate em portas trancadas!!!!

* * * *

O problema é que não basta estar disponível e aberto, quando ao nosso redor não encontramos nos outros a mesma disponibilidade e abertura. Por vezes você abre os portões, louco de alegria com a esperança de um encontro, só para descobrir, desiludido, que ninguém quis entrar; sai de casa em direção ao ar livre, depois de anos de clausura, finalmente feliz por saber que vai poder brincar lá fora com as outras crianças, somente para descobrir, pasmo e desenganado, que todos estão presos em suas próprias casas trancadas. Uma cidade inteira, com seus bosques e parques, cachoeiras e praias, rios e céus claros, que parece desabitada após uma peste, já que todos estão encerrados em suas celas, com medo da hostilidade e de perigo que vivem da porta pra lá... Que adianta que eu consiga escapar da minha cela de prisão, do meu confinamento em mim mesmo, se vocês não fizerem o mesmo? O encontro só se dá entre dois libertos. E de nada vale que eu tenha conseguido abrir as minhas portas, se lá fora só encontre portas fechadas a mim – e ninguém com quem brincar.

* * * * *

OUTUBRO DE 2005:

Porque antes de mais nada temos que estar seguros, protegidos, precavidos, ainda mais estando o mundo podre como está, lotado de ladrões, assassinos e prejudicadores profissionais... Por isso o cofre, as chaves todas, os cadeados enormes: tudo em nome da minha proteção. Tantos ladrões por aí... Paranóia não é uma doença: é uma tática de sobrevivência.

O cofre é do tamanho de um caminhão de mudança: tinha que caber tudo. Não queria deixar nada de fora. Ele tem diversos departamentos, com portas diferentes, e uma chave para cada uma delas. Onde guardo o chaveiro? Dentro de um outro cofre que fica sempre bem vigiado. E é à prova de balas, inclusive às de bazuca. Onde guardo a chave que abre o cofre das chaves? Essa eu engoli. Atualmente deve se encontrar em algum dos lugares seguintes: meus intestinos; meus pulmões; meu reto; ou, o que me parece a opção mais plausível, entalada no meu coração.

E estou à espera da pessoa que virá me salvar da mania de proteção; que, munida de uma vara de pescar, vá até o lago dos corações, onde o meu bóia ao relento, e capture a chave com a isca do amor. Para abrir o inabrido e fazer com que saia o sempre resguardado.

Onde está você, pescadora do lago do meu coração? Onde está você que conseguirá convencer a chave a fazer a dádiva de si mesma? Onde está você, ladra do Bem, que me roubará aquilo que nem desejo mais guardar?

Começo a ter uma estranha sensação: a de que me tornaria muito mais rico se parasse de proteger, avarento até a doença, todas as minhas riquezas. Pois não se trata de perder: é compartilhar. Deixar ver. Deixar entrar. Acolher. Que é que ganho guardando? Ganho a solidão de barrar a entrada das gentes no meu cofre. Apodreço só lá dentro, detrás dos cadeados, observando a vida lá fora através de um buraco de fechadura... “Ganho a solidão”? Ou seja, perco.

Lembra do porquinho-bomba? Somos todos.

* * * * *

Onde encontrar a força pra viver no silêncio dos porquês?

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OUTUBRO de 2006 -> Eu tinha que contar pra ela. Como ia poder me encarar no espelho, daqui a alguns anos, e não me achar ridículo e covarde por não ter ousado dizer a ela toda a verdade sobre o que eu sinto? Cansei dos amores secretos e platônicos, e da solidão que os acompanha, sempre. Tentei iluminar a vida dela com um pouco desse meu afeto. Ou pelo menos compartilhar aquilo que, de outro modo, ficaria preso dentro de mim, pra sempre. Ela nunca saberia o quanto foi importante para mim, quantos noites perdi acordado pensando nela, quanto pensamento dirigi a ela, essas coisas. Quis que ela soubesse. E tinha ainda uma pequenina esperança de que ela pudesse gostar, se sentir honrada, lisonjeada. Que me amasse só pelo fato de ser por mim amada. Acho que não foi bem isso o que aconteceu.

* * * *

Talvez eu deva mesmo utilizar de violência cruel contra os meus sonhos, todos eles, arrancando-os do meu jardim como se fossem ervas daninhas; esses céus que eu me invento, que meus sonhos fazem desfilar frente aos meus olhos, não serão eles a minha maior desgraça e perdição? Nâo serão essas delícias imaginadas o que torna tão difícil enfrentar a dura jornada dos caminhos reais, sempre tão espinhentos e labirínticos?

Talvez eu só esteja me condenando a continuar me machucando enquanto persisto alimentando meus sonhos de amor... Talvez o certo seria desistir dessa procura sempre infrutífera dessa amada que nunca acho, abandonar essa espera sempre vã por um amor que nunca chega, e reconhecer, enfim desiludido e desenganado até o fim, que nada disso existe ou existirá... Dos pesadelos despertamos felizes pelo retorno ao mundo familiar, consolados por notar, num instante, que tudo não passou de um sonho ruim; e dos gostosos delírios com bens inexistentes sempre teremos que acordar, voltando horrorizados a esse mundo tão familiar e nos dizendo, em meio à melancolia: “foi só um sonho bom, agora estamos de volta ao pesadelo...”

Sim, talvez seja melhor reconhecer que nesse mundo o que domina é a violência e a desunião, o egoísmo e todos os emparadamentos dos eus em si mesmos, a competição e a ambição, a incompreensão e a solidão. Talvez seja melhor eu me persuadir que não vale a pena sonhar que possa existir uma relação humana toda feita de compreensão e ternura, intimidade e amizade, amor e calor... Talvez eu estivesse melhor se me convencesse de que este mundo é o reino da hostilidade e da frieza, e que de nada valem esses sonhos fracos e inúteis de que tudo fosse diferente...

Mas como matar esse sonho em mim? Me digam, por favor, que corro atrás da solução para esse assassinato! Que veneno, que enforcamento, que asfixia, que técnica mortífera me livraria desses meus queridos parasitas? Essa imagem de mulher – doce, meiga, calorosa, que derrama sobre mim o cobertor do amor incondicional e da compreensão absoluta... – como arrancá-la do meu peito? Como é que faço para, nas noites de solidão, não sucumbir à tentação de me consolar com esses fantasmas, essas mulheres de sonho, essas namoradas imaginárias? Como é que paro de ansiar por amparo, por abrigo, por reparo, no braço de uma salvadora? Como faço pra parar de querer isso que tanto quero, mesmo que eu saiba o tamanho do tormento que são esses quereres vãos? Há algum médico, alguma operação, que remova cirurgicamente do fundo de mim todos esses sonhos? Ou é só na morte que vou finalmente cessar de querer tudo isso que nunca posso ter?...


* * * * *

É muito bonito (e muito clichê) dizer que a razão não tem nenhum controle sobre as loucuras do coração, que as paixões brotam à nossa revelia, rebeldes e insanas, incontroláveis e jorrantes, que a cabeça nada pode pra fazer nascer ou para assassinar os amores... mas me pergunto se isso é assim tão verdade. EU não posso tomar a decisão racional de me apaixonar? De certo modo, “escolher” a pessoa a quem vou dirigir minhas flechas cupídicas? Não, não acho que eu esteja completamente à mercê dos sentimentos e suas loucas e oscilantes marés... posso me decidir, por um ato de vontade, a continuar “apaixonado”. Só não sei se isso merece de fato o nome de “paixão”. Talvez as paixões não sejam tão “invluntárias” quanto se diz, como se brotassem por “geração espontânea”, como erupções de desejos profundos, obscuros, inconscientes... Nos apaixonamos pois algo parece nos faltar, sentimos que falta, e imaginamos que a amada pode ser aquela que nos suprirá isso de que tanto necessitamos. Mas quem escolhe carecer? Se pudéssemos, escolheríamos ser plenos! Então essa carência é a força que nos empurra para os loucos sonhos de amor; a alma imagina e antegoza a satisfação de suas necessidades; os mais românticos (os mais ingênuos!) concentram na imagem da amada tudo, o supremo bem, a solução para todos os problemas, o preenchimento para todos os vazios... E mesmo após desilusões e insatisfações, o jogo pode persistir – não exatamente pois a “paixão” continua ardendo a fogo alto, mas por simples teimosia, por obstinação, por persistência. A gente insiste na CRENÇA de que ela, a amada, é a personificação de vários bens; crê ainda que ela nos faria bem, que teria muito a nos dar... Então ESCOLHE perseverar; perseverar na fé, no esforço, na tentativa. Amamos o que a pessoa é ou apenas o que ela pode nos dar? Amamos o sonho de um imenso bem que prometemos a nós mesmos, bem este que está guardado no baú de tesouros daquele coração, e que possivelmente nos será transmitido, fluirá pra nós, no momento da Consumação...? Em mim só reconheço amores egoístas. Não sei o que significa amar em “completo desinteresse”. Só sei amar com a intenção de ser amado de volta; só sei dar querendo algo receber, algo ganhar, mesmo que seja só a consciência limpa, só a glória de fingir ter agido pela mais pura generosidade... Minha carência me entrega ao jogo egoísta das súplicas e dos pedidos, exatamente como um bebê chorando pela mãe, pelo colo, pelo seio... Ainda não conheço o amor que nasce da força e da plenitude, supondo que exista; os meus amores são sempre filhos da fraqueza e da incompletude, da dolorosa necessidade e do suspiro em mim dos vazios, da nostalgia do paraíso e do sonho de um porto seguro...

* * * * *

DEVO TER SONHADO

Sonhei que te contava, entre lágrimas e soluços, toda a história da minha vida, essa história que ouvido algum jamais ouviu, que livro algum, em qualquer biblioteca do mundo, jamais abrigou, essa história que só eu conheço, um baú de tesouros com chave única, que só eu possuo. E você saberia de tudo, e saberia sem a mínima sombra de dúvida que aquela era toda a verdade – pois quem é capaz de mentir enquanto chora?

Sonhei em tentar misturar as águas de quatro cachoeiras numa cachoeira só, que corresse devagar por vales quentes de pele humana em contato. Quis conhecer o sabor das tuas lágrimas: não havia nenhuma outra bebida nesse mundo que eu mais gostaria de experimentar do que essa, esses pedaços de ti, essas gotas que antes fizeram parte de sua alma e que ela, como vulcão em erupção, resolveu ejetar... Que outro jeito eu teria pra te trazer dentro de mim?

Sonhei também com dias de frio cortante e de neblina densa, quando sair de casa parecia a mais péssima das idéias. E a cama, cheia de cobertores, fazia um convite irrecusável para que perdéssemos o dia, inúteis e felizes, inúteis e aquecidos. E foi um sonho puro, sem gente pelada, sem pinto duro, sem penetrações e gemidos: só dois corpos colados, trocando calor e carinho, abraçados um ao outro como um bebê se abraça à sua mãe, e sinceramente mandando o mundo lá fora e tudo dentro dele para o inferno.

Sonhei em estar tão feliz comigo e com tudo que nunca mais teria medo de deixar o meu coração se dizer, por inteiro, por mais piegas que fosse parecer, por mais ridículo que me fossem achar. A mordaça seria rasgada, para sempre, sonhei – e eu poderia ser inteiramente eu mesmo, sem medo algum de por isso ser amado menos.

Sonhei em ser criança de novo, me sentindo do tamanho do universo, antes das aulas de ciências e das primeiras noções de astronomia, no tempo em que não existiam nem cidades nem países, nem continentes nem planetas, nem sistemas solares nem galáxias - naquele tempo em que, mesmo anão, ainda conseguia me sentir um gigante.

(A única razão para que não existam formigas suicidas é que elas não conhecem o tamanho do universo. Será que elas acreditam, a cada vez que vão enterrar um ser amado que morreu pisoteado por um sapato humano, que a vida tem sentido, afinal de contas? Acharão que a bota do homem é como os terremotos e asteróides enviados por Deus? Dirão nos velórios, incapazes de compreenderem as leis que regem os sapatos e os esmagamentos, que o Senhor trabalha por vias misteriosas?)

E depois, enfim, tive que acordar pra perseguir que nada disso foi real. Só agarrei fantasmas. Nada disso foi real? Devo ter sonhado...

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AINDA 2006 (mas um sentimento que durou até 2007...): E o que mais me dói é essa suspeita de que, de uma hora pra outra, ela me vê como nada mais do que um incômodo, uma aporrinhação, um cisco no olho, uma pedra no sapato, algo levemente desagradável, como um vira-latas que nos segue os passos, como um mendigo estendendo o braço na nossa janela do carro, como um pernilongo zunindo ao pé do ouvido na madrugada, e que a única atitude cabível em relação a mim é a de ENXOTAR...

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OUTUBRO de 2005: A verdade dessa árvore na minha frente não é a palavra árvore, a idéia de árvore, a abstração árvore, mas a coisa mesma. A idéia é uma generalização: pego todas as árvores do mundo, que são extremamente diferentes umas das outras, e as reúno numa mesma categoria, não considerando suas diferenças como dignas de crédito. Para saber a verdade sobre a árvore, preciso abandonar a palavra árvore e olhar para a coisa com um olhar totalmente purificado de verbalização. A verdade só pode ser experimentada quando a mente está silenciosa. Uma mente sem palavras é um receptáculo puro o bastante para acolher a verdade do mundo real. Quem se encerra num mundo de palavras se afasta da verdade silenciosa que aguarda tranquilamente lá fora. Se olhamos as coisas através da lente de contato de seus nomes, nos enganamos: olhamos para uma criação nossa, e não para a coisa real.

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OUTUBRO de 2001: É sempre tolice, em momentos repentinos de alegria, achar que enfim agora tudo está resolvido, que o futuro está garantido com esplendores, que agora que achei a chave nunca mais a perderei. Todo contentamento dos mortais é mortal, dizia Montaigne; toda alegria é provisória, assim como toda tristeza, assim como tudo que desce na correnteza sempre corrente do devir. A regra da vida é a inconstância, a oscilação, a mudança; aceitar essa regra talvez seja a única chave para a felicidade. Não mais se entristecer com a tristeza, não mais desejar que a alegria seja eterna, abraçar o mundo inteiro em sua impermanência, suportar que tudo seja como água caindo pelos dedos. Mesmo que caia, a água não pode nos refrescar, nos deleitar? A vida é incêndio, sim, mas que importa restar em cinzas se foi alta e bela a flama? A aceitação do fluir, da inconstância, da morte: eis a sabedoria trágica, talvez a única possível.

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OUTUBRO DE 2005: A infelicidade não é tão escandalosa pois também ela é mortal. Os infelizes não espalham seus lamentos e lágrimas pelo mundo por muito tempo: logo se abre a cova e os engole, inteiros, infelicidade inclusa, silenciando de vez as lamúrias e os reclamos do mal-estar. A morte é um escândalo menor: por vezes chega a ser mesmo um benefício. Graças a deus, toda infelicidade dos mortais é mortal.

“A melhor coisa sobre esse lugar é que você sabe que está indo embora um dia”? Não, creio que há coisas melhores na vida do que saber-se mortal, o que raramente é algo de prazeiroso. Mas é ao menos um consolo saber que há uma porta de saída, que não se está condenado à terrível pena de viver eternamente, que não estamos presos à vida por algemas inquebráveis, que qualquer tormento não possui a menor chance de durar pra sempre... Algo está doendo? Não se preocupe: você vai acabar morrendo, e a dor vai acabar desaparecendo. Veja só: a vida não é assim tão terrível... pois acaba! O que é certamente uma vantagem!

A morte não é nada de mal: só um “suave desaparecimento”, como diz a Etty. Todo sofrimento existe somente pois estamos vivos. Quem não quis conquistar um estado de completa imunidade à dor? Tornar-se absolutamente impermeável a ela? Pois bem: a morte é esse presente dos céus que nos fará, de uma vez por todas, aterrisar em território inacessível à dor.

Sim, estaremos também inacessíveis ao prazer. Mas... quer saber? Nem vamos sentir falta. Os mortos não têm saudade. Nenhuma nostalgia pelos prazeres passados incomoda a paz de seu sono angelical...

O nada não é nada de mal. Todo mal é consequência do ser. Se eu nada fosse, o que poderia me atingir? Tente apunhalar o coração do nada com um punhal: é inútil. O nada não tem coração.

* * * * * *

“Nobody sees when you are lying in your bed
And I wanna crawl in with you, but I cry instead
I want your warm, but it will only me colder
When it's over - So I can’t tonight, baby…”

FIONA APPLE. Love Ridden.

À meia-luz, protegido detrás de uma porta trancada, exilado do mundo: só assim é que você enfim se dá permissão para sofrer. O mundo sempre te vê de olhos secos, cabeça erguida, porte seguro, expressão inexpressiva. O número de tuas lágrimas públicas é tão pequeno que te acreditam homem feliz, tanto quanto são os homens normais, todos nós. É que ninguém pode te ver deitado na cama do seu exílio, entregando ao travesseiro as lamúrias líquidas, contando para o teto a história de teus fracassos, pedindo ajuda para as paredes... Ah, homem das lágrimas secretas, quem te convenceu de que ser triste é um crime? E, se não é, por que você só o comete escondido?

À meia-luz, você se sente imerso na mais completa escuridão. Mesmo que fosse meio-dia de um verão escaldante, hoje nenhum dos raios de Sol iria conseguir penetrar pela tua carapaça. Condenado está à escuridão desse dia, não importando o quanto de luz derrubem sobre ti. E então você se encolhe na solidão para poder chorar por ser tão só. Ah, homem sempre acompanhado pela solidão, quem te ensinou que um quarto trancado à chave e vedado à luz é o antídoto contra a desertidão? Homem das lágrimas secretas, como esperas que alguém as venha enxugar se ninguém as pode ver?

* * * * * *

OUTUBRO DE 2001: "ainda não comecei a viver: estou só lendo o manual..."

"...tudo o que nos resta é o amor daqueles que nos viram passar: sem isso a vida não tem sentido."

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(e isso foi bem pouco!)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

kind of blue


NAVEGAR

Fácil era para os navegantes
que se lançavam aos mares
nunca d'antes navegados.

Vestiam suas utopias
de naus e mastros
aguardando os abraços da terra
que por eles aguardava.

Eu, que lanço meus sonhos
no mar destes olhos,
no abismo deste sorriso,
sou engolido pelo nada.

Meus beijos náufragos,
que tentam em vão romper
as ondas e os sargaços
se afogam na ausência
dos teus braços.

o nada
o nada
o nada

além do mundo
além do mar

o amor que de mim partiu
não encontra onde aportar.

(mauro iasi)