quarta-feira, 10 de outubro de 2007

EXTREMA CAUTION: DDD !

Arranquem os trincos das portas!
Arranquem as próprias portas dos batentes!
WALT WHITMAN


Uma curiosidade sobre a minha ilustre pessoa que só vai fazer com que todo mundo me ache ainda mais esquisito do que já acha:

janeiro: 89 pgs
fevereiro: 59 pgs
março: 39 pgs
abril: 43 pgs
maio: 56 pgs
junho: 56 pgs
julho: 54 pgs
agosto: 67 pgs
setembro: 38 pgs
outubro (até dia 10): 20 pgs

Fonte tamanho 12, espaçamento simples.

total: 522 pgs.

Isso aí é o número de páginas de Word do meu Querido Diário, versão 2007 - e só as coisas digitadas! Rolou cara de pasmo? Ficaram boquiabertos e admirados? Consegui "chocar"? Pelo menos despertar uma pitadinha de curiosidade voyeurística em alguém?

522 páginas - e falo isso mais com espanto do que com orgulho. Falo quase envergonhado. Sem falar que tenho ainda os meus famosos "cadernos de aula", que contêm qualquer coisa menos anotações que tenham a ver com as aulas - inclusive o meu chiquérrimo caderno azul, começado em julho e atualmente na página 47 (tudo rabiscado em salas USPianas! Sou ou não sou o Aluno Ideal?!?), aquele que a Aline tanto queria surrupiar e eu não deixei, nem que a vaca tussisse, e que começa assim, ó: "Parece a mais boba das bobagens e das infantilidades isso, um Querido Diário, coisa dos tempos românticos, efeminada e pouco viril, própria dos mariquinhas! E em papel, em plena Era Digital, quando a caneta periga ficar obsoleta e nenhum autor entrega ao editor um Manuscrito..."

E tem gente me dizendo, olhando para esse blog meio abandonado, que não recebe textos inéditos faz um par de semanas, que eu ando escrevendo pouco! Pura ilusão: ando escrevendo um bocado, muito mais do que seria natural para qualquer ser humano normal (mas graças a deus não tenho a menor ambição de ser normal!), inclusive nos momentos mais indevidos - na facul e no trampo, por exemplo. Minha relação com a escrita chega perto de ser diagnosticável como maníaca - quem sabe até mania patológica, daqueles a ser tratada no manicômio ou no convento. Enquanto alguns correm para o banheiro para cheirar uma carreirinha de cocaína sempre que a coisa aperta, eu corro para o papel para tomar minha dosinha diária da minha drug of choice. Já falei bastante sobre essas coisas todas numa antiga egotrip,
"Confissões de um Viciado em Escrever", e vou tentar não me repetir aqui...

Só andei me perguntando seriamente o seguinte: por que só continuo a publicar no blog só 5% das coisas que escrevo? Por que tenho ainda tanto medo, tanta insegurança, tanta vontade de me resguardar e de revelar somente um fragmento mínimo do que eu sou e faço? Por que é que só abro um buraquinho de fechadura ultra apertado na minha alma e deixo que os voyeurs vejam tão pouco? Por que será que quase 95% de tudo que escrevi em 2007 permanece preso na gaveta, inacessível a qualquer ser humano que não eu? Why
do I keep it like a secret?

Um pouco, é claro, pelo óbvio: um Diário é algo íntimo demais, confessional e constrangedor demais, para ser posto na Internet assim, de forma "bruta". Sem falar que sempre fico me perguntando: será que as pessoas em geral tem algum interesse verdadeiro em saber o que é que eu escrevo sobre a minha própria vidinha? Ou será que só achariam isso um imenso dispêndio inútil da minha energia num lance exibicionista, egocêntrico e "narcisista"? Será que é um vício de caráter muito sério eu ficar tanto tempo debruçado sobre os meus próprios sentimentos, pensamentos, angústias, inquietudes, sonhos, fantasias e o escambau?

Será que o meu olhar deveria estar mais voltado para fora, para a sociedade, o mundo, a galáxia, o infinito, ao invés de se obstinar nessa introversão tão exagerada? Será que não há assuntos mais pertinentes a tratar do que a minha vida, os meus sentimentos, as minhas memórias? Não seria mais útil que eu escrevesse sobre o aquecimento global, os experimentos com eugenia, a guerra civil no Rio de Janeiro, a morte de Deus ou os dilemas da pós-modernidade? Afinal, que importa "eu", esse mísero eu, minúsculo no meio dos outros 6 bilhões de eus que existem, minusculíssimo no meio dos outros trilhões e trilhões que já existiram e já deixaram obras de arte, livros, esculturas, atos, pegadas e marcas?

E mais: as pessoas que fazem parte da minha vida, será que elas gostariam de se ver utilizadas como "personagens" do meu Diário? Achariam bacaninha e legalzinho aparecerem como coadjuvantes da minha jornada, ou sentiriam como se fosse um incômodo eu estar expondo-as assim aos olhos do mundo? E será que gostariam de saber tudo o que eu penso e sinto sobre elas, ou preferem ficar na ignorância, acreditando no que mais convêm, acreditando que são pra mim o que elas gostariam que fossem?

E mais: aquilo que acontece entre 4 paredes, em momentos de intimidade, merece ser posto num palco, debaixo dos holofotes, ou merece ser guardado nas sombras, num santuário escondido de que são dignos todos os segredos? E outra: e se eu me revelar demais e sentir que ninguém se importa? Se fizer um imenso esforço para escancarar os portões da minha alma e depois sentir que o mundo quase todo dá de ombros e diz: "e daí"? Se me abrir demais e não sentir que me chega em retribuição nada parecido com compreensão, identificação e calor humano? Não seria melhor, ao invés de deixar essas confissões escritas num blog na internet, para qualquer um ler, escolher alguma pessoa especial e compartilhar só com ela esses segredos? Acho que tenho suficiente carinho pelos meus segredos para querer guardá-los - e guardar a opção de dá-los de presente para alguém. Mas não pra todo mundo.

Essas dúvidas todas que eu estou esbopçando por aqui só se agravaram mais conforme minha vida foi se tornando mais povoada e menos solitária, e o meu destino foi se cruzando e se enlaçando com outros destinos, até que eu não soubesse mais, ao certo, o que revelar e o que esconder, o que narrar e o que silenciar, mesmo que eu soubesse que sempre pequei mais pelo excesso de silêncio e que sempre seria melhor o desabafo à repressão... Tem horas que eu sinto que quero contar tudo. Absolutamente tudo. Aquela coisa de viver numa casa de vidro, de ser um livro aberto, de deixar que me vejam como se eu fosse transparente... "Why must we always be untrue"?... Queria contar tudo o que aconteceu nesses últimos tempos, tão intensos, tão maravilhosos, tão sofridos, tão cheios de suspense, nessa minha vida sentimental que não me dá sossego e me faz viver em permanente estado de queda em abismo de montanha russa... Queria falar de amor, das minhas felicidades e desgraças de amor, dos meus pequenos sonhos realizados e das grandes fantasias ainda adiadas.... E queria narrar inteirinho um certo Sábado, seus precedentes e consequências, suas minúcias e seus brancos de memória, seus cheiros e gostos - um certo Sábado que chaqualhou a minha vida feito um terremoto - e eu digo "obrigado!", com toda força. Um certo Sábado que só eu e ela sabemos o que foi e porquê foi, que só eu sei o que foi pra mim e só ela sabe o que foi pra ela (ah, solidão...). Queria fazer jorrar pra fora o meu coração que ainda não se disse por inteiro... Mas ainda hesito.

Tudo isso pra dizer que eu meio que me decidi a começar a publicar uma quantidade maior de coisas saídas dos meus "cadernos íntimos" por aqui - UNEDITED AND UNCENSORED! (apesar de eu ter plena noção de que há muita coisa não-editada e não-censurada muito mais interessante do que o meu Diário - como a seção de pornografia das locadoras). É um experimento meu: não sei se vou me sentir desconfortável com isso e abandonar essa idéia, ou se vou gostar desse novo passo à frente que dou para cada vez viver menos brincando de esconde-esconde. Tô inaugurando, pois, uma nova série nesse blog - DDD (Direto do Diário). Sempre que vocês virem essa sigla, bem... run for your lives! :P

Como estamos começando o mês de outubro, achei uma boa dar uma passada de olhos por outubros de anos passados, pra ver como é que eu andava naqueles tempos, e resolvi postar aqui certos trechos escolhidos desses outubros de outrora. Claro que escondi os trechos mais crus, mais feios, mais banais, mais escrotos - e todos aqueles (e são tantos!) que são testemunho de uma psique problemática e excessivamente angustiada. Desses espetáculos sombrios ainda prefiro poupá-los, caros leitores (ó como sou piedoso!)! Algumas coisas desses trechos de diário eu acho realmente ridículas e de uma pieguice que me envergonha (vocês vão ver só quando lerem sobre "a pescadora do lago dos corações", onde o meu "bóia ao léu"!); outras acho pedantes e pretensiosas (todo metidinho à filósofo, né cuzão?), algumas excessivamente pessoais para que vocês possam entender direito o que está rolando; de algumas poucas coisas eu até gosto, mas não direi quais. Estão aí, disponíveis pra quem quiser ver, entregues de bandeija para quem tiver o interesse, que tão poucos nessa vida têm ou tiveram, de me conhecer melhor - inclusive os meus defeitos. Não garanto que vá ser boa coisa, mas... it's worth a try.


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DDD (Direto Do Diário)
OUTUBRO DE 2006:

Talvez seja essa a hora, mais do que nunca, para usar esse espaço pra me revelar mais ao mundo. Não era essa a intenção original? Parar de querer elogios e pagação-de-pau – querer somente dizer toda a verdade sobre mim e sobre a minha vida. O blog como um palco de strip-tease. Mas um strip que não é feito pra seduzir, encantar, deixar o público excitado e com tesão; um strip humilde, totalmente anti-kitsch, que é vontade de me mostrar exatamente como eu sou, com todas as forças e fraquezas, virtudes e defeitos; homem, e não anjo ou gênio. A humilde confissão da minha humanidade.

Engraçado que desde o começo do blog era essa a intenção diretriz, o objetivo supremo. Batizei o Dirty Little Mummie, desde o princípio, como um “blog pornográfico”. E, de certo modo, acho que consegui mais ou menos me manter fiel à proposta.

É que os pudores não são assim fáceis de extirpar. Parece que é só muito aos poucos que consigo me livrar da minha vergonha de me despir, só com muito vagar, e sempre através de mudanças gradativas, é que vou conseguindo coragem pra me assumir, pra ser quem sou, sem pedir desculpas e sem abaixar a cabeça. Talvez o blog tenha servido como uma ótima oportunidade pra que eu treinasse a arte da revelação. Aos pouquinhos, sinto, vou chegando cada vez mais próximo da capacidade de fazer uma confissão verdadeira, compartilhar meus segredos mais profundos... já tendo certeza de que guardar segredos e reprimir expressões é muito mais terrível do que simplesmente dizer a verdade.

Creio no sublime alívio e “purificação” interiores gerados por uma torrente de verdade jorrando dos porões e catacumbas da alma... Zweig concordaria comigo. Hoje sei muito bem que não quero mais ser fechado.

Nunca mais comprarei tijolos e argamassa para remendar meu muro e fortificar ainda mais a fortaleza. Hoje só me interesso pelos martelos, pelos tratores de demolição, pelas técnicas de rápido derrubamento de paredes... Mudei de profissão: hoje sou construtor de pontes; meus dias de pedreiro, construtor de paredes, ficaram no passado. Enquanto procuro pela chave-mestra que abriria todos os meus cadeados e portões, vou usando chaves e mais chaves nessa jornada empolgada de abrição. E já sinto o ambiente mais arejado, as janelas escancaradas finalmente deixando entrar Sol e brisa...

Hoje eu sei que as portas da minha alma só se abrem por dentro – e eu não quero nada mais na vida do que conseguir abri-las. Pois não é segurança, conforto e proteção o que ganhamos com nossos muros e proteções: é só solidão.

O amor não bate em portas trancadas.

O amor não bate em portas trancadas!!!!

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O problema é que não basta estar disponível e aberto, quando ao nosso redor não encontramos nos outros a mesma disponibilidade e abertura. Por vezes você abre os portões, louco de alegria com a esperança de um encontro, só para descobrir, desiludido, que ninguém quis entrar; sai de casa em direção ao ar livre, depois de anos de clausura, finalmente feliz por saber que vai poder brincar lá fora com as outras crianças, somente para descobrir, pasmo e desenganado, que todos estão presos em suas próprias casas trancadas. Uma cidade inteira, com seus bosques e parques, cachoeiras e praias, rios e céus claros, que parece desabitada após uma peste, já que todos estão encerrados em suas celas, com medo da hostilidade e de perigo que vivem da porta pra lá... Que adianta que eu consiga escapar da minha cela de prisão, do meu confinamento em mim mesmo, se vocês não fizerem o mesmo? O encontro só se dá entre dois libertos. E de nada vale que eu tenha conseguido abrir as minhas portas, se lá fora só encontre portas fechadas a mim – e ninguém com quem brincar.

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OUTUBRO DE 2005:

Porque antes de mais nada temos que estar seguros, protegidos, precavidos, ainda mais estando o mundo podre como está, lotado de ladrões, assassinos e prejudicadores profissionais... Por isso o cofre, as chaves todas, os cadeados enormes: tudo em nome da minha proteção. Tantos ladrões por aí... Paranóia não é uma doença: é uma tática de sobrevivência.

O cofre é do tamanho de um caminhão de mudança: tinha que caber tudo. Não queria deixar nada de fora. Ele tem diversos departamentos, com portas diferentes, e uma chave para cada uma delas. Onde guardo o chaveiro? Dentro de um outro cofre que fica sempre bem vigiado. E é à prova de balas, inclusive às de bazuca. Onde guardo a chave que abre o cofre das chaves? Essa eu engoli. Atualmente deve se encontrar em algum dos lugares seguintes: meus intestinos; meus pulmões; meu reto; ou, o que me parece a opção mais plausível, entalada no meu coração.

E estou à espera da pessoa que virá me salvar da mania de proteção; que, munida de uma vara de pescar, vá até o lago dos corações, onde o meu bóia ao relento, e capture a chave com a isca do amor. Para abrir o inabrido e fazer com que saia o sempre resguardado.

Onde está você, pescadora do lago do meu coração? Onde está você que conseguirá convencer a chave a fazer a dádiva de si mesma? Onde está você, ladra do Bem, que me roubará aquilo que nem desejo mais guardar?

Começo a ter uma estranha sensação: a de que me tornaria muito mais rico se parasse de proteger, avarento até a doença, todas as minhas riquezas. Pois não se trata de perder: é compartilhar. Deixar ver. Deixar entrar. Acolher. Que é que ganho guardando? Ganho a solidão de barrar a entrada das gentes no meu cofre. Apodreço só lá dentro, detrás dos cadeados, observando a vida lá fora através de um buraco de fechadura... “Ganho a solidão”? Ou seja, perco.

Lembra do porquinho-bomba? Somos todos.

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Onde encontrar a força pra viver no silêncio dos porquês?

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OUTUBRO de 2006 -> Eu tinha que contar pra ela. Como ia poder me encarar no espelho, daqui a alguns anos, e não me achar ridículo e covarde por não ter ousado dizer a ela toda a verdade sobre o que eu sinto? Cansei dos amores secretos e platônicos, e da solidão que os acompanha, sempre. Tentei iluminar a vida dela com um pouco desse meu afeto. Ou pelo menos compartilhar aquilo que, de outro modo, ficaria preso dentro de mim, pra sempre. Ela nunca saberia o quanto foi importante para mim, quantos noites perdi acordado pensando nela, quanto pensamento dirigi a ela, essas coisas. Quis que ela soubesse. E tinha ainda uma pequenina esperança de que ela pudesse gostar, se sentir honrada, lisonjeada. Que me amasse só pelo fato de ser por mim amada. Acho que não foi bem isso o que aconteceu.

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Talvez eu deva mesmo utilizar de violência cruel contra os meus sonhos, todos eles, arrancando-os do meu jardim como se fossem ervas daninhas; esses céus que eu me invento, que meus sonhos fazem desfilar frente aos meus olhos, não serão eles a minha maior desgraça e perdição? Nâo serão essas delícias imaginadas o que torna tão difícil enfrentar a dura jornada dos caminhos reais, sempre tão espinhentos e labirínticos?

Talvez eu só esteja me condenando a continuar me machucando enquanto persisto alimentando meus sonhos de amor... Talvez o certo seria desistir dessa procura sempre infrutífera dessa amada que nunca acho, abandonar essa espera sempre vã por um amor que nunca chega, e reconhecer, enfim desiludido e desenganado até o fim, que nada disso existe ou existirá... Dos pesadelos despertamos felizes pelo retorno ao mundo familiar, consolados por notar, num instante, que tudo não passou de um sonho ruim; e dos gostosos delírios com bens inexistentes sempre teremos que acordar, voltando horrorizados a esse mundo tão familiar e nos dizendo, em meio à melancolia: “foi só um sonho bom, agora estamos de volta ao pesadelo...”

Sim, talvez seja melhor reconhecer que nesse mundo o que domina é a violência e a desunião, o egoísmo e todos os emparadamentos dos eus em si mesmos, a competição e a ambição, a incompreensão e a solidão. Talvez seja melhor eu me persuadir que não vale a pena sonhar que possa existir uma relação humana toda feita de compreensão e ternura, intimidade e amizade, amor e calor... Talvez eu estivesse melhor se me convencesse de que este mundo é o reino da hostilidade e da frieza, e que de nada valem esses sonhos fracos e inúteis de que tudo fosse diferente...

Mas como matar esse sonho em mim? Me digam, por favor, que corro atrás da solução para esse assassinato! Que veneno, que enforcamento, que asfixia, que técnica mortífera me livraria desses meus queridos parasitas? Essa imagem de mulher – doce, meiga, calorosa, que derrama sobre mim o cobertor do amor incondicional e da compreensão absoluta... – como arrancá-la do meu peito? Como é que faço para, nas noites de solidão, não sucumbir à tentação de me consolar com esses fantasmas, essas mulheres de sonho, essas namoradas imaginárias? Como é que paro de ansiar por amparo, por abrigo, por reparo, no braço de uma salvadora? Como faço pra parar de querer isso que tanto quero, mesmo que eu saiba o tamanho do tormento que são esses quereres vãos? Há algum médico, alguma operação, que remova cirurgicamente do fundo de mim todos esses sonhos? Ou é só na morte que vou finalmente cessar de querer tudo isso que nunca posso ter?...


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É muito bonito (e muito clichê) dizer que a razão não tem nenhum controle sobre as loucuras do coração, que as paixões brotam à nossa revelia, rebeldes e insanas, incontroláveis e jorrantes, que a cabeça nada pode pra fazer nascer ou para assassinar os amores... mas me pergunto se isso é assim tão verdade. EU não posso tomar a decisão racional de me apaixonar? De certo modo, “escolher” a pessoa a quem vou dirigir minhas flechas cupídicas? Não, não acho que eu esteja completamente à mercê dos sentimentos e suas loucas e oscilantes marés... posso me decidir, por um ato de vontade, a continuar “apaixonado”. Só não sei se isso merece de fato o nome de “paixão”. Talvez as paixões não sejam tão “invluntárias” quanto se diz, como se brotassem por “geração espontânea”, como erupções de desejos profundos, obscuros, inconscientes... Nos apaixonamos pois algo parece nos faltar, sentimos que falta, e imaginamos que a amada pode ser aquela que nos suprirá isso de que tanto necessitamos. Mas quem escolhe carecer? Se pudéssemos, escolheríamos ser plenos! Então essa carência é a força que nos empurra para os loucos sonhos de amor; a alma imagina e antegoza a satisfação de suas necessidades; os mais românticos (os mais ingênuos!) concentram na imagem da amada tudo, o supremo bem, a solução para todos os problemas, o preenchimento para todos os vazios... E mesmo após desilusões e insatisfações, o jogo pode persistir – não exatamente pois a “paixão” continua ardendo a fogo alto, mas por simples teimosia, por obstinação, por persistência. A gente insiste na CRENÇA de que ela, a amada, é a personificação de vários bens; crê ainda que ela nos faria bem, que teria muito a nos dar... Então ESCOLHE perseverar; perseverar na fé, no esforço, na tentativa. Amamos o que a pessoa é ou apenas o que ela pode nos dar? Amamos o sonho de um imenso bem que prometemos a nós mesmos, bem este que está guardado no baú de tesouros daquele coração, e que possivelmente nos será transmitido, fluirá pra nós, no momento da Consumação...? Em mim só reconheço amores egoístas. Não sei o que significa amar em “completo desinteresse”. Só sei amar com a intenção de ser amado de volta; só sei dar querendo algo receber, algo ganhar, mesmo que seja só a consciência limpa, só a glória de fingir ter agido pela mais pura generosidade... Minha carência me entrega ao jogo egoísta das súplicas e dos pedidos, exatamente como um bebê chorando pela mãe, pelo colo, pelo seio... Ainda não conheço o amor que nasce da força e da plenitude, supondo que exista; os meus amores são sempre filhos da fraqueza e da incompletude, da dolorosa necessidade e do suspiro em mim dos vazios, da nostalgia do paraíso e do sonho de um porto seguro...

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DEVO TER SONHADO

Sonhei que te contava, entre lágrimas e soluços, toda a história da minha vida, essa história que ouvido algum jamais ouviu, que livro algum, em qualquer biblioteca do mundo, jamais abrigou, essa história que só eu conheço, um baú de tesouros com chave única, que só eu possuo. E você saberia de tudo, e saberia sem a mínima sombra de dúvida que aquela era toda a verdade – pois quem é capaz de mentir enquanto chora?

Sonhei em tentar misturar as águas de quatro cachoeiras numa cachoeira só, que corresse devagar por vales quentes de pele humana em contato. Quis conhecer o sabor das tuas lágrimas: não havia nenhuma outra bebida nesse mundo que eu mais gostaria de experimentar do que essa, esses pedaços de ti, essas gotas que antes fizeram parte de sua alma e que ela, como vulcão em erupção, resolveu ejetar... Que outro jeito eu teria pra te trazer dentro de mim?

Sonhei também com dias de frio cortante e de neblina densa, quando sair de casa parecia a mais péssima das idéias. E a cama, cheia de cobertores, fazia um convite irrecusável para que perdéssemos o dia, inúteis e felizes, inúteis e aquecidos. E foi um sonho puro, sem gente pelada, sem pinto duro, sem penetrações e gemidos: só dois corpos colados, trocando calor e carinho, abraçados um ao outro como um bebê se abraça à sua mãe, e sinceramente mandando o mundo lá fora e tudo dentro dele para o inferno.

Sonhei em estar tão feliz comigo e com tudo que nunca mais teria medo de deixar o meu coração se dizer, por inteiro, por mais piegas que fosse parecer, por mais ridículo que me fossem achar. A mordaça seria rasgada, para sempre, sonhei – e eu poderia ser inteiramente eu mesmo, sem medo algum de por isso ser amado menos.

Sonhei em ser criança de novo, me sentindo do tamanho do universo, antes das aulas de ciências e das primeiras noções de astronomia, no tempo em que não existiam nem cidades nem países, nem continentes nem planetas, nem sistemas solares nem galáxias - naquele tempo em que, mesmo anão, ainda conseguia me sentir um gigante.

(A única razão para que não existam formigas suicidas é que elas não conhecem o tamanho do universo. Será que elas acreditam, a cada vez que vão enterrar um ser amado que morreu pisoteado por um sapato humano, que a vida tem sentido, afinal de contas? Acharão que a bota do homem é como os terremotos e asteróides enviados por Deus? Dirão nos velórios, incapazes de compreenderem as leis que regem os sapatos e os esmagamentos, que o Senhor trabalha por vias misteriosas?)

E depois, enfim, tive que acordar pra perseguir que nada disso foi real. Só agarrei fantasmas. Nada disso foi real? Devo ter sonhado...

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AINDA 2006 (mas um sentimento que durou até 2007...): E o que mais me dói é essa suspeita de que, de uma hora pra outra, ela me vê como nada mais do que um incômodo, uma aporrinhação, um cisco no olho, uma pedra no sapato, algo levemente desagradável, como um vira-latas que nos segue os passos, como um mendigo estendendo o braço na nossa janela do carro, como um pernilongo zunindo ao pé do ouvido na madrugada, e que a única atitude cabível em relação a mim é a de ENXOTAR...

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OUTUBRO de 2005: A verdade dessa árvore na minha frente não é a palavra árvore, a idéia de árvore, a abstração árvore, mas a coisa mesma. A idéia é uma generalização: pego todas as árvores do mundo, que são extremamente diferentes umas das outras, e as reúno numa mesma categoria, não considerando suas diferenças como dignas de crédito. Para saber a verdade sobre a árvore, preciso abandonar a palavra árvore e olhar para a coisa com um olhar totalmente purificado de verbalização. A verdade só pode ser experimentada quando a mente está silenciosa. Uma mente sem palavras é um receptáculo puro o bastante para acolher a verdade do mundo real. Quem se encerra num mundo de palavras se afasta da verdade silenciosa que aguarda tranquilamente lá fora. Se olhamos as coisas através da lente de contato de seus nomes, nos enganamos: olhamos para uma criação nossa, e não para a coisa real.

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OUTUBRO de 2001: É sempre tolice, em momentos repentinos de alegria, achar que enfim agora tudo está resolvido, que o futuro está garantido com esplendores, que agora que achei a chave nunca mais a perderei. Todo contentamento dos mortais é mortal, dizia Montaigne; toda alegria é provisória, assim como toda tristeza, assim como tudo que desce na correnteza sempre corrente do devir. A regra da vida é a inconstância, a oscilação, a mudança; aceitar essa regra talvez seja a única chave para a felicidade. Não mais se entristecer com a tristeza, não mais desejar que a alegria seja eterna, abraçar o mundo inteiro em sua impermanência, suportar que tudo seja como água caindo pelos dedos. Mesmo que caia, a água não pode nos refrescar, nos deleitar? A vida é incêndio, sim, mas que importa restar em cinzas se foi alta e bela a flama? A aceitação do fluir, da inconstância, da morte: eis a sabedoria trágica, talvez a única possível.

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OUTUBRO DE 2005: A infelicidade não é tão escandalosa pois também ela é mortal. Os infelizes não espalham seus lamentos e lágrimas pelo mundo por muito tempo: logo se abre a cova e os engole, inteiros, infelicidade inclusa, silenciando de vez as lamúrias e os reclamos do mal-estar. A morte é um escândalo menor: por vezes chega a ser mesmo um benefício. Graças a deus, toda infelicidade dos mortais é mortal.

“A melhor coisa sobre esse lugar é que você sabe que está indo embora um dia”? Não, creio que há coisas melhores na vida do que saber-se mortal, o que raramente é algo de prazeiroso. Mas é ao menos um consolo saber que há uma porta de saída, que não se está condenado à terrível pena de viver eternamente, que não estamos presos à vida por algemas inquebráveis, que qualquer tormento não possui a menor chance de durar pra sempre... Algo está doendo? Não se preocupe: você vai acabar morrendo, e a dor vai acabar desaparecendo. Veja só: a vida não é assim tão terrível... pois acaba! O que é certamente uma vantagem!

A morte não é nada de mal: só um “suave desaparecimento”, como diz a Etty. Todo sofrimento existe somente pois estamos vivos. Quem não quis conquistar um estado de completa imunidade à dor? Tornar-se absolutamente impermeável a ela? Pois bem: a morte é esse presente dos céus que nos fará, de uma vez por todas, aterrisar em território inacessível à dor.

Sim, estaremos também inacessíveis ao prazer. Mas... quer saber? Nem vamos sentir falta. Os mortos não têm saudade. Nenhuma nostalgia pelos prazeres passados incomoda a paz de seu sono angelical...

O nada não é nada de mal. Todo mal é consequência do ser. Se eu nada fosse, o que poderia me atingir? Tente apunhalar o coração do nada com um punhal: é inútil. O nada não tem coração.

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“Nobody sees when you are lying in your bed
And I wanna crawl in with you, but I cry instead
I want your warm, but it will only me colder
When it's over - So I can’t tonight, baby…”

FIONA APPLE. Love Ridden.

À meia-luz, protegido detrás de uma porta trancada, exilado do mundo: só assim é que você enfim se dá permissão para sofrer. O mundo sempre te vê de olhos secos, cabeça erguida, porte seguro, expressão inexpressiva. O número de tuas lágrimas públicas é tão pequeno que te acreditam homem feliz, tanto quanto são os homens normais, todos nós. É que ninguém pode te ver deitado na cama do seu exílio, entregando ao travesseiro as lamúrias líquidas, contando para o teto a história de teus fracassos, pedindo ajuda para as paredes... Ah, homem das lágrimas secretas, quem te convenceu de que ser triste é um crime? E, se não é, por que você só o comete escondido?

À meia-luz, você se sente imerso na mais completa escuridão. Mesmo que fosse meio-dia de um verão escaldante, hoje nenhum dos raios de Sol iria conseguir penetrar pela tua carapaça. Condenado está à escuridão desse dia, não importando o quanto de luz derrubem sobre ti. E então você se encolhe na solidão para poder chorar por ser tão só. Ah, homem sempre acompanhado pela solidão, quem te ensinou que um quarto trancado à chave e vedado à luz é o antídoto contra a desertidão? Homem das lágrimas secretas, como esperas que alguém as venha enxugar se ninguém as pode ver?

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OUTUBRO DE 2001: "ainda não comecei a viver: estou só lendo o manual..."

"...tudo o que nos resta é o amor daqueles que nos viram passar: sem isso a vida não tem sentido."

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(e isso foi bem pouco!)