O TRAUMA DO NASCIMENTO e
A NOSTALGIA PELO PARAÍSO PERDIDO
(comentários e digressões sobre o livro
"O Trauma do Nascimento", de Otto Rank)
A NOSTALGIA PELO PARAÍSO PERDIDO
(comentários e digressões sobre o livro
"O Trauma do Nascimento", de Otto Rank)
De início eu fiquei um pouco desconfiado quanto à tentativa que o Rank faz de explicar trocentos mil fenômenos sempre partindo do tal do “trauma do nascimento”. Ele parece fazer um imenso esforço intelectual tentando fazer tudo derivar disso: não só as religiões, a arte e a filosofia seriam consequências diretas do trauma do nascimento, como também todos os esforços humanos no domínio da técnica e da ciência seriam também uma tentativa de “superação” do mesmo trauma. Sem falar que, segundo o Rank, praticamente todos os tipos de neurose e anormalidades psíquicas são efeitos dele (ou da falha em “lidar” com ele de modo adequado). Tudo tem a ver, para o Rank, com o tal do trauma do nascimento: ele é como um Sol na galáxia teórica de Otto Rank; todo o resto parece orbitar ao redor desse conceito.
A princípio eu fiquei me perguntando: não seria muito reducionismo apelar para um único “princípio de explicação” que daria conta de esclarecer as “razões últimas” de todas as atividades e ações humanas? É a mesma desconfiança que eu sinto quando os marxistas querem explicar absolutamente todos os fenômenos partindo sempre das bases econômicas e materiais, ou quando os freudianos reduzem tudo a algo condicionado pela libido ou pelo Complexo de Édipo, ou quando os darwinistas consideram todo ser vivo, inclusive os homens, como meras máquinas cegas programadas a transmitir genes para seus descendentes...
Quer dizer então que a obra completa de William Shakespeare seria um mero “efeito acidental” produzido em um certo indivíduo pelas circunstâncias sócio-econômicas e ideológicas da Inglaterra daquela época, como poderia dizer um marxista simplista? E a música de Beethoven não passaria do resultado derivado da “sublimação do instinto sexual”, como um freudiano ortodoxo poderia dizer? E todo ser humano não passa de um máquina sexual perseguindo a perpetuação de seus cromossomos, como dirá, talvez, um darwinista clássico? Sei não, sei não... Desconfio de toda explicação assim tão simplificadora...
O caso de Rank parece semelhante: às vezes a gente fica com a impressão de que ele interpreta a realidade de um modo um tanto distorcido e distorcente, tentando encaixar os fatos mais diversos dentro de sua teoria centrada no trauma do nascimento. Mas com certeza o livro tem uma força argumentativa e persuasiva impressionante: os exemplos e demonstrações que ele vai dando são ultra-convincentes, sem falar que Rank discursa com uma convicção tamanha que se transmite ao leitor por osmose uma estranha espécie de confiança no que ele está dizendo - logo já estamos achando bastante natural todas aquelas teses que, a princípio, pareciam estranhas, bizarras e difíceis de aceitar...
Por todo o livro, o estado pré-natal é descrito como o paraíso mais perfeito, a situação mais voluptuosa e deliciosa que existe: não haveria nada melhor para qualquer ser humano, dentre todos os bens do Universo, do que estar ali dentro do útero da mamãe, aninhado e protegido, flutuando numa piscininha aquecida, sem precisar fazer nada além de estar ali, numa boa, dormindo, comendo e nadando... Mas convêm perguntar: de onde o Rank tirou uma convicção tão firme de que era assim tão gostosa a vida de cada um de nós na barriga da mãe? Porque é claro que cada um de nós, se perguntado se era “feliz” naquele tempo tão distante, vai encontrar um buraco negro na memória e provavelmente vai ser levado a responder: “Não sei... eu não me lembro! Faz taanto tempo...” Mas é provável que diga, também: “Mas eu acho que sim, tenho quase certeza que era feliz...”
Deixemos de lado a questão filosófica de saber se ser feliz sem ter consciência de sua felicidade é ser feliz de verdade... O que importa de verdade é esse “acho que sim”, quase universal, que quase todo ser humano dá a essa pergunta: “você acha que foi feliz dentro do útero?” Não é pra lá de interessante que não haja praticamente ninguém que diga não ter gostado do lugar e da situação em que esteve antes de nascer?
Porque é óbvio que nenhum de nós possui memórias conscientes sobre aquele tempo em que nadávamos calmamente numa piscina quente de líquido amniótico. Aliás, cabe aos neurologistas e biólogos nos confirmar, se é que isso é possível, se o feto seria capaz ou não de reter lembranças tão precoces possuindo um cérebro ainda em formação. A tese de Rank (difícil de provar, é verdade, mas que explica muita coisa da história da humanidade...), é a de que inconscientemente nós “nos lembramos” daquela maravilhosa paz, tranquilidade e prazer duradouro que experimentamos no interior do útero. Mais do que isso: o nosso inconsciente, no fundo, ficou “viciado” naquele estado beatífico e depois, a nossa vida inteira, vai desejar, mais do que tudo no mundo, esse retorno ao paraíso perdido...
E por que “o paraíso” se perdeu? Simples assim: pois nascemos. Não é difícil de entender porque Rank insiste em chamar o ato do nascimento como um acontecimento extremamente traumático para a vida do bebê – tão traumático que deixará sequelas em nossa vida psicológica por toda a vida! Imaginem vocês que o bebêzinho estava lá, na maior boa vida, na maior relax, só curtindo umas férias preguiçosas num resort aquático cinco estrelas, sendo alimentado sem precisar mexer um dedo, livrando-se de seus cocôs e xixis sem nem precisar ir ao banheiro, não tendo nem que trabalhar, nem que estudar, nem que acordar cedo todo dia... Ê maravilha! Uma vida de príncipe num trono de delícias!
E aí, de repente, de supetão, ele toma um pé na bunda súbito e é expulso de sua casa como quem não pagou aluguel e agora é despejado... Sem aviso prévio e sem o menor respeito por seu desejo (que, claro, era de ficar ali!), ele é evacuado – e com que grosseria! Ele vai sendo empurrado para fora, tendo que passar por uma portinha minúscula, apertadíssima, que lhe dá a sensação terrível de asfixia e esmagamento... E eis que ele se vê num lugar estranho e bizarro, separado do corpo de sua mãe, longe do calor protegido do seu antigo ninho, tendo o cordão que os ligava tão intimamente cruelmente rasgado... E ei-lo ali, entregue ao frio, entregue a mãos estranhas, entregue, pela primeira vez, à solidão... É por isso que todos nós choramos quando nascemos. É por isso que todos os bebês humanos nascidos de mães de carne-e-osso, e não de tubos de ensaio ou de robôs, não importa o quanto a tecnologia se desenvolva, vão continuar para sempre a nascer berrando e chorando... Porque nascer não é nada gostoso. Nascer equivale a ser expulso do paraíso.
Essa experiência primordial, segundo Rank, vai deixar no nosso cérebro uma tatuagem perpétua e indelével. Nossa vida inteira ficará marcada por essa temporada no céu e por esse trauma da expulsão. O cristianismo, com o mito do Éden, não fez nada além de inventar uma historinha que serve como metáfora para a perda real do útero sofrida por todos nós – e que é o fardo que carrega todo ser humano. Como bom ateu, discípulo de Freud em matéria de religião, Rank também dirá que as religiões, no fundo, inventam e imaginam um céu onde colocam somente projeções de desejos regressivos. Projetamos no além-túmulo a vida in utero! Queremos que o Céu seja como um segundo útero onde pudéssemos reentrar para voltar a sentir todas as saborosas sensações que já sentimos, no começo da vida, antes do desastre catastrófico do nascimento...
O mito do amor platônico, por sua vez, também não é nada além de uma criação poética realizada em cima do anseio que temos pela reunificação com o objeto amado depois de termos sido “separados” dele num passado distante. Visto sob essa luz, o famoso mito do amor platônico se torna muito mais compreensível e “pé-no-chão”, por assim dizer. No célebre diálogo do Banquete de Platão, como é bem conhecido, em certo ponto é narrado o mito de que nós já fomos, todos nós, “seres duplos”, completos, plenos - e que os deuses nos puniram nos rachando em duas metades. O amor seria essa busca louca empreendida por cada um de nós para reencontrar a sua metade perdida, com quem poderíamos voltar a nos unificar, a nos fundir – voltar a ser Um...
Se no mito platônico são os deuses que, como punição, nos rasgam no meio, em linguagem mais realista podemos dizer que é a desgraça do nascimento que nos “rasga no meio”, que nos desgruda da mãe, que nos arranca de nosso casulo... Segundo Rank, portanto, se dispensarmos as vestimentas religiosas desse mito platônico e abandonarmos a intervenção divina, vamos ficar com uma metáfora poética poderosa sobre a situação humana: do estado inicial de “unificação” (bebê + mãe), passamos pelo trauma de um “rasgo” (o nascimento), para depois sairmos em busca de um modo de recuperar a delícia perdida (e a essa busca e a esse anseio chamamos “amor ").
E não é difícil de perceber que o nascimento é uma experiência vivida pelo bebê como sendo quase uma CASTRAÇÃO. Não se trata de ser meramente evacuado de uma casa onde você estava morando, todo confortável – isso seria difícil de aguentar, sim, mas não constituiria um “trauma” tão intenso! A experiência que o bebê tem, pelo contrário, é de que arrancaram uma PARTE DELE, um membro DELE, e o melhor deles... O feto não tem ainda a mínima noção de individualidade e de autonomia para poder crer que é uma criatura separada do resto do mundo - muito tempo ainda vai ser preciso para que a criança comece a perceber o mundo como algo separado dela, até que o ego comece a nascer do id, até que comece todo o processo de “individuação”... Na perspectiva do bebê, ele não está sendo meramente transportado de um local para outro - ele está tendo sua mãe arrancada de junto de seu corpo... E como dói!
E assim Rank vai explicando tudo como uma espécie de efeito do trauma do nascimento: a transformação da natureza pela técnica e pela ciência teria como objetivo principal transformar o mundo tendo como molde a vida intra-uterina e o nosso desejo de voltar a habitar num “ambiente” semelhante ao corpo maternal. (Mas como fracassamos! Já que o mundo moderno nada tem de aconchegante e uterino!...) A quem retrucar dizendo que tudo o que queremos através da transformação da natureza e dos avanços tecnológicos é nada mais do que “conforto” e “prazeres fáceis”, Rank responderia, provavelmente, que queremos essas coisas justamente em virtude da saudade que temos do conforto e dos prazeres fáceis que experimentamos na vida intra-uterina...
A arte, por sua vez, também não passaria de uma tentativa de expressar a angústia, perpétua dentro de nós, associada com a expulsão do útero e com a impossibilidade de retornar a ele. Ou então a arte serviria para fabricar "satisfações substitutivas" que nos consolem de nossa sina de exilados...
Quem foi mesmo o poeta que disse que “não há paraísos a não ser os paraísos perdidos?” Não me lembro mais. Só sei que, segundo Rank, durante nossa vida inteira ficaremos zanzando pelo mundo à procura de algo que nos dê de volta a suposta beatitude que experimentados dentro do útero - e a isso vamos chamar isso de “busca pela felicidade”, de “procura por um amor verdadeiro” ou mesmo da “conquista do reino dos céus”. A psicanálise, que em geral é uma grande ferida no nosso narcisismo, reduz todos esses belíssimos ideais a algo com uma explicação perfeitamente biológica... É como se o Rank dissesse que, por trás de todos esses lindos anseios, estão somente os bebês crescidos que nós todos somos - que nunca se conformaram com o fato de terem nascido e perdido o “paraíso”...
* * * * *
Nosso inconsciente, segundo Rank, é quase inteirinho feito desse desejo louco e selvagem de retornar ao útero e re-experimentar o paraíso que nós, vagamente, “lá no fundo de nós”, “lembramos” de ter vivido. A questão, extremamente importante, é a seguinte: esse desejo inconsciente pode se satisfazer de alguma forma? Esse sonho do retorno ao útero é concretizável? Enfim, faz bem alimentar esses tipo de fantasias? E a resposta de Rank é clara: todas essas tendências regressivas são perigosíssimas e colocam em xeque a sanidade mental de qualquer pessoa. Isso me faz lembrar de Kurt Cobain, que tinha tantas fantasias de regresso ao útero materno e que se tornou deprimido e perdido a ponto de ir procurar a cura final no suicídio - é só lembrar de certos versos do In Utero e na inigualável angústia com que ele canta, por exemplo, "throw down your umbelical womb so I can climb right back...".A princípio eu fiquei me perguntando: não seria muito reducionismo apelar para um único “princípio de explicação” que daria conta de esclarecer as “razões últimas” de todas as atividades e ações humanas? É a mesma desconfiança que eu sinto quando os marxistas querem explicar absolutamente todos os fenômenos partindo sempre das bases econômicas e materiais, ou quando os freudianos reduzem tudo a algo condicionado pela libido ou pelo Complexo de Édipo, ou quando os darwinistas consideram todo ser vivo, inclusive os homens, como meras máquinas cegas programadas a transmitir genes para seus descendentes...
Quer dizer então que a obra completa de William Shakespeare seria um mero “efeito acidental” produzido em um certo indivíduo pelas circunstâncias sócio-econômicas e ideológicas da Inglaterra daquela época, como poderia dizer um marxista simplista? E a música de Beethoven não passaria do resultado derivado da “sublimação do instinto sexual”, como um freudiano ortodoxo poderia dizer? E todo ser humano não passa de um máquina sexual perseguindo a perpetuação de seus cromossomos, como dirá, talvez, um darwinista clássico? Sei não, sei não... Desconfio de toda explicação assim tão simplificadora...
O caso de Rank parece semelhante: às vezes a gente fica com a impressão de que ele interpreta a realidade de um modo um tanto distorcido e distorcente, tentando encaixar os fatos mais diversos dentro de sua teoria centrada no trauma do nascimento. Mas com certeza o livro tem uma força argumentativa e persuasiva impressionante: os exemplos e demonstrações que ele vai dando são ultra-convincentes, sem falar que Rank discursa com uma convicção tamanha que se transmite ao leitor por osmose uma estranha espécie de confiança no que ele está dizendo - logo já estamos achando bastante natural todas aquelas teses que, a princípio, pareciam estranhas, bizarras e difíceis de aceitar...
Por todo o livro, o estado pré-natal é descrito como o paraíso mais perfeito, a situação mais voluptuosa e deliciosa que existe: não haveria nada melhor para qualquer ser humano, dentre todos os bens do Universo, do que estar ali dentro do útero da mamãe, aninhado e protegido, flutuando numa piscininha aquecida, sem precisar fazer nada além de estar ali, numa boa, dormindo, comendo e nadando... Mas convêm perguntar: de onde o Rank tirou uma convicção tão firme de que era assim tão gostosa a vida de cada um de nós na barriga da mãe? Porque é claro que cada um de nós, se perguntado se era “feliz” naquele tempo tão distante, vai encontrar um buraco negro na memória e provavelmente vai ser levado a responder: “Não sei... eu não me lembro! Faz taanto tempo...” Mas é provável que diga, também: “Mas eu acho que sim, tenho quase certeza que era feliz...”
Deixemos de lado a questão filosófica de saber se ser feliz sem ter consciência de sua felicidade é ser feliz de verdade... O que importa de verdade é esse “acho que sim”, quase universal, que quase todo ser humano dá a essa pergunta: “você acha que foi feliz dentro do útero?” Não é pra lá de interessante que não haja praticamente ninguém que diga não ter gostado do lugar e da situação em que esteve antes de nascer?
Porque é óbvio que nenhum de nós possui memórias conscientes sobre aquele tempo em que nadávamos calmamente numa piscina quente de líquido amniótico. Aliás, cabe aos neurologistas e biólogos nos confirmar, se é que isso é possível, se o feto seria capaz ou não de reter lembranças tão precoces possuindo um cérebro ainda em formação. A tese de Rank (difícil de provar, é verdade, mas que explica muita coisa da história da humanidade...), é a de que inconscientemente nós “nos lembramos” daquela maravilhosa paz, tranquilidade e prazer duradouro que experimentamos no interior do útero. Mais do que isso: o nosso inconsciente, no fundo, ficou “viciado” naquele estado beatífico e depois, a nossa vida inteira, vai desejar, mais do que tudo no mundo, esse retorno ao paraíso perdido...
E por que “o paraíso” se perdeu? Simples assim: pois nascemos. Não é difícil de entender porque Rank insiste em chamar o ato do nascimento como um acontecimento extremamente traumático para a vida do bebê – tão traumático que deixará sequelas em nossa vida psicológica por toda a vida! Imaginem vocês que o bebêzinho estava lá, na maior boa vida, na maior relax, só curtindo umas férias preguiçosas num resort aquático cinco estrelas, sendo alimentado sem precisar mexer um dedo, livrando-se de seus cocôs e xixis sem nem precisar ir ao banheiro, não tendo nem que trabalhar, nem que estudar, nem que acordar cedo todo dia... Ê maravilha! Uma vida de príncipe num trono de delícias!
E aí, de repente, de supetão, ele toma um pé na bunda súbito e é expulso de sua casa como quem não pagou aluguel e agora é despejado... Sem aviso prévio e sem o menor respeito por seu desejo (que, claro, era de ficar ali!), ele é evacuado – e com que grosseria! Ele vai sendo empurrado para fora, tendo que passar por uma portinha minúscula, apertadíssima, que lhe dá a sensação terrível de asfixia e esmagamento... E eis que ele se vê num lugar estranho e bizarro, separado do corpo de sua mãe, longe do calor protegido do seu antigo ninho, tendo o cordão que os ligava tão intimamente cruelmente rasgado... E ei-lo ali, entregue ao frio, entregue a mãos estranhas, entregue, pela primeira vez, à solidão... É por isso que todos nós choramos quando nascemos. É por isso que todos os bebês humanos nascidos de mães de carne-e-osso, e não de tubos de ensaio ou de robôs, não importa o quanto a tecnologia se desenvolva, vão continuar para sempre a nascer berrando e chorando... Porque nascer não é nada gostoso. Nascer equivale a ser expulso do paraíso.
Essa experiência primordial, segundo Rank, vai deixar no nosso cérebro uma tatuagem perpétua e indelével. Nossa vida inteira ficará marcada por essa temporada no céu e por esse trauma da expulsão. O cristianismo, com o mito do Éden, não fez nada além de inventar uma historinha que serve como metáfora para a perda real do útero sofrida por todos nós – e que é o fardo que carrega todo ser humano. Como bom ateu, discípulo de Freud em matéria de religião, Rank também dirá que as religiões, no fundo, inventam e imaginam um céu onde colocam somente projeções de desejos regressivos. Projetamos no além-túmulo a vida in utero! Queremos que o Céu seja como um segundo útero onde pudéssemos reentrar para voltar a sentir todas as saborosas sensações que já sentimos, no começo da vida, antes do desastre catastrófico do nascimento...
O mito do amor platônico, por sua vez, também não é nada além de uma criação poética realizada em cima do anseio que temos pela reunificação com o objeto amado depois de termos sido “separados” dele num passado distante. Visto sob essa luz, o famoso mito do amor platônico se torna muito mais compreensível e “pé-no-chão”, por assim dizer. No célebre diálogo do Banquete de Platão, como é bem conhecido, em certo ponto é narrado o mito de que nós já fomos, todos nós, “seres duplos”, completos, plenos - e que os deuses nos puniram nos rachando em duas metades. O amor seria essa busca louca empreendida por cada um de nós para reencontrar a sua metade perdida, com quem poderíamos voltar a nos unificar, a nos fundir – voltar a ser Um...
Se no mito platônico são os deuses que, como punição, nos rasgam no meio, em linguagem mais realista podemos dizer que é a desgraça do nascimento que nos “rasga no meio”, que nos desgruda da mãe, que nos arranca de nosso casulo... Segundo Rank, portanto, se dispensarmos as vestimentas religiosas desse mito platônico e abandonarmos a intervenção divina, vamos ficar com uma metáfora poética poderosa sobre a situação humana: do estado inicial de “unificação” (bebê + mãe), passamos pelo trauma de um “rasgo” (o nascimento), para depois sairmos em busca de um modo de recuperar a delícia perdida (e a essa busca e a esse anseio chamamos “amor ").
E não é difícil de perceber que o nascimento é uma experiência vivida pelo bebê como sendo quase uma CASTRAÇÃO. Não se trata de ser meramente evacuado de uma casa onde você estava morando, todo confortável – isso seria difícil de aguentar, sim, mas não constituiria um “trauma” tão intenso! A experiência que o bebê tem, pelo contrário, é de que arrancaram uma PARTE DELE, um membro DELE, e o melhor deles... O feto não tem ainda a mínima noção de individualidade e de autonomia para poder crer que é uma criatura separada do resto do mundo - muito tempo ainda vai ser preciso para que a criança comece a perceber o mundo como algo separado dela, até que o ego comece a nascer do id, até que comece todo o processo de “individuação”... Na perspectiva do bebê, ele não está sendo meramente transportado de um local para outro - ele está tendo sua mãe arrancada de junto de seu corpo... E como dói!
E assim Rank vai explicando tudo como uma espécie de efeito do trauma do nascimento: a transformação da natureza pela técnica e pela ciência teria como objetivo principal transformar o mundo tendo como molde a vida intra-uterina e o nosso desejo de voltar a habitar num “ambiente” semelhante ao corpo maternal. (Mas como fracassamos! Já que o mundo moderno nada tem de aconchegante e uterino!...) A quem retrucar dizendo que tudo o que queremos através da transformação da natureza e dos avanços tecnológicos é nada mais do que “conforto” e “prazeres fáceis”, Rank responderia, provavelmente, que queremos essas coisas justamente em virtude da saudade que temos do conforto e dos prazeres fáceis que experimentamos na vida intra-uterina...
A arte, por sua vez, também não passaria de uma tentativa de expressar a angústia, perpétua dentro de nós, associada com a expulsão do útero e com a impossibilidade de retornar a ele. Ou então a arte serviria para fabricar "satisfações substitutivas" que nos consolem de nossa sina de exilados...
Quem foi mesmo o poeta que disse que “não há paraísos a não ser os paraísos perdidos?” Não me lembro mais. Só sei que, segundo Rank, durante nossa vida inteira ficaremos zanzando pelo mundo à procura de algo que nos dê de volta a suposta beatitude que experimentados dentro do útero - e a isso vamos chamar isso de “busca pela felicidade”, de “procura por um amor verdadeiro” ou mesmo da “conquista do reino dos céus”. A psicanálise, que em geral é uma grande ferida no nosso narcisismo, reduz todos esses belíssimos ideais a algo com uma explicação perfeitamente biológica... É como se o Rank dissesse que, por trás de todos esses lindos anseios, estão somente os bebês crescidos que nós todos somos - que nunca se conformaram com o fato de terem nascido e perdido o “paraíso”...
* * * * *
Para o Rank, se eu o entendi bem, todas as neuroses e psicoses, em última análise, decorrem de um excesso de “libido regressiva”. Ficamos doentes quando queremos demais reentrar no útero e ficamos muito fixados na figura materna. Por quê ficamos doentes? Porque é simplesmente impossível conseguir isso que desejamos. E não é difícil de imaginar o tamanho do sofrimento e do mal-estar por que passamos ao desejar e desejar, ardentemente, sem achar satisfação possível para esse anseio...
Toda a sexualidade, para o Rank, também vai ter ligação com o trauma do nascimento e com a tentativa de restabelecer, pelo menos de modo parcial, a ligação profunda que existia entre o feto e sua mãe. Na essência do desejo sexual está essa ânsia pela “reunificação”, essa “tentativa de restabelecer parcialmente a situação primitiva entre a mãe e o filho”. O trecho seguinte é crucial: “um sujeito, não importa a qual sexo pertença, torna-se neurótico a partir do momento em que procura satisfazer sua libido primitiva, isto é, seu desejo de efetuar o retorno para dentro da mãe, a título de compensação pelo traumatismo do nascimento, não pela via normal da relação sexual, mas pela forma primitivamente infantil; ao fazer isso, ele se aproxima novamente do limite a partir do qual começa a angústia vinculada ao trauma do nascimento, angústia que só a satisfação sexual normal é suscetível de dissipar.”
Isso é importante demais. E bastante radical. Otto Rank, como fará também o Gikovate no livro dele, está de fato demolindo todo o ideal romântico da re-unificação com o objeto amado. Isso passa a ser visto como uma perigosa tendência regressiva que pode dar em neurose. A essência da sanidade mental estaria em fazer o ego vencer as tendências inconscientes, ou seja, sufocar todas essas tendências infantis de regresso.
A psicanálise sempre foi extremamente realista – e talvez por isso tantos a considerem algo tão sombrio e sem magia... Nesse caso, também, a mensagem de Rank não tem nada de “bonitinha”: ele nos convida, no fundo, a matar nossos sonhos e tentar, na medida do possível, abandonar de vez a nossa “saudade”. Em nome de um certo “realismo”, precisamos matar em nós a fantasia do regresso, destruir a enorme atração da nostalgia... E acho que isso representa, no fundo, aquela velha necessidade, que o Freud tanto destacava, de fazer triunfar o princípio de realidade sobre o princípio de prazer.
É como se fosse preciso chegar à “conclusão” – mas não só com a cabeça, mas com todo o nosso ser! - de que é impossível o regresso, de que é inútil desejá-lo e de que só há vida boa quando esse sonho não mais nos incomodar com seus pedidos tão selvagens. É preciso esquecer essas fantasias vãs e parar de esperar do amor, da religião, da ciência, da arte ou de qualquer outra coisa aquilo que nada nos pode dar: o paraíso de volta.
Esse paraíso perdido não é daquele tipo que fica ali, disponível por muito tempo na prateleirinha de achados & perdidos, e que um dia poderíamos reaver... Não! Infelizmente, esse paraíso é daqueles que, uma vez perdido, jamais será reencontrado. Desejar reencontrá-lo é condenar-se à infelicidade - pois não é infeliz todo aquele que deseja o impossível? Talvez Sponville nunca tenha dito algo de diferente quando tanto dizia contra a esperança – e quer esperança mais forte e mais inestirpável do que essa? Não será essa a esperança-mãe de todas as outras esperanças? Por isso Rank está, no fundo, dando uma sugestão quase estóica: convêm resignar-se... Só poderá ser feliz aquele que renunciar ao sonho completamente vão de retornar ao paraíso e aceitar o fato irremediável de sua perda.
* * * * *
É muito bonitinho dizer que nascer é uma grande maravilha, e que nos dá de presente a imensa dádiva de poder existir, mas a verdade é bem diferente, como o Rank mostra tão bem: a experiência psicológica que temos do nascimento e da primeira infância é traumática. O mito da infância feliz é somente isso: um mito... quase uma mentira. Porque a verdade é que um bebê e uma criança pequena têm que suportar uma imensa quantidade de sofrimento. E talvez seja com revolta que muitos de nós olhamos para trás e para a catástrofe de termos sido arrancados, ao nascer, de uma situação tão gostosa.... Quem muitas vezes já não gritou aos pais, em alguma briga qualquer: “Mas eu não pedi para nascer!”? Talvez seja a memória inconsciente do trauma que nos leva a tratar nossos pais, de vez em quando, como se eles tivessem cometido contra nós o maior dos crimes ao nos trazerem ao mundo... Talvez, se a gente pudesse escolher, preferiríamos viver para sempre dentro do útero - de preferência, podendo ter uma consciência desenvolvida (uma consciência de adulto?) para poder gozar de nosso próprio prazer perfeito... O que é obviamente pedir demais!
Segundo o Rank, portanto, é claro que no fundo de cada um, admitamos isso ou não, subsiste um desejo profundo e poderoso de voltar a se aproximar do estado primordial, de sentir de novo aquela fusão do feto com o corpo materno, de ser de novo um bebê cuidado pela mamãe, amado incondicionalmente, sempre satisfeito com a máxima rapidez... Não é novidade pra ninguém a tese da psicanálise de que, quando amamos, estamos sempre buscando substitutos de nossos pais e ansiando por um estado de paz e satisfação tranquila como só pudemos experimentar num passado muito distante...
O Rank e os outros psicólogos que o seguem vão dizer que esse é um desejo inextirpável, uma das forças mais veementes presentes no nosso insconsciente, mas - eis a triste notícia! - é um desejo simplesmente impossível de satisfazer. Essa regressão ao útero é impossível. Aquilo, aquele paraíso, está irremediavelmente perdido. Só nos resta chorar. Só nos resta tentar aceitar esse fato inaceitável. Só nos resta passar pomada em nossa ferida, sabendo no entanto que ela nunca irá sarar. Só nos resta tentarmos seguir vida afora com nossos substitutos e nossos subterfúgios, mas sabendo que a cicatriz nunca vai desaparecer. Essa sensação de ter perdido algo de paradisíaco e sublime nunca vai sumir, e todos vamos carregar dentro de nós, até o túmulo, esse buraco de incompletude, essa saudade dos melhores dias, essa nostalgia do ninho abandonado...
Quando é que iremos nos resignar ao fato de que essa perda é irreversível? É possível aceitar sem dor e sem mágoa uma perda tão fundamental? Se Rank está certo em dizer que o útero é sinônimo de "paraíso", a vida é mesmo cruel: já nascemos perdendo aquilo que conhecemos de melhor na vida... Parece uma piada do demônio, alguma uma travessura de uma divindade sádica e desdenhosa... Nascer é ser subitamente expulso, como que por uma descarga de privada, de um paraíso intra-uterino todo feito de paz, serenidade e calor, e injetado num mundo gelado e estranho, que demoramos muito para compreender, que nunca compreendemos por inteiro, e onde teremos que crescer, condenados à solidão. Exagero? Talvez seja: a vida não pode ser descrita como uma condenação à solidão, é claro, já que há o amor e a amizade, os laços que fazemos e conservamos, a convivência e as raras comunhões dos espíritos... Mas quem nega que é mais solitário estar no mundo do que era estar no útero? Quem não vê que a solidão é um sentimento que nenhum feto jamais seria capaz de sentir?
Nascemos e agora a solidão é nosso destino. O nascimento já sela nossa separação. O ato de crescer é também o ato de desgrudar. E o amor só existe pois somos sós. Só amamos pois o elo foi rompido e a dor dessa desconexão não pára de latejar na nossa memória e nosso inconsciente. O amor é também nostalgia, e talvez não existiria nenhum amor se não tivéssemos atrás de nós um paraíso perdido e o desejo de reencontrá-lo. O amor é o nome de nossa desesperada busca por um substituto para o Éden de que fomos arrancados brutalmente pelo nascimento e pela maturação. É porque somos sós que precisamos procurar no amor algo que nos restitua a comunhão.
* * * * *
A mensagem pode parecer, à primeira vista, um tanto amarga e sombria, mas eu consigo enxergar nesta teoria do Otto Rank muita sabedoria. É uma lição de estoicismo, sim: porque é preciso se resignar que ao útero não se volta. É preciso seguir em frente e esquecer o desejo de regresso. Saímos de um porto e estamos navegando em um mar de tormenta, mas não é sensato querer dar meia-volta e retornar: o porto já foi incendiado e não há lugar para onde voltar. Sempre avante, e sempre em direção ao abismo, que nos aguarda, no fim de tudo, e a todos nós, sem exceção. A vida é uma rodovia de mão única e ninguém consegue dar um cavalo-de-pau e reentrar no passado, indo parar de volta na barriga de mamãe, descansando como um nêne inteiramente feliz e pacificado pelos séculos dos séculos... Por mais que doa, vamos ter que deixar de sonhos tolos, amigos: o paraíso ficou atrás de nós, eis o fato, e é um paraíso destruído, incendiado, reduzido a pó, que não se repetirá no futuro. Irremediavelmente perdido.
Mas aí é como se o Rank dissesse: e você vai querer passar a viagem inteira só se lamentando por causa disso? Ora, chore um pouco, é compreensível – todos fazemos isso, e desde o nosso primeiro instante de vida, e continuamos a fazê-lo vida afora... Chorar é bom. Mas o luto não pode ser perpétuo, e a perda, toda perda, precisa ser superada! Pois então chore por causa de seu paraíso perdido, chore o quanto quiser, mas depois se canse. Se canse de chorar e siga em frente. Enterre o morto e siga em frente. Esqueça o paraíso e siga em frente. Esqueça a esperança de voltar, e siga em frente.
Amadurecer é isso: parar de ficar chorando, tristinho, pelo paraíso perdido, tentando a ele retornar, e recobrar as forças, reanimar as energias, reencher o tanque, e colocar tudo em movimento para enfrentar esse mar de tormenta, mesmo que o porto de onde saímos esteja para sempre inacessível... Se isso serve de consolo, teremos um porto de chegada, sim - e pacífico, e sem dor, e silencioso... O desejo de morrer também tem a ver com o desejo de reencontrar a paz intra-uterina. E há um certo consolo em saber que vamos poder descansar, no fim do caminho, e dormir um sono sem pesadelos, sem sobressaltos e sem despertar.
No fundo, talvez seja possível enxergar detrás da teoria do Otto Rank uma mensagem bastante positiva, que afirma o valor da vida e que diz com convicção que sim, ela vale a pena ser vivida, e que gostaremos tanto mais dela quanto menos nostalgia e esperança alimentarmos... É como se a vida fosse um mar que estamos cruzando entre dois portos, dois paraísos (o paraíso do útero e o paraíso do nada), mas iremos estragar a nossa viagem se ficarmos com a mente ocupada com o que passou ou com o que virá. Por enquanto não é tempo de portos – é tempo de navegar, em mares em fúria e em mares de paz, em dias de tempestade e em dias de sol, carregando no mesmo peito as feridas e as alegrias... é tempo de navegar e lutar! Amigos, vamos esquecer de onde saímos e para onde vamos, deixar de lado a nostalgia e a esperança, a saudade do que não voltará e os sonhos vãos do que nunca virá, porque a vida é aqui e agora - e o que vale a pena não é nem o que ficou pra trás nem o que chegará no fim... A jornada é a recompensa!
|