“Então – dizia para mim mesmo – será melhor expor ao vento dos séculos o peito nu, rasgar as roupas, rasgar a carne, descobrir o próprio coração. Antes ser chama viva. De que nos serve agasalhar carvões ardentes de consumo lento e cotidiano? Antes ser chama viva que se veja de longe e que crepite alto com a festa e a glória dos incêndios!” (G.C., A Descoberta do Outro)
Eu curto muito sebo. Frequentemente espirro um bocado ali dentro, de tanto cheirar mofo e respirar poeira, mas costuma valer a pena - já fiz aquisições fenomenais em sebos por aí. Me orgulho muito, por exemplo, de ter encontrado a preço de banana o Tarântula, único livro de prosa do Bob Dylan (que é uma doidera só...), de ter comprado uma raríssima edição do fodaço Morte a Crédito do Céline (em tradução portuga), de ter em capa dura os Ensaios do Montaigne completos (comprados por 10 realetas, precinho pra lá de camarada para um dos livros mais sábios que um homem já escreveu...), entre muitos outros queridos espécimes adquiridos na Sebolândia e que hoje decoram a estante...
Mas esse post aqui é só pra fazer uma recomendação literária a todos de um escritor que eu ando admirando muito e que foi descoberto, meio que por acaso, numa promoção de sebo, daquelas do tipo "3 livros por 5 reais". Era quase de graça, então eu fui pegando, mesmo que não conhecesse, se a capa, o título ou qualquer outra coisa seduzisse... Porque, como todo mundo sabe, de graça até injeção na testa e ônibus errado.
O nome do cara autor do tal do livro que eu comprei em sebo por preço de chiclete e que tanto me agradou é Gustavo Corção (1896-1978) - e provavelmente 99,9% dos brasileiros jamais ouviram falar esse nome (eu nunca tinha). O que me parece uma grande injustiça, já que ele é provavelmente um dos escritores mais brilhantes (e subestimados) da história da literatura brasileira. (Na verdade digo isso mais pelo gosto que tenho pelas frases bombásticas e por sensacionalismo barato do que pensando que sei do que tô falando - porque não tenho cacife nem conhecimento de causa algum pra fazer um julgamento desses, já que eu conheço um teco bem nanico das escrituras literárias realizadas nesse país... Aliás, de José de Alencar, Jorge Amado, Paulo Coelho, Érico Veríssimo, Raquel de Queiroz, toda essa negada, nunca li uma linha sequer. Tenho preconceitos.)
O fato é que dentre os escritores nacionais que eu conheço, o Corção é um dos que mais me agrada, um dos que eu mais admiro. A prosa do cara é uma espécie de mistura entre Machado de Assis, Sterne e Chesterton (com um senso de humor extraordinário... são livros divertidíssimos, apesar de longe de serem fúteis!). O cara também tem uma brilhanteza filosófica que me lembra um pouco do David Hume - é inclusive chamado de "pensador", coisa chique. Por aí se diz que ele é um "autor cristão", mas fiquem sossegados que os livros dele, pelo menos os 2 que conheço, não tem nada a ver com pregação, catecismo ou lances gospel nojentos...
Li "A Descoberta do Outro" e adorei. Agora estou no "Lições de Abismo" e me deleitando muito, também. Posto aí embaixo um dos trechos mais divertidos, espertinhos e brilhantes que eu li do Corção - é a hora em que o protagonista de "A Descoberta do Outro" está se cagando de medo de estar com uma seríssima doença pulmonar - mas descobre, surpreso, que está totalmente são, ficando sem saber, no entanto, o que diabos fazer com sua saúde. Porque o problema é aquele velho: tudo bem que esteja tudo em riba, pulmões, cérebro, membros e coração perfeitamente saudáveis, por que, afinal de contas, resta sempre a velha questão: pra que serve a vida? Que faço eu desse meu corpo sadio? Que faço de mim mesmo agora que nada vai mal e, mesmo assim, nada vai bem?
Li "A Descoberta do Outro" e adorei. Agora estou no "Lições de Abismo" e me deleitando muito, também. Posto aí embaixo um dos trechos mais divertidos, espertinhos e brilhantes que eu li do Corção - é a hora em que o protagonista de "A Descoberta do Outro" está se cagando de medo de estar com uma seríssima doença pulmonar - mas descobre, surpreso, que está totalmente são, ficando sem saber, no entanto, o que diabos fazer com sua saúde. Porque o problema é aquele velho: tudo bem que esteja tudo em riba, pulmões, cérebro, membros e coração perfeitamente saudáveis, por que, afinal de contas, resta sempre a velha questão: pra que serve a vida? Que faço eu desse meu corpo sadio? Que faço de mim mesmo agora que nada vai mal e, mesmo assim, nada vai bem?
Voilà:
"MEUS PULMÕES NORMAIS
Nesse dia, mais convencido do que nunca, e já adaptado à idéia de ser tuberculoso, apareci no local e fui atendido com surpreendente rapidez. Veio o funcionário, consultou suas fichas e disse-me:
Nesse dia, mais convencido do que nunca, e já adaptado à idéia de ser tuberculoso, apareci no local e fui atendido com surpreendente rapidez. Veio o funcionário, consultou suas fichas e disse-me:
- Pulmões normais, nada a assinalar.
Achei-me na rua lépido e novo. (...) De repente, porém, assaltou-me um pensamento absurdo:
- E agora, que vou eu fazer com esse pulmões normais?
Depois de tantos dias passados a pensar em programas de cura, a normalidade me aparecia afetada de profunda indeterminação. Era muito mais fácil decidir o que fazer com a tuberculose.
A vida, em toda sua extensão, surgiu-me como um problema de insuportável extravagância. O que fazer com meus pulmões normais? Essa pergunta podia ser generalizada para todas as vísceras e para toda a vida. O que fazer? Como tinha de atravessar o Campo de Santana, na volta para meu escritório, tive a idéia de aproveitar os pulmões sentando-me na grama para brincar com as cutias. Gostaria também de soltar um papagaio ou jogar bola. A única coisa que não era adequada à normalidade de meus pulmões era o escritório.
A verdade é que todas as coisas que fazemos giram em torno dum buraco, duma falta, de qualquer erro que demanda retificação, e por estranha irrisão a maior parte de nossos entusiasmos vem deste constante remendar. Diante da normalidade ficamos perplexos. O mundo inteiro vive assim. Haja guerra ou peste nas cidades: todos ficam alvoroçados e otimistas. Cada um sabe exatamente o que deve fazer e todos se empenham na tarefa comum de combater o mal. Dentro das casas, também, a vida só atinge uma alta vibração e só parece digna de ser vivida nos dias em que se declara uma tuberculose ou aparece uma goteira.
Cada flagelo traz uma atmosfera de bem-estar: basta ver como todos ficam contentes quando cai uma pancada de chuva ou surge um incêndio. Em cada sanatório são sonhados os melhores programas de vida.
No meio desse disparate eu tinha, evidentemente, consciência nítida do alto valor da normalidade, mas não sabia o que fazer com ela. Lembrei-me de uma conversa dias atrás, ouvida em roda de moços. Falavam em grandes feitos, em viagens maravilhosas e em espírito de aventura. Em menino gostei muito de Julio Verne e até agora simpatizava com os indivíduos que rompem bruscamente com o cotidianismo rotineiro para descobrir um pólo ou sondar as profundezas dum vulcão.
Mas depois desse exame de saúde fiquei pensando que o espírito de aventura existe porque as pessoas não sabem mais o que fazer com os dias normais. O sujeito que embarca para os mares da Polinésia é na verdade tão aventureiro como eu o seria em Campos do Jordão. Estaria apenas curando uma enfermidade diferente da minha.
O problema que se armava diante de mim era o de saber se existiria uma aventura positiva, uma extraordinária aventura em que todos os elementos fossem normais; uma viagem inaudita que fosse terminar num lugar muito conhecido onde eu fosse esperado; um brinquedo que valesse a pena brincar, mais do que a cutia ou o papagaio, e que eu pudesse, sem incongruência, praticar nos dias de meus quarenta anos, com a alegria, a gratuidade, a liberdade, a normalidade que tudo tinha, quando eu era pequenino, no fundo do meu quintal.
Se não existisse essa aventura, então, decididamente, os meus pulmões normais não serviriam para nada e a vida inteira seria um gracejo estúpido."
(A Descoberta do Outro, pgs. 67-69)
Achei-me na rua lépido e novo. (...) De repente, porém, assaltou-me um pensamento absurdo:
- E agora, que vou eu fazer com esse pulmões normais?
Depois de tantos dias passados a pensar em programas de cura, a normalidade me aparecia afetada de profunda indeterminação. Era muito mais fácil decidir o que fazer com a tuberculose.
A vida, em toda sua extensão, surgiu-me como um problema de insuportável extravagância. O que fazer com meus pulmões normais? Essa pergunta podia ser generalizada para todas as vísceras e para toda a vida. O que fazer? Como tinha de atravessar o Campo de Santana, na volta para meu escritório, tive a idéia de aproveitar os pulmões sentando-me na grama para brincar com as cutias. Gostaria também de soltar um papagaio ou jogar bola. A única coisa que não era adequada à normalidade de meus pulmões era o escritório.
A verdade é que todas as coisas que fazemos giram em torno dum buraco, duma falta, de qualquer erro que demanda retificação, e por estranha irrisão a maior parte de nossos entusiasmos vem deste constante remendar. Diante da normalidade ficamos perplexos. O mundo inteiro vive assim. Haja guerra ou peste nas cidades: todos ficam alvoroçados e otimistas. Cada um sabe exatamente o que deve fazer e todos se empenham na tarefa comum de combater o mal. Dentro das casas, também, a vida só atinge uma alta vibração e só parece digna de ser vivida nos dias em que se declara uma tuberculose ou aparece uma goteira.
Cada flagelo traz uma atmosfera de bem-estar: basta ver como todos ficam contentes quando cai uma pancada de chuva ou surge um incêndio. Em cada sanatório são sonhados os melhores programas de vida.
No meio desse disparate eu tinha, evidentemente, consciência nítida do alto valor da normalidade, mas não sabia o que fazer com ela. Lembrei-me de uma conversa dias atrás, ouvida em roda de moços. Falavam em grandes feitos, em viagens maravilhosas e em espírito de aventura. Em menino gostei muito de Julio Verne e até agora simpatizava com os indivíduos que rompem bruscamente com o cotidianismo rotineiro para descobrir um pólo ou sondar as profundezas dum vulcão.
Mas depois desse exame de saúde fiquei pensando que o espírito de aventura existe porque as pessoas não sabem mais o que fazer com os dias normais. O sujeito que embarca para os mares da Polinésia é na verdade tão aventureiro como eu o seria em Campos do Jordão. Estaria apenas curando uma enfermidade diferente da minha.
O problema que se armava diante de mim era o de saber se existiria uma aventura positiva, uma extraordinária aventura em que todos os elementos fossem normais; uma viagem inaudita que fosse terminar num lugar muito conhecido onde eu fosse esperado; um brinquedo que valesse a pena brincar, mais do que a cutia ou o papagaio, e que eu pudesse, sem incongruência, praticar nos dias de meus quarenta anos, com a alegria, a gratuidade, a liberdade, a normalidade que tudo tinha, quando eu era pequenino, no fundo do meu quintal.
Se não existisse essa aventura, então, decididamente, os meus pulmões normais não serviriam para nada e a vida inteira seria um gracejo estúpido."
(A Descoberta do Outro, pgs. 67-69)
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