terça-feira, 1 de maio de 2007

:: senta que lá vem história... ::

(trabalho em papel do artista Peter Callesen.)


CONFISSÕES DE UM VICIADO EM ESCREVER


"Basta, no meu entender, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo."
(RILKE. Cartas a Um Jovem Poeta.)



As pessoas já me disseram muitas vezes, me achando muito esquisito, que eu escrevo textos enormes demais para uma pessoa que fala tão pouco... Uma ou outra pessoa já teve inclusive a cara-de-pau de me fazer aquela perguntinha tão ofensiva e que me deixa puto da vida: “Mas foi você mesmo que escreveu aquilo lá? Você?!” Dá vontade de socar a pessoa por sequer suspeitar que eu “não teria capacidade” – já que, se perguntam alguns, como é que pode um garoto assim tão calado se transformar de repente, quando se senta para escrever, numa criatura totalmente tagarela e verborrágica? Deve ter roubado o texto de alguém, só pode...

Muita gente já me disse que eu “sou dois”: sou uma pessoa escrevendo e outra pessoa, totalmente diferente, falando. Eu entendo porque possam sentir assim, mas me incomodo bastante com isso – porque eu sou um e um só, que diabo! Só acontece que é escrevendo que eu "me acho mais" (como diz o Amarante: "os dias que me vejo só são os dias que eu me encontro mais..."), é escrevendo que me sinto mais livre para dar vazão ao meu “eu”, é escrevendo que deixo as coisas transbordarem de verdade... E pra explicar um pouco do porquê disso acontecer, eu teria que contar grande parte da história da minha vida e de como nasceu e se desenvolveu o meu caso de amor com a escrita...

Frequentemente eu escrevo, é claro, com um certo público leitor em mente e me esforçando para, na medida do possível, agradar – o que é natural pra todo mundo que escreve, e eu não sou diferente (sou mesmo um menino carente que precisa sim se sentir valorizado, admirado, elogiado para não acabar se sentindo um completo nada imprestável). Mas a sensação que eu mais venho tendo ultimamente em relação à escrita é que seria muito mais importante, ao invés de escrever para agradar ou para “impressionar”, simplesmente ter como objetivo principal ser o mais franco e sincero que eu consigo ser – escrever não me preocupando muito se as pessoas vão gostar ou não, mas pelo menos sabendo que, ao me ler, vão me conhecer de verdade. Desde o começo desse blog, era essa a idéia – mas eu freqüentemente perco isso de vista, paro de escrever meus “textos confessionais” e acabo perdendo o caminho daquilo que mais me importa fazer, "existencialmente falando", através desse espaço aqui. Então senta que lá vem história...

Eu sou o tipo de pessoa que começa a passar mal se não puder escrever – sem brincadeira. Para onde quer que eu vá, gosto de levar comigo papel e caneta – qualquer viagem, não importa qual seja, levo isso na bagagem sempre - muitas vezes esquecendo o band-aid, o kit de primeiros socorros e o cantil de água. Porque pra mim poder escrever é algo fundamental para a minha saúde mental. Como me senti ligado e em comunhão com o Frusciante quando ouvi pela primeira vez ele cantar: “A paper and a pencil are the best friends I got...” Por tanto tempo, e tantas vezes, é exatamente isso que eu senti... A folha em branco à minha frente é a minha única companhia em tantas e tantas noites de solidão, a minha única confidente de tantos e tantos desabafos que eu não tenho pra quem dizer...

E às vezes eu me surpreendo a fazer a pergunta absurda: mas como é que as pessoas “normais” conseguem viver sem escrever? Não sentem, como eu, essa vontade imensa e essa necessidade insana de derramar a alma sobre o papel, de tirar de dentro tudo o que incomoda, angustia, fascina...? O que diabos as pessoas normais fazem com suas “almas”, se não escrevem?! Deixam tudo preso dentro delas, amordaçado, silenciado e reprimido? E como é que fazem para não explodir? Conseguem por acaso dizer tudo que querem, tudo o que precisam dizer, tudo o que basta para se sentirem perfeitamente desabafadas e purificadas?

Quando eu comecei a escrever pra valer, sem ser por obrigação escolar, mas por livre e espontânea vontade (e necessidade...), eu estava passando por uma das fases mais terrivelmente deprimentes da minha vida. E vocês sabem: ter 16 anos de idade costuma ser, por si só, algo pra lá de deprimente. Pior ainda se você ainda tem a péssima idéia de se apaixonar por uma colega de classe que, como é costume na minha vida, não parecia ligar a mínima pra mim e pra quem eu, é claro, nunca consegui “me declarar”. Foram maus tempos, aqueles... Infernais. Nunca flertei tanto com o suicídio quanto no meu terceiro colegial. Nunca amaldiçoei tanto o amor por existir e por ser uma invenção tão diabólica. Nunca sofri tanto quanto naquele ano: uma paixão secreta por uma menina que não me dava bola, uma quase completa falta de amigos de verdade com quem conversar, uma família que só me fazia sentir totalmente sozinho... As coisas estavam totalmente quebradas. Tudo quebrado.

E não sei bem porquê, em um dia qualquer daquele ano, o que deve ter acontecido foi que talvez a última gota de angústia que cabia em mim tenha caído e o meu copo provavelmente transbordou... e eu então eu tirei, não sei de onde, a idéia de que precisava correr ao papel, como quem corre a uma última esperança - ou como quem corre para um balde querendo vomitar... Eu precisava desabafar, urgentemente, e toneladas de material... Porque a angústia estava intolerável, a tristeza estava grande demais, o silêncio pesando mais do que eu podia suportar... E tive essa idéia desesperada de contar para uma folha de papel, em meio às lágrimas e soluços, tudo o que estava dentro de mim fazendo estrago feito um tornado... E foi assim que eu descobri um universo atrás da porta, uma dimensão paralela da realidade, um esconderijo seguro para onde eu sempre poderia fugir – como uma casinha na árvore onde eu sempre podia ir me refugiar quando as coisas no “mundo real” ficavam duras de suportar... Minha vida inteira ia começar a mudar depois desse primeiro dia em que vomitei milhares de palavras sobre uma folha de papel, dizendo tudo o que eu sempre quis falar e não tinha como nem pra quem. Eu nunca mais fui o mesmo.

Pra quem não sabe, eu fui um adolescente extremamente solitário, deprimido, calado e com intensas tendências suicidas. Principalmente durante o colegial, quando a coisa ficou preta mesmo, eu não tinha amigos de verdade (no máximo colegas de classe), não tinha namorada (só as imaginárias) e não saía pra baladas ou barzinhos nunca. CDF do jeito que eu era, só queria saber de me trancar em casa, na companhia dos meus filmes, discos e livros, usando o tempo que sobrava pra estudar (a duras penas...) para as provas e para o vestibular.

O mais estranho é que ninguém parecia se preocupar muito comigo – talvez não pudessem ver o tamanho da angústia e da confusão com que eu tinha que conviver diariamente aqui dentro... Exteriormente, talvez, tudo parecia muito bem. Eu era excelente aluno e nunca ficava de recuperação. Não fazia bagunça nem conversava nas aulas. Não usava drogas, não fumava, não bebia. Dormia cedo e levantava às 6 da madrugada sem chiar. Não desrespeitava pais ou professores e não fazia escândalo por nada. Não vestia roupas inadequadas nem fiz tatuagem ou piercing. Talvez por isso ninguém chegava a considerar seriamente que eu era um caso grave - apesar de ser claro que eu era um dos meninos mais tristes que o mundo já tinha visto a perambular sobre o planeta Terra.

Na época, eu tinha minhas dúvidas se algum dia eu iria conseguir sair da fossa ou se seria daqueles garotos inadaptados e incompreendidos que cedo na vida acabam ou no hospício, virando artista doidão, ou no cemitério, suicidado antes dos 25. Vão pensar que estou fazendo drama, e talvez esteja, um pouquinho... mas na época era assim que eu sentia, e com toda a seriedade (que eu tinha num nível doentiamente alto). Eu não tinha muito prazer em viver e não via o “sentido” de nada. Não sabia pra que eu tinha nascido, pra que servia viver, porque existia um Universo... Não tinha Deus, nem amigos, nem amores, nem nada...

Meus colegas de classe daquela época provavelmente não me viram sorrir mais do que uma meia dúzia de vezes durante os três anos de colegial – e a maioria deles talvez nunca ouviu a minha voz, de tão fechado e anti-social que eu era. Em casa, o diálogo familiar praticamente não existia (e se não existia nem diálogo, o que dizer de coisas como “amor” e “carinho”...!). Meus pais, na minha visão, não pareciam nem um pouco interessados em saber o que se passava comigo; na visão deles, eu é que não parecia nenhum um pouco interessado em contar... O silêncio e o completo desconhecimento mútuo é que reinavam.

O fato é que eu me sentia sozinho, completamente sozinho: ninguém com quem conversar, ninguém que me entendesse, ninguém que me amasse. A única coisa que me consolava era o rock and roll, as aulinhas de guitarra, os sonhos de um dia, quem sabe, ser alguém... E a única coisa que me salvava de afundar na mais completa depressão era com certeza a escrita – não tenho a mínima idéia do que eu teria me tornado sem ela... Tudo o que eu queria naqueles terríveis tempos da adolescência era suportar como podia aquelas aulas (chatérrimas, na maior parte do tempo...) e aqueles longos dias (sofridos, quase sempre...) - pra poder me trancar no quarto e derramar todas as minhas mágoas e raivas no Diário, ao som de Joy Division ou Nirvana, frequentemente junto a uma cachoeira de lágrimas que, durante o dia inteiro, tinham ficado reprimidas...

Depois que eu comecei a escrever meus desabafos, não consegui parar mais – até hoje. Obviamente, quando eu era mais jovem, orgulhoso que só eu, não revelava a ninguém meu segredinho sujo: que vergonha! Eu tinha um... um... um Diário! Ah, vocês não sabem... isso não era coisa que se admitisse! Eu tinha medo, claro, de ser caçoado pelos outros meninos, que obviamente acreditavam, segundo os preconceitos clássicos, que ter Diário era “coisa de menininha”; eu certamente seria acusado de ser um “boiola” ou um “frutinha”, para usar as gírias quentes da época, se admitisse que, voltando da escola, ao invés de me divertir folheando Playboys ou vendo luta livre na TV (divertimentos ideais para um adolescente macho de verdade!), eu ficava a escrever sobre minha vidinha e suas aflições no meu Diáriozinho... Ah, não, era inadmissível!...

Desde aquele tempo eu tenho essa sensação de que eu só estou vivo porque descobri que podia escrever. Tenho quase certeza de que teria ficado completamente louco se não pudesse escrever. Prefiro ficar sem pão e sem água, sem luz e sem gás, mas, por favor, me deixem escrever! E desde aquele tempo que eu considero a escrita como uma espécie de “centro” na minha vida, aquilo que dá um “sentido” pra ela, aquilo que mais importa, aquilo que tem pra mim o maior valor... É a minha tábua de salvação, o meu maior consolo e o meu remédio...

E eu não tenho nenhum medo de dizer que nenhuma outra coisa nesse Universo me fez tanto bem quanto escrever. Em certos dias críticos em que o desespero atinge o cume, por vezes você se senta para soltar o verbo para a folha em branco e descobre, no fim do processo, depois de uma longa e louca catarse, que sai todo transformado, purificado, quase novo... Como se tivesse mergulhado na Fonte da Rejuvenescência ou se tivesse tomado um mágico espinafre e, feito Popeye, sentindo as forças renascerem em turbilhão.. Ah, quantos êxtases! Quantas elevações! Quanta felicidade! A experiência de “purificação espiritual”, de “faxina interna” completa, de “catarse libertadora”, eu senti inúmeras vezes escrevendo meus desabafos. Aquilo que algumas pessoas talvez experimentem indo ao psicanalista e desembestando em confissões, aquela famosa “dissolução das neuroses” pela mera talking cure, eu devo ter conquistado – ou quase... – só escrevendo. Ela, a escrita, certamente me transformou profundamente, com o tempo, até se tornar algo inseparável de mim. Não sei mais viver sem escrever. Faz anos que não sei o que significa ficar uma semana inteira sem escrever. Seria como ficar uma semana sem tomar água, pessoal! Eu ia passar mal...

A maioria das pessoas iria certamente ficar boquiaberta e escandalizada se visse o tamanho desse meu Diário (vocês nem imaginam, povo...). Me diriam, talvez, com rosto severo e reprovador: “ei, mocinho, você não fez nada nessa tua vida além de escrever?” Pode até ser verdade: não fiz muita coisa na vida além de escrever sobre a vida, talvez; mas escrever sobre ela certamente me ajudou a viver melhor e a entender um pouco melhor quem diabos eu sou e o que demônios vim fazer nesse mundo. E vocês nem imaginam o quanto eu precisava... Foi o excesso de silêncio e o excesso de solidão que me fizeram exagerar na dose das minhas confissões – e elas jorravam e jorravam, e ainda jorram e jorram, sujando centenas de páginas... “Só mesmo uma pessoa muito solitária, que não tem muito com quem conversar sobre a vida, seria capaz de escrever tanto assim em seu Diário...” – tenho certeza que alguns vão pensar. E é verdade.

Não publiquei por aqui nem 5% de tudo o que eu escrevi. Um pouco por achar que não presta, um pouco por achar que são coisas pessoais e íntimas demais, um pouco porque é material que envolve outras pessoas - e eu não tenho certeza de que elas gostariam de saber de verdade o que sinto e penso sobre elas... Mas é principalmente por pudor e por insegurança para mostrar, sem disfarces e sem embelezamentos, quem eu sou. Ainda não consigo. Talvez, aos pouquinhos, eu vá publicando por aqui trechos seletos do Diário... Vamos ver se tomo coragem!...

* * * * *

Minha vida inteira, sempre tive muito mais facilidade de me expressar por escrito do que falando; sempre me senti muito mais à vontade pra falar sobre mim e pra me fazer entendido escrevendo; sempre senti que só era capaz de ser totalmente verdadeiro, genuíno e sincero escrevendo; só sinto que sou “eu mesmo” e totalmente eu mesmo quando estou esrevendo. Talvez por isso eu goste tanto do Persona, o filme do Bergman, no qual uma mulher simplesmente decide parar de falar ao perceber que praticamente tudo o que dizia era uma “mentira”, como se fosse dito por um personagem, por uma farsa... Me identifico demais com aquela personagem, a Elizabeth Vogler, e de certo modo eu penso ter passado por uns “transes” parecidos ao que ela experimenta no filme…

Porque falar, e principalmente falar daquilo que é mais importante, daquilo que vem mais lá do fundo e daquilo que mais precisa ser dito, é sempre muito difícil. Pelo menos é essa a minha experiência de vida – e eu confesso que invejo as pessoas capazes de fazerem confidências com a maior facilidade... A minha vida, pelo contrário, me mostrou repetidas vezes que é sempre fácil encontrarmos um monte de gente que está super disposta a tagarelar em nossos ouvidos, a contar intermináveis histórias e causos, a fazer altos desfiles de eloquência e oratória, mas quando queremos encontrar alguém que simplesmente nos ouça, alguém que empreste um ouvido compreensivo, alguém que se mostre interessado em saber e entender, alguém de alma aberta e disponível, que dificuldade! E que solidão...! Para o cargo tagarelar na nossa orelha sempre há dúzias de pretendentes; já pra nos ouvir com carinho e compreensão, quase sempre não há nenhum voluntário...

Acho que todo ser humano tem a tendência – é a lei do narcisismo que habita em cada um de nós... – a sentir mais vontade de falar sobre si, se expressar e se exibir do que simplesmente ouvir o outro e se disponibilizar a compreender (ou ao menos tentar...). Tanto é que muitos se vêem na necessidade de irem procurar no divã do psicanalista aquilo que não conseguem conquistar com as pessoas ao seu redor: alguém que as ouça. Sei que é um extremo reducionismo dizer isso de todo o complexíssimo mundo da psicanálise, mas o que eu acho é que, para a maioria de nós que vamos procurar “ajuda” profissional, o principal desejo é o de alguém que simplesmente esteja lá para calar a boca e ouvir. Compramos um ouvido que aguente os nossos desabafos – e são esses desabafos, talvez, a coisa que mais cura...

A maioria das pessoas é completamente incapaz de realmente ouvir o outro. Sem falar que a ternura é uma qualidade tão em baixa nos corações humanos hoje em dia... E a vida anda tão frenética e tão corrida que parece que ninguém tem tempo a “perder” com essas bobagens – tipo sentar pra ter uma conversa franca que não seja só “jogar conversa fora” e que transforme pra melhor as vidas dos conversadores, fortaleça os laços entre eles, permita um conhecimento mútuo profundo e uma intimidade digna desse nome... Como é difícil achar alguém em que dê pra confiar, que esteja disponível, que saiba e queira ouvir! Essa angústia o David Byrne expressou muito bem numa das músicas mais bonitas dos últimos anos:

To whom can i speak today?
The gentleness has perished
And the violent man has come down on everyone…

Death is in my sights today
Like when a man decides
To see home after many years in jail…


Falar é difícil mesmo quando há alguém que se ofereça para ouvir - talvez pela insegurança que temos em deixar que vejam nossa alma, permitir que notem defeitos e fraquezas, abrir as portas para a entrada de quem pode não gostar do que vai ver nos nossos corredores (que estão longe de ser parecidos com o de um museu... muito mais com uma casa assombrada!). Mas pra mim é uma convicção muito firme de que a fala costuma ser muito superficial e que a escrita, pelo contrário, tem uma tendência a ser mais profunda – ou pelo o potencial. Eu muitas vezes já tive a sensação de que não conheço uma pessoa de verdade antes de ler algo que ela escreveu – algo de íntimo, de preferência, ou algum esforço literário ou poético...

* * * * * *

Escrever é também uma excelente ferramenta para o auto-conhecimento. Se Sócrates (e tantos outros...) estava certo em grifar com tanta insistência a importância extrema dessa coisinha que nós tanto neglicenciamos, então escrever é também uma das coisas mais fundamentais que todo ser humano deveria fazer – pois só assim, talvez, dá para ir fundo numa jornada em busca de si mesmo. Alguma vez alguém já se descobriu de outro jeito que não escrevendo? Tenho minhas dúvidas...

O Gustavo Bernardo, num dos meus textos prediletos (“Espelho”), tem algumas frases inesquecíveis sobre esse assunto. Ele diz, por exemplo, que o ato de escrever, muitas vezes, nos diz o que estamos sentindo e nos torna conscientes do que está rolando no nosso “mundo interior”; como se nós não pudéssemos entender com clareza o que está acontecendo dentro de nós, como se não houvesse jeito de escapar da confusão e da desarmonia, sem o auxílio da escrita para nos organizar as coisas por dentro. Uma folha de diário não deixa de ser um “espelho” – você se descobre lendo aquilo que escreveu, como se pudesse finalmente “se olhar de fora”... Fica sabendo do que sente “pois o ato de escrever lhe disse”, como diz o Gustavo. Adoro isso: “o ato de escrever lhe disse...”

Escrever também é o melhor meio que conheço para “pensar na vida” - o que é uma das minhas atividades prediletas. Quando eu quero ou preciso pensar na vida, fazer um balanço das coisas, tomar decisões importantes ou simplesmente meditar e refletir, eu não costumo ficar sentado na rede olhando a paisagem ou passeando pelo bosque; eu me sento para escrever. Pois escrever te obriga a refletir. Escrever te obriga a visitar o passado - não só para pescar na memória as palavras e as regras gramaticais, mas também para tirar da experiência o material para a escrita. Escrever te obriga a dar de cara com desejos e sonhos – pois ninguém escreve com o desejo completamente silente! Tudo o que se escreve, mesmo o tratado científico aparentemente mais frio, tem desejo por trás – mesmo que tenha sido o desejo de parecer totalmente frio...

Sei muito bem que também tem muita vaidade e muito exibicionismo nisso de escrever. Não são poucas as pessoas que escrevem somente para mostrar aos outros quão bem elas sabem construir frases, com que correção seguem as regras de gramática e ortografia, que abundância de vocábulos esdrúxulos possuem em seu vocabulário... Eu, claro, sei que não estou imune a isso e já devo ter escrito dezenas de páginas em que eu não faço muita coisa a não ser “ficar me mostrando”. Muito escritor famoso por aí não passa de um “gabarola”. Essa é a principal tentação diabólica que ameaça qualquer escritor: a tentação de usar a escrita como um mero instrumento para a ostentação de “técnica” e virtuosismo. Contra isso convêm se precaver. Mas nem sempre conseguimos...

* * * * *

A obsessão com a escrita, pra mim, também tem tudo a ver com a imensa e incurável angústia que mora permanentemente (apesar de eu já ter tentado expulsá-la a pontapés) no meu peito – sem pagar aluguel. Porque a escrita é também um modo de lutar contra a morte e a passagem do tempo destruidor... Usamos a escrita para eternizar os momentos efêmeros, para ter um registro permanente de acontecimentos e estados de alma (que passam rápido como as nuvens), para fixar nossas lembranças fora de nossos cérebros perecíveis, para colocar para fora tudo o que se passa em termos de sentimentos e idéias dentro do nosso corpo condenado a perecer... Sem a escrita, é como se tivéssemos vivido em vão. Todas as pessoas que viveram antes de nós e que não deixaram nada escrito, sobre quem ninguém escreveu, são como se não tivessem existido...

Minha série de TV predileta (e queridíssima), A Sete Palmos, tem dúzias de momentos memoráveis e brilhantes, mas um desses momentos que mais me marcou acontece logo no começo da primeira temporada. O Nate, o filho mais velho da família Fisher, que perdeu o pai há pouco tempo, começa a descobrir, em efeito dominó, uma série de segredos que seu falecido pai havia escondido da família por décadas e décadas: descobre que o pai fumava e comercializava maconha; que recebia pagamentos estranhos em outras mercadorias que não dinheiro vivo; que era dono de um mini-apartamento clandestino, lotado de discos de vinil e garrafas de bebida; que provavelmente tinha amantes que levava ali - ou mesmo que se entretinha, vez ou outra, com prostitutas...

Ele, Nate, fica compreensivelmente pasmo ao notar que tinha vivido na mesma casa que o pai por uns 30 anos, convivendo e conversando com ele todos os dias, dividindo a mesma mesa para almoço, janta e café-da-manhã, viajando no mesmo carro todo santo dia, para descobrir de supetão, depois do funeral do seu velho, uma verdade cruel: não tinha conhecido muita coisa sobre ele. E Nate não tem certeza se foi por negligência e desinteresse de sua parte, ou se foi pelo talento e obsessão do pai em se ocultar, se esquivar e manter todos os seus segredos muito bem escondidos...

O fato é que a morte varre desde mundo o velho Nathaniel Fisher Sr. e o filho descobre, aflito e angustiado, a cruel verdade: fomos, toda a vida, completos desconhecidos; vivíamos na mesma casa, mas parecíamos estrangeiros dividindo a mesma cela de prisão no exílio; trocamos muitas palavras, mas nem eu vi de verdade a alma dele, nem ele viu de verdade a minha...

Mas o que eu mais gosto é do que ele diz para a Brenda, a namorada dele, logo depois de se sentir horrorizado ao descobrir que a vida do pai tinha se acabado e os dois não tinham se conhecido:

- Eu não quero ser alguém que morre sem que ninguém tenha me conhecido...

E eu gosto ainda mais da simplicidade e da sabedoria com que a Brenda lhe responde, como se fosse a coisa mais fácil do mundo:

- Então não seja.

Pra mim, a escrita, além de ferramenta para o auto-conhecimento, é obviamente uma das ferramentas mais importantes para que os homens possam se conhecer uns aos outros de verdade, para que cada um possa saber o que se passa no mais secreto dos outros, para que sentimentos e pensamentos possam ser transmitidos... Tudo isso pode parecer muito óbvio, e é mesmo. Mas dizer o óbvio tem me parecido até bastante útil e reconfortador. Sobre o óbvio podemos concordar com a maior tranquilidade – e eu estou sinceramente cansado de tanta discórdia...!

Se eu não pudesse escrever, suspeito do terrível: ninguém neste mundo iria realmente me conhecer. Pode até ser que, mesmo hoje, tendo escrito tanto, ainda não haja ninguém neste mundo que realmente me conheça – mas talvez seja porque ainda não consegui ser totalmente sincero. Não acabei de confessar, aliás, que 90% do meu Diário continua secreto, escondido nas gavetas da minha H.D.? Então não tenho mesmo muito direito a reclamar: seria conhecido se me desse a conhecer – e isso vou aprendendo a fazer muito aos poucos, a passinhos de tartaruga – mas vou.

Sei também que, com certeza, mesmo que eu escreva a vida toda, e todos os dias da minha vida, nem assim direi tudo. Não vou conseguir acessar as camadas mais profundas e mais escondidas, os cantos mais escuros dos meus porões e tocas... Porque ninguém conhece ninguém por inteiro – nenhum filho conhece sua mãe ou pai por inteiro (e vice-versa), nenhuma esposa conhece o marido por inteiro, nenhum amigo conhece o amigo por inteiro... Há sempre, em cada pessoa que a gente conhece (ou pensa conhecer...), algo que permanece no escuro, algo que continua um mistério – e isso não é “trágico”, pelo contrário, é o que põe tempero na vida e nos relacionamentos! Há sempre algo a descobrir, sempre véus a desvelar, sempre segredos a desenterrar...

Preciso dela para expressar tudo aquilo que não posso dizer e, ao mesmo tempo, não suportaria calar. Porque eu me encho de angústia até o teto só de pensar que vou morrer sem que tenha “transmitido minha vida” para alguém – e não estou falando de filhos, que é um modo de fazer isso; estou falando muito mais de tentar tornar acessível para os outros minha experiência de vida, meus pensamentos, meus sentimentos, todo o meu mundo interior... Me pergunto como é que as pessoas em geral conseguem viver sem sentirem essa extrema necessidade de deixarem registradas as coisas que se passam – principalmente as coisas que acontecem dentro delas! Para as coisas lá de fora temos os jornalistas e os historiadores, que farão por nós o trabalho de registro e relato! Mas para as de dentro... cada um está sozinho consigo. Temos que ser biógrafos e historiadores de nós mesmos se não quisermos cair no completo esquecimento.

Será que as pessoas em geral não sentem necessidade de escrever por causa da cegueira que as impede de ver de verdade a morte? Será que é a crença na imortalidade da alma que ajuda as pessoas a pensarem que “nada será perdido” com a morte? Será que são todos tapados ao ponto de não tomarem consciência nunca de que vamos todos morrer? E não notam que tudo que a gente mantêm dentro da gente é como madeira guardada numa casa que está condenada a pegar fogo? “Do you realize everyone you know someday will die?”, canta o Flaming Lips, e eu sinto que não: oh, no, they don’t realize

Já o meu ateísmo não me permite ser tão otimista. Creio, infelizmente (e eu adoraria acreditar em outra coisa, eu juro, mas eu simplesmente não consigo...), que TUDO se perderá quando eu morrer. Todas as minhas memórias, todos os meus sonhos, tudo o que aprendi e acumulei, todas as “imagens” das pessoas que conheci, tudo o que senti e pensei, tudo isso vai virar nada quando meu cérebro parar de funcionar e começar a ser comido por vermes e formigas. E eu acho que eu explodiria de angústia se não escrevesse e se não sentisse que, através da escrita, estou salvando pedaços de mim da morte e deixando-os aí, no mundo, para os outros – torcendo para que, talvez, eles sejam de alguma valia para alguém...

Eu sou uma espécie de navio que está naufragando, cheio de passageiros, e preciso o mais rápido possível colocar o povo nos botes e levá-los para a praia mais próxima... Todos nós somos navios que estão naufragando - só que muitos de nós não sabemos disso... Cada dia que passa damos um passo a mais rumo à morte. Cada dia que passa é um balde d’água jogado no nosso navio, que vai se enchendo e enchendo, afundando e afundando... E eu sinto uma ansiedade insana de tentar salvar o máximo possível de “viajantes” (que são meus pensamentos, sentimentos, teorias, memórias, sonhos, bobagens...) enquanto a água não recobre tudo. Preciso escrever, e preciso disso mais que tudo. Porque, como o Nate, eu não quero ser alguém que morre sem que ninguém tenha me conhecido. (“So don’t be!”...)