quinta-feira, 3 de abril de 2008

:: let 'em in on your secret heart ::


AULA (POÉTICA) DE ANATOMIA CARDÍACA


"conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?"
(ana cristina césar. a teus pés.)


Então sim, os amores galoparam sobre mim, eles e sua legião diabólica de desencantos e dores, e galoparam também sobre o coração, claro, ele que está em toda parte para quem, como eu, tem a Síndrome de Maiakavósvki (é assim nosso delirium tremens: "em mim a anatomia ficou louca!... meu coração não tem domicílio no peito!... em todas as partes palpita!"...). Muito se apagou, muito se quebrou, muito nunca mais vai ser o mesmo (ah, a inocência perdida, que nunca que será reencontrada...), mas algo, teimoso, obstinado, permanece pulsando, forte e sempre. No tórax, uma luz que nunca se apaga, um esplêndido pedaço de carne que não se deixa transformar em pedra, um animal incrível que sempre se regenera...

Então você acaba de adicionar mais um heartbreak à sua coleção? No big deal. A quantidade de fraturas que você teve que suportar ainda é baixa e humilde em comparação com a de muita gente que conheço e que de fato se tacou no bungee jump do amor sem saber se a corda aguentava o peso. A gente nunca sabe se aguenta, mas ainda assim se taca. É a mais sábia das loucuras. Se se espatifar no chão, tenta se levantar, mesmo que seja pra sentar na cadeira de rodas. Se o tombo for leve, a gente sobe de novo, na ignorância de novo, e se taca de novo. E ainda está pra nascer homem que só tenha tido sucessos in the matters of the heart.

O que eu acho é que quem nunca teve o coração quebrado foi por ter sempre protegido o coiso com uma cautela exagerada, resguardando detrás de fortalezas inexpugnáveis esse tão valioso órgão, nem suspeitando que Cautela Demais é um Grande Perigo. Pois há sempre o perigo de acabar por fazê-lo apodrecer detrás das grades por falta de uso. Pois coração também enferruja e, se existe, existe para ser usado até o abuso. Tenhamos dó de quem o põe detrás dum vidro à prova de balas!... ou dentro dum cofre, daqueles de banco de grão-fino em paraíso fiscal, à prova até de canhão e caminhão de demolição!... Quem nunca teve o coração quebrado nunca o usou de verdade - e esse não viveu. Vinícius já dizia. Tenhamos dó, muita dó, dos pobres seres que nunca quebraram o coração!

* * * * *

Criança que sai na rua pra brincar se suja, rasga o joelho, quebra osso, arruma briga, aceita bala de estranhos, não faz lição de casa, adquire maus hábitos, aprende novos palavrões, fica à mercê de trombadinhas e corre risco de vida - coisa i-na-cei-tá-vel!, dizem os pais mais protecionistas, aqueles que querem proteger os filhos até da Vida, esse Bicho Papão, que às vezes até mata. Mas não fazer isso equivaleria a não viver, coisa que acho mais inaceitável ainda. Conselho pedagógico, aos pais que somos todos nós, ao menos de nossos corações (que nunca nos obecedem direito, como todo filho): deixem vossos filhotes saírem para brincar! Eles voltarão pra casa imundos, encardidos, machucados, precisando de band-aid, mertiolate e até quem sabe gesso, mas deixem!

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Formidável esse músculo, formidável!

Uma bomba incansável que teima em manter o rio de sangue correndo pelas avenidas das veias, sem fim-de-semana, sem férias, sem descanso. Se ele se decide a tirar um cochilozinho, por mínimo que seja ("só cinco minutinhos!", suplica ele, bocejando!), a gente entraria em pane e ia ser blackout na nossa cidade toda. Se a gente tem a sorte de estar rodeado de médicos, numa mesa de U.T.I., quando ele decide entrar em greve, os salvadores, esbaforidos, vão pular em cima do nosso tórax para redespertá-lo no choque, na marra, o mais rápido possível, como quem dá uns tapas e uns tabefes na cara do motorista de ônibus que ameaçou pegar no sono e despejar todos os passageiros, e ele inclusive, no abismo...

Formidável bomba-relógio, que não há quem consiga desarmar na maior marmelada, como é nos filmes hollywoodianos de bomba... Cada sístole e cada diástole é um tic, é um tac, é um grão de areia que cai do compartimento de cima da ampulheta, é um mililitro a menos de combustível que essa máquina tem para queimar...

Formidável órgão, com uma capacidade quase infinita para a estupidez... E uma miopia sempre imensa, que não há óculos ou lente de contato já inventados que resolva... Condição de cegueta que o faz tropeçar vezes sem conta nas pedras do caminho - e ele se levanta, sempre, depois de cada tombo. Às vezes se engessa, se recolhe, fica de molho. Toma até a resolução de não sair mais pra rua, não ficar exposto ao Sol sem protetor, não sair mais em odisséias em busca do Cálice Dourado. Tem seus desânimos e seus momentos em que se põe a cantar, desiludido: "Hoje tenho apenas uma pedra no meu peito / Exijo respeito, não sou mais um sonhador / Chego a mudar de calçada ao encontrar uma flor / E dou risada do grande amor". E mal ele acaba de cantar esse estribilho tão amargo, em que garante ao mundo que desistiu, e acaba sempre exclamando, como última palavra, "mentira!" E sai de novo, sempre acompanhado de seus olhos míopes e sua infinita capacidade para a imbecilidade, em busca do tal do grande amor que lhe disseram que existia. E que ele, idiota, acreditou.

Formidável órgão que, como uma estrela-do-mar, depois de ter um membro seu decepado, sempre se regenera. E quando se estilhaça, consegue se reconstruir de tal modo que um observador desatento nem nota que ele é um puzzle de cacos. Por mais que envelheça, sempre consegue voltar a ser como novo.

E tudo isso não impede que o coração se quebre sempre como se nunca tivesse se quebrado antes. Sempre dói como se fosse a primeira vez.

Quando ele funciona direito, o impacto da vida é maior: as alegrias mais intensas, as dores mais terríveis, os dilaceramentos mais extremos, as lágrimas e os risos sempre com tendência ao exagero. Mas agradecemos, mesmo que doa, pois nos sentimos viver.

Formidável órgão que continua trabalhando mesmo que não tenha se alimentado em muito tempo - anos até! Inexiste no mundo natural ou sobrenatural algo que sobreviva a tão prolongada subnutrição. Em tempos de fome, ele se alimenta da esperança dos frutos futuros e trabalha no plantio de novos pomares. Como pode tanta paciência e tanta inquietude coexistir na mesma criatura?

* * * * *

(Formidável criança louca e faminta,
cuja brincadeira predileta é a cabra-cega,
que sempre ama alguém que é ótimo no esconde-esconde,
que fica indo e voltando, aos pulos ridículos, na amarelinha,
sem nunca chegar ao Paraíso,
que fica oscilando entre o se erguer e o se deitar
feito um joão-bobo que tomou um soco na cara.
que às vezes fica acuado num canto, preocupadíssimo,
como um rei ameaçado de xeque-mate.
que é chutado pra cima e pra baixo por chuteiras descuidadas
sem nunca balançar as redes, para delírio das massas
[oh girl, stop kicking my heart around!]
que finge querer um tranquilo passeio de pedalinho,
mas se excita até a loucura nos loopings
e mergulhos no abismo d'uma montanha-russa.
que fica tempo demais com os braços estendidos
- em vão - no pega-pega.
que é quem mais se arde com a bolada da queimada.

e que, confessemos sem pudor,
também tem vontade de brincar no trepa-trepa.)

* * * * * *

Formidável músculo estúpido e tão sábio, que vive o tempo inteiro no escuro, no quarto sem janelas do tórax, onde nunca bate Sol... É só a pele, os olhos, os lábios, que se banham na luz; ele não! Escondido detrás de um muro opaco de carne e ossos, trabalha sempre nas trevas. Não é surpresa que enxergue tão mal. Toupeira dos subterrâneos, batendo na cegueira, esse é o coração - que só vêm à tona quando morre, arrancado numa autópsia...

Por causa dessa vida reclusa que leva, escondido no breu, não é bem visto pelas pessoas lá fora. As cicatrizes que têm marcando sua pele são invisíveis; os ganidos que solta, inaudíveis; o ronco de fome, silencioso. Só consegue se fazer ouvir pedindo auxílio ao pulmão que suspira ou grita, aos olhos que brilham ou choram, à boca que pede, suplica ou doa, à mão que o transcreve e o traduz... Mas, deixado só, com suas próprias forças, ele não saberia se dizer. Precisa virar poema, canção, carta de amor, prece, gemido, o que for. Mas nunca sai de verdade da cela apertada do peito. Por isso, talvez, a vida tenha, tantas vezes, esse gosto de solidão.

* * * * *

O coração é sempre o aluno retardado da sala, que sempre reprova nos exames, que está sempre tomando bronca do professor, que dá provas em excesso de mau-comportamento, insubmissão, inquietude, efervescência. É o que é mandado para o gabiente do diretor pra tomar advertência com mais frequência, o que mais fica com nariz-de-burro no canto da sala, aquele que mais serve de alvo para as cantigas sarcásticas que fazem a alegria da molecada:

"não sabe, não sabe,
vai ter que aprender!
orelha-de-burro,
cabeça de e.t.!"

De toda a turma caótica de alunos, é sempre diagnosticado pelos Vigilantes da Normalidade como hiper-ativo, insano e psicopata. Recomendam internação ou medicamentos. Ele não aprende fácil, insiste nos mesmos erros, desliza na matemática mais simples, deixa o raciocínio deslizar para a fantasia, perde o fio da meada caindo em devaneios, se debate contra toda e qualquer camisa-de-força que queiram lhe meter. É um rebelde nato e o pai de todas as rebeliões e de todas as indignações.

Por mais que o corpo que lhe serve de hotel envelheça (e por vezes o gerente se revolta contra esse hóspede arruaceiro e barulhento que mora no quarto esquerdo do andar toráxico e age no seu dormitório como fazem os rock-stars em seus camarins - caótica e destrutivamente!), o coração, no fundo, permanece criança. O mundo o chama para o trabalho, o estudo, a produção, a linha de montagem, o ser-útil, e ele se recusa - só quer saber de brincadeira, de alegria, de amor, da gratuidade do curtir a vida. Por trás de tudo, por mais que se finja forte e maduro, o coração continua sempre com desejos de criança e só aceita engolir a vida se ela for um fruto que vier com gosto de infância.

O coração é essencialmente infantil. Adultecê-lo é matá-lo.