terça-feira, 8 de abril de 2008

:: "era uma estrutura querida..." ::


“Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convêm ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo Esse?” (14)

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“Há duas afirmações do amor. Primeiro, quando o apaixonado encontra o outro, há afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, projeção louca de um futuro realizado: sou devorado pelo desejo, a impulsão de ser feliz): digo SIM a tudo (me tornando cego). Segue-se um longo túnel: meu primeiro SIM é roído pelas dúvidas, o VALOR amoroso é a todo instante ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, a ascensão do ressentimento e da oblação.” (18)

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"É meu desejo que desejo, e o ser amado nada mais é que seu agente. (...) E se chegar o dia em que eu tiver que decidir renunciar ao outro, o luto violento que toma conta de mim então é o luto do próprio Imaginário (era uma estrutura querida), e choro a perda do amor, não de fulano ou fulana.” (23)

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“O outro vive em eterno estado de partida, de viagem; ele é, por vocação, migrador; quanto a mim, que amo, sou por vocação inversa sedentário, imóvel, disponível, à espera, fincado no lugar, não resgatado como um embrulho num canto qualquer da estação.” (27)

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“No encontro, fico maravilhado de ter achado alguém que, por sucessivos e sempre bem-sucedidos toques, sem fraquejar, acaba o quadro da minha fantasia; sou como um jogador cuja sorte se confirma fazendo com que ele pegue na primeira tentativa o pedacinho que vem completar o quebra-cabeça do seu desejo.” (85)

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“Se tenho tantas maneiras de chorar, é porque, talvez, quando choro, me dirijo sempre a alguém, e o destinatário das minhas lágrimas não é sempre o mesmo: adapto minhas maneiras de chorar ao tipo de chantagem que pretendo exercer ao meu redor através das lágrimas. Ao chorar, quero impressionar alguém, pressioná-lo ('Veja o que você faz de mim'). Talvez seja – e geralmente é – o outro que se quer obrigar desse modo a assumir abertamente sua comiseração ou sua insensibilidade; mas talvez seja também eu mesmo: me faço chorar para me provar que minha dor não é uma ilusão...” (42)

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“Na vida amorosa, a rede dos incidentes é de uma incrível futilidade, e essa futilidade, aliada à maior das seriedades, é até inconveniente. Quando penso seriamente em me suicidar por causa de um telefonema que não acontece, se produz uma obscenidade tão grande como quando, em Sade, o papa sodomiza um peru. Mas a obscenidade sentimental é menos estranha, e é isso que a torna mais abjeta; nada pode suplantar a inconveniência de um sujeito que se desmancha porque seu outro parece distante, 'enquanto há ainda no mundo tantos homens que morrem de fome, e tantos povos que lutam duramente pela sua libertação, etc.”. (159)

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“Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, e porque me deixo dominar por uma banalidade. Sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.” (47)

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“Não ficarei, talvez, afinal de contas, suspenso nessa pergunta cuja resposta procuro incansavelmente no rosto do outro: o que é que eu valho?”


(ROLAND BARTHES, Fragmentos de Um Discurso Amoroso)