Justo no Domingo, após uma dura semana de aulas, ser obrigado a acordar às sete da madrugada!? Tortura! Eu não queria! Mas era exigido pelas forças superiores do Universo a agarrar a cadernetinha de presenças e correr pra Igreja, onde iria ouvir com sono e remelas nos olhos o lenga-lenga do padre, segurando aquele jornalzinho que dava vontade de espirrar, naquele ritual estranho, cheio daquelas latinagens incompreensíveis, daqueles améns em coro, daquelas cantorias piegas todas... Ah, a vontade que dava era de fazer corpo-mole, inventar alguma falsa doença, fingir desmaio na cama, ou mesmo espernear: “ah nããão, mãe! Não quero!”
Sorte deles que não fui criança de dar escândalo, nem de reclamar muito dos fardos que me punham sobre os ombros - desde cedo, demonstrei alto talento para a resignação. Tinha sido informado por fontes muito confiáveis de que quem faltava à missa nos Domingos corria o risco de ir parar no inferno – ou, pelo menos, se insistisse em não comparecer à casa do Senhor no dia adequado, perigava repetir de ano no catecismo. Eu não sabia o que era pior, tamanha a semelhança entre as penas: se era o inferno, se era repetir de ano no catecismo... Então ia – mesmo que fosse cambaleando de sono, amaldiçoando toda a Criação, mas ia!
Eu devia ter o quê? Uns 10, 11 anos de idade? Por aí. Sendo o filho mais velho da família, aquele que deveria ser o exemplo supremo para os outros que viriam a seguir, eu tinha que ser posto no bom caminho. Tinha chegado a hora de eu entrar oficialmente na minha jornada em direção ao Paraíso, que começava com o catecismo, seguia com a crisma e se consumava depois com o casamento imaculado, monogâmico e até-que-a-morte-nos-separasse... Eu seria um garoto-modelo. Obviamente eu não pedi nada disso (alguma criança é louca o suficiente pra pedir pra ir pro catecismo?!), mas meus pais devem ter achado que era “bom pra mim” ter minha educação religiosa iniciada bem cedo na vida. Sábia escolha! Antes que minha razão se formasse devidamente e eu começasse a me tornar capaz de questionar tudo o que iriam despejar no meu pobre cérebro ingênuo, me puseram lá. Todo mundo ao meu redor – pai e mãe, vó e vô, tios e tias, todos os adultos super sabidos... - me garantiam que era fundamental, essencial e vital passar por esse processo. E quem era eu para duvidar? Fui matriculado então na igreja de Rudge Ramos, São Bernardo do Campo, pertinho de casa. Alguns quarteirões andados e eu já estava naquela ruidosa praça lotada de pombos em alvoroço, carrinhos de pipoca e alguns mendigos, onde ficava o templo onde eu daria meu primeiro aperto de mãos oficial com o Cara Mais Importante do Universo.
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A natureza das minhas relações com o bom Deus, que aliás era conhecido por mim pelo carinhoso apelido de Papai-do-Céu, foram por muitos anos bastante harmoniosas. Se eu me lembro bem, eu imaginava a coisa sim: o Cara Mais Poderoso do Pedaço ficava lá em cima, sentado majestosamente numa espécie de trono acima das nuvens, todo brilhoso e dourado, e Seu Imenso Olho ficava espiando cada um dos meus atos, palavras e pensamentos. Ele era como um detetive contratado 24hrs para ficar no meu rastro e não me deixar sair da boa linha – e ficava ali, com o caderninho em mãos, anotando faltas e acertos, levantando ou abaixando o polegar para minhas atitudes, fazendo suas contas para ver se me aprovava ou não na prova, afinal de contas.
Eu tinha certeza que vivia num mundo onde o Cara Lá Em Cima era um juiz severo que intervinha no jogo apitando seu divino apito, levantando cartões amarelos e vermelhos e dando suas broncas disciplinatórias. Minha vó e minha mãe tinham me convencido da Verdade Absoluta: Deus castiga!
Cheguei a comprovar empiricamente que Deus, de fato, castigava. Era tiro e queda: era só eu fazer alguma pequena maldade, contar uma pequena mentira, cometer qualquer pequeno deslize, que o castigo divino vinha a galope. Era só eu pensar na vontade que eu tinha de matar de pancada algum brutamontes lá da escola que, alguns passos à frente, ia com certeza tropeçar numa pedra e esborrachar meu joelho no chão. Era só desejar algo de mal para o meu irmãozinho que poucos passos à frente eu já dava de cara com um poste. Deus nem tardava nem falhava. Justiceiro exemplar! Até os crimes de pensamento e de vontade, que pessoa nenhuma ficava sabendo, ele descobria com o olhar raio-X de Super-Poderoso Dele... Nowhere to run, nowhere to hide.
Eu tinha, pois, que ser um bom menino, obediente, estudioso e que não fala palavrão - porque senão ia tomar umas chineladas divinas bem ardidas. Se fizesse porcarias demais, o Cara Lá em Cima (que num era brincadeira não!) ia me botar de castigo num lugar subterrâneo cheio de lava, espinhos e câmaras de tortura, onde eu seria assado num espeto com um frango depenado, para todo o sempre. Deus era do Bem, sim, mas tinha lá seus requintes de crueldade! Era de dar medo.
De bicho-papão e de fantasma eu nunca tive muito cagaço, mas de Deus... ô se sim! Anos depois, quando reconheci toda essa história só como um conto de terror que tinham inventado pra me assustar, comecei a achar de uma crueldade imensa esse terrorismo dos adultos ao nos transmitirem esses belos princípios do santo cristianismo... E depois eles não entendem porque nós, pobres crianças lobotomizadas por essa lindíssima doutrina, temos pesadelos, insônias e ataques de pânico! Um Deus desses, que tem um baita dum Parque de Diversões para Exercício Pleno e Impune de Sua Maldade, com mil e uma formas de torturar e machucar as ovelhas que se desgarram do rebanho, é de meter medo em qualquer um! Na época, porém, eu provavelmente achava que de algum modo misterioso o Cara estava certo e que era melhor não questionar nada – até porque questionar demais também estava na tábua de coisas proibidas que levariam à minha condenação.
Mas Deus também era um Ouvido sempre aberto para ouvir minhas lamúrias, pedidos, súplicas e dúvidas. Um interlocutor com quem eu podia conversar sobre tudo. Um amigo imaginário para quem inexistiam segredos. Uma força protetora e benéfica que garantia que, no fim, tudo ficaria bem. Claro que eu tinha decorado o Pai Nosso (que está no céu, santificado seja o vosso nome...) e a Ave Maria (cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito o fruto de vosso ventre, Jesus...) Era obrigado. Obrigadíssimo. No catecismo, quem fosse pego em silêncio na hora das orações em conjunto, ou quem errasse um verso, destoando do grupo, tomava uma bronca daquelas da Tia. Mas não gostava de papaguear essas frases decoradas. Gostava era das minhas conversas com Deus e de me convencer que estava sendo ouvido por alguém infinitamente compreensivo.
E toda noite, antes de dormir, conversava com o Cara Mais Fodão do Cosmos, para que ele continuasse simpatizando comigo e me favorecendo - isso depois de cumprir as minhas obrigações e declamar as decorebas nos ouvidos do bom Deus. Que, eu imaginava, devia estar um tanto enjoado de ficar ouvindo aquela mesma arenga, todo santo dia, da boca de milhões de pessoas, há pelo menos dois milênios... “como é que ele aguenta?”, eu me perguntava... “É como ouvir a mesma música mil vezes por dia, por 2.000 mil anos – e uma música muito ruim, ainda por cima!”
A resposta era clara: não só a potência, a bondade, a generosidade e quantidade de instrumentos de tortura que Deus tinha inventado para o Inferno eram infinitos. A paciência de Deus era igualmente infinita. Porque haja paciência para suportar todo esse bando de homenzinhos toscos, dia após dia, implorando por mil coisas ridículas para suas vidinhas minúsculas! Papai Noel não sabia o que era encheção de saco, pois só no fim-de-ano começava a ser incomodado no seu idílio gelado no Pólo Norte com milhões de cartas das pessoas, mas Deus, coitado, todo dia tinha milhões de mendigos puxando a calça dele e pedindo presentinhos... Ê trabalho desagradável!
Eu nunca fui um garoto materialista. Ou pelo menos escondia esse meu lado de Deus, para que ele não visse com maus olhos e não fizesse aquela Cara Brava Dele que eu tão bem conhecia - acreditando, bobo que só eu, que de Deus dava pra esconder algo. Então nas minhas rezas noturnas nunca pedi a Deus um Mega Drive pra substituir meu Master System, nunca pedi um novo cartucho de Fórmula 1 ou a nova versão do Fifa Soccer, um novo bonequinho dos Cavaleiros do Zodíaco ou mais um brinquedo pra coleção de Comandos em Ação ou de carrinhos de controle remoto... Essas coisas eu deixava para pedir ao Papai Noel, que era mais generoso com nossos ímpetos consumistas e tinha mais vontade de auxiliar o desenvolvimento do Capitalismo do que o seu chefe Papai do Céu.
O que eu pedia? Não me lembro tão bem assim, mas talvez isso: que minha mãe e meu pai não morressem de repente num acidente de carro, numa explosão ou de alguma doença louca, porque aí eu ia ficar sozinho no mundo e ia muito muito triste; que nenhum bandido entrasse em casa pra roubar nossa TV, videocassete, videogame e a minha arduamente conquistada coleção de desenhos da Disney (Alladin, O Rei Leão, A Bela e a Fera, O Corcunda de Notre Dame...); que a Natália começasse a reparar em mim e no meu olhar tão distante e tão apaixonado - e que o Lulinha não ficasse puto da vida comigo quando descobrisse que eu estava paquerando a irmã menor dele (ela era uma gracinha!)... Coisas assim.
Tudo ia muito bem comigo, segundo a opinião de todos, inclusive do Bom Senhor. Eu realmente não gostava do catecismo, e odiei ter que ir à Igreja duas vezes por semana no segundo (e último) ano do meu treinamento para o exército cristão – uma vez por semana e mais a missa dos domingos já não tava de bom tamanho não?! Também não fiz nenhum grande amigo lá, até porque conversar na aula era terminantemente proibido e qualquer brincadeirinha mínima era reprimida como se estivesse escrito na Bíblia que Deus odeia toda e qualquer piada e que ser alegre é proibidíssimo.
Dentro de uma igreja, sempre me senti como se ser alegre fosse um delito seríssimo. Sorrir não podia. Gargalhar então... faria com que se abrisse um buraco no chão e eu fosse sugado direto para o reino de Satanás. Eles estavam nos treinando para sermos seríssimos, graves como um túmulo, sem nenhuma ironia, nenhum sarcasmo, donos de uma devoção totalmente pura e carrancuda. A gente não estava ali para ser feliz, para fazer amiguinhos, para se “divertir”, claro que não! Estava ali sendo convidado a admirar um tal de Jesus Cristo que, segundo as historinhas que nos contavam, era o filhão de Deus que tinha sofrido para redimir os pecados da humanidade, e nós deveríamos sofrer como ele, carregar como ele a nossa cruz, nossa coroa de espinhos, arrastando pela Terra uma infelicidade perpétua, adoçada pela esperança de uma outra vida, bem melhor, que começaria depois, no além-tumúlo, se a gente merecesse...
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Já contei que eu estava matriculado numa igreja pertinho de onde eu morava na época, no Rudge Ramos, São Bernardo no Campo, terra de origem do nosso futuro presidente Lula. Naquela época, eu ainda era um pivetinho, que nunca tinha sido muito de jogar bola ou taco na rua com os vizinhos, e não tinha muita experiência de andar sozinho por aí - até porque minha mãe, paranóica como costumam ser as mães, achava perigoso. A gente morava numa quarteirão não muito bonito na Rua Brasil, que já tinha todo um histórico de assaltos e sujeitos mau-encarados rondando por ali. Mas minha mãe achou que eu já estava bem grandinho e, já que era pertinho de casa a igreja, eu podia ir sozinho: tava na hora de eu começar a me virar mais, sem pedir carona toda hora, até pra ir na banca de jornal ou na videolocadora... Aliás, como vivemos num Cosmos organizado e harmonioso, tudo ficaria bem. Meu anjo-da-guarda me acompanharia pelo caminho e me defenderia de todos os perigos com seu divino escudo.
Acontece que eu, ingênuo que só eu, andava pelas ruas bastante despreocupado. Claro que minha mãe tinha me comunicado os clichês de milênios que sempre são ditos para as criancinhas em suas primeiras aventuras sozinhas no mundo, desde o tempo da Chapeuzinho Vermelho entrando no bosque com sua cestinha: “não fale com estranhos!” e “sempre olhe para os dois lados antes de atravessar... e sempre na faixa de pedestres!” Eu obedecia, claro, mas achava bobagem – não tinha perigo algum e eu era esperto demais para me deixar atropelar assim... Pensavam que eu era o quê, idiota?
A melhor parte do catecismo era quando a aula acabava e eu estava livre para ir embora, sozinho, tendo a liberdade para fazer meu próprio itinerário pelo bairro, que tinha lá seus interesses – podia dar um pulo na locadora e pegar um filme ultra-violento, porque a igreja sempre me deu vontade de ver umas coisas punk; podia pegar uns doces nas barraquinhas ali da praça; mas, quase sempre, meu divertimento era pegar um atalho por dentro do Mercado Municipal do Rudge, todo verdinho naquela época, onde ficava a minha banca de jornal predileta naqueles tempos, a mais comprida que eu conhecia.
E aí um dia, lá estava eu, alegre e saltitante porque a chatérrima aula do catecismo tinha acabado e eu estava livre pra voltar pra casa, e fui-me no meu percurso habitual: parei na banquinha para comprar a nova Herói para a minha coleção, quem sabe alguns pacotes de figurinhas auto-colantes para o meu álbum dos Cavaleiros do Zodíaco, e segui pra casa. No farol que dava para o meu quarteirão, parei às beiras da faixa de pedestre, folheando minha revista enquanto o semáforo não abria, despreocupado como um ingênuo cordeiro que nem suspeita estar no campo dos lobos.
E aí cola em mim um brutamonte de meter medo: pele morena, mau-vestido e mau-encarado, vestido nuns trapos já um tanto fedorentos, medindo uns 30 centímetros mais do que eu, pesando uns 40 quilos mais, possuindo uns 50% mais de massa muscular e muque. Eu demorei um pouco para entender que o que estava encostado ao meu corpo era um canivete. Demorei um pouco mais ainda para entender o que queria dizer a frase que ele me diz:
- Num tenta nenhuma gracinha que eu te furo. Já furei dois cara já.
Imaginem o Maguila encostando os ombros em Olivia Palito e terão uma idéia da cena e da desproporção de nossas forças. Eu podia até assistir meus seriados de super-heróis, mas ali não havia chance para eu dar demonstrações de heroísmo – não era valente desse jeito. Ele chegou gingando como ginga todo malandro que se acha o dono da rua. Com a atitude arrogante de alguém que sabe que está no poder e que vai pegar o que quer, mesmo que seja à força. Um cara que tinha cólera explícita nos olhos, que parecia estar num campo de batalha de uma guerra que anos depois eu aprenderia a chamar de Luta de Classes, e que, claro, viu uma presa muito fácil naquele garoto branco esquelético e arrumadinho que voltava pra casa da igreja folheando suas revistinhas e segurando, com incontida impaciência, suas figurinhas – louco para chegar em casa e rasgar com volúpia os pacotinhos...
De repente, então, lá estava eu, com uma faca encostada na minha pele, um maluco me mandando andar pelas ruas ao lado dele, me conduzindo para algum beco mal-iluminado ou deserto onde, eu já previa, algo de terrível aconteceria. Meu coração batia acelerado como um baterista de hardcore. Ao mesmo tempo eu estava gelado, paralisado, em estado de choque. Será que a minha vida estava acabando? Era esse o final da minha história, o desfecho do meu destino, morrer esfaqueado por um trombadinha por causa de um relógio e uma nota de dez reais?
O assalto em si durou pouco, menos de cinco minutos: uma rua deserta e sem saída foi logo encontrada, o canivete foi somente usado como instrumento de ameaça e não de “furação” e eu fui surrupiado dos meus bens de valor rapidinho, sem ter nenhuma gota do meu sangue derramado. Mas quando eu arrastei a minha carcaça humana de volta para casa eu era uma criança já completamente diferente da que tinha sido poucos minutos atrás – estava traumatizado como alguém que é subitamente atropelado e se levanta zonzo.
Dúvidas religiosas eu já tinha, apesar de não confessar a ninguém tão hereges ceticismos, mas esse evento só fez com se intensificasse o crescimento da descrença. Porque o que tinha acontecido não me parecia nem compreensível nem justo. Eu estava enfurecido e revoltado contra Deus, que nos diziam ser plenipotente e infinitamente generoso, e que ainda assim havia assistido impassível a esse espetáculo de indignar qualquer pessoa de coração: uma criança inocente atacada e roubada na rua por um hooligan sanguinário qualquer. Onde estava o desgraçado na hora em que eu mais precisava dele? Tinha pegado no sono? Estava ocupado demais com vigilâncias mais relevantes? Minha proteção não estava entre suas prioridades? Quer dizer então que se eu morresse, não faria nenhuma diferença? Eu estava indignado. Mais com Deus do que com o bandido.
Com Deus. Por ter criado uma bosta de mundo lotado de pobreza e desigualdade, onde pessoas têm necessariamente que virar criminosas ou então passar fome. Com Deus. Por ter feito esse bandido em particular cruzar justo no meu caminho e escolher justamente a mim como vítima. Com Deus. Por não ter se manifestado na ocasião em que eu mais precisava, mais o chamava, mais o invocava. Pensei, em retrospecto, que não seria nada impossível que o trombadinha, só por descarrego de ódio, me “furasse”, como ele ameaçou, segundo seu costume, e que Deus, me vendo ali, sangrando litros em cima de uma calçada desconhecida e deserta, não movesse um dedo de sua mão onipotente para me salvar. Será possível que Deus seja um canalha desse tipo, que assiste seus filhos sendo judiados e não dá a mínima? Eu estava completamente indignado.
Restava uma solução para o enigma: talvez eu fosse culpado de algum pecado, de algum crime que cometi sem perceber, de alguma imoralidade invisível para mim mesmo, e estava então sendo punido. Me vasculhei inteiro e não achei motivo que me fizesse merecer castigo tão desproporcional à suposta falta. Protestei para o Céu que eu era inocente, completamente inocente! Logo eu, um garoto tão comportadinho, tão estudioso, tão celestial, que nunca na vida tinha ficado de recuperação, que não era de traquinagens excessivas, que não quebrava os vidros da vizinhança nem maltratava os bichinhos, que até ia na missa aos Domingos, sendo tão arbitrariamente agredido!
As sementes da descrença já tinham sido plantadas em mim. Comecei a olhar para o mundo e perceber nele a feiúra, o descompasso, o sofrimento, a pobreza, a morte final de todos, e não podia evitar aquela sensação de que algo estava errado. Este planeta não parecia ser a obra de uma entidade infitamente sábia, bondosa e potente. O serviço estava muito mal-feito para que desse para acreditar nessa lorota. E na escola eu já estava começando a receber as primeiras lições de uma “educação para a realidade” - o que a religião nunca foi em toda a História. Professores de geografia chocavam a classe citando os números estratosféricos de seres humanos que morriam de fome todos os dias – 30 mil, me diziam. Professores de história narravam todos os massacres, genocídios e guerras de que está tão repleto o destino humano nesse planeta – e inclusive víamos slides dos campos de concentração nazistas, com seus fornos crematórios, suas câmaras de gás, suas imensas covas de massa. Professores de biologia explicavam o processo de evolução das espécies e a cadeia alimentar, mostrando que a gente não era muito diferente dum gorila um pouco melhorado, um chimpanzé depois de ter feito download dum upgrade, e que a natureza em geral era um espetáculo grotesco onde os bichinhos ficavam se entredevorando uns aos outros feito loucos, o tempo todo, uma começão sangrenta danada...
Deus ainda existia, mas era uma criatura cada vez mais repugnante, nojenta, de deixar indignado. Quer dizer então que Deus ficava lá sentado em sua divina bunda assistindo, todo dia, a 30 mil pessoas morrendo de fome? Quer dizer que Deus tinha permanecido imóvel e impassível enquanto seis milhões de judeus levantavam, um a um, suas súplicas ao Céu por socorro? Quer dizer que Deus tinha criado suas criaturas obrigando-as a, para sobreviver, ficarem se matando umas às outras em tempo integral? A pergunta, que doía fazer, mas que era inevitável, chegou: mas Deus não tem coração? Esse filho-duma-puta pensa o quê?! Que pode ficar eternamente silente e eternamente inativo enquanto a humanidade se estrepa?! E a conclusão se impunha: Deus não é tão bom assim. A indiferença, a omissão, a revoltante ausência de intervenção nas ocasiões em que uma intervenção era absolutamente indispensável, tudo isso foi transformando Deus em uma criatura insensível, sem misericórdia, sem amor, espectador passivo de um sofrimento que ele nada fazia para remedia. Uma criatura quase diabólica. Fiquei com medo de viver num mundo em que Deus e o Demônio era a mesmíssima coisa. Parecia.
Mas, por sorte, havia uma outra opção, muito mais plausível: que Deus não existia. Seu silêncio era o silêncio da ausência de boca e de pulmão. Sua falta de misericórdia e de amor era feito da ausência de coração, de corpo, de tudo. Sua inatividade e sua omissão era mero efeito de sua inexistência. Deus não era maldoso: Deus simplesmente não era. Se Ele existisse, seria necessariamente culpado. “A única desculpa de Deus é que Ele não existe”.
Eu continuei no catecismo, por inércia, por falta de ímpeto para a rebeldia, por obediência aos meus pais, porque já tinha feito mais de metade, por qualquer coisa menos por fé ou por desejo de estar ali. Aliás, ninguém no mundo lá fora sabia que um trombadinha com um canivete tinha assassinado Deus dentro de mim, para sempre. No dia da gloriosa consumação de todo o processo, a Primeira Comunhão, eu, com a hóstia na língua, não senti muita coisa de sublime ou transcendental. Não era nada muito diferente do que ter um pedaço de papelão derretendo na boca. Foi minha primeira e última comunhão.
Daquele dia em diante, nunca mais quis entrar numa igreja. Tinha tomado a decisão precoce de abrir os olhos para ver a verdade nua e crua, e não a versão distorcida e sentimentalizada, impregnada de desejo e de fantasia, que a religião nos vende como se fosse a realidade última. Da revolta contra Deus passei à angústia de viver debaixo dum Céu completamente vazio. Mas com o sentimento de ter efetuado um abandono legítimo. Porque Deus tinha tido sua chance e não passara no teste. Ele não tinha sido paternal, protetor, amante, misericordioso, generoso, bom. Deus tinha começado a me parecer um Demônio indiferente e omisso, que não se comove com os rios de lágrimas que choram suas crianças, que não move um dedinho de sua mão onipotente para ajudar ninguém, que permanece silencioso frente a todas as orações e súplicas e que, afinal de contas, criou um mundo cheio de coisa errada. E se fosse pra ter um Pai desses, eu preferia ser órfão.
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