sexta-feira, 25 de abril de 2008

:: as utilíssimas lágrimas de amor ::

(Isabelle Adjani como Adele H, a filha de Victor Hugo que endoideceu de amor,
no filmaço de François Truffaut L'Histoire D'Adele H)



"Para nosso consolo, o sofrimento tem lá suas vantagens. Um bioquímico americano, William Frey, descobriu até que as lágrimas de amor são utilíssimas. Como as de felicidade, e à diferença das de irritação, são muito ricas em proteínas. Segundo ele servem - como o suor e a urina - para eliminar toxinas do organismo; no caso, substâncias produzidas pelo estresse emocional.

Mas não é só do ponto de vista protéico que o sofrimento é necessário. Há tempos, e para minha total surpresa, Ziraldo me disse: "Eu nunca sofri." Dei-lhe pêsames, tentei convencê-lo de que estava perdendo um sentimento fundamental, de que como criador, privava-se de uma experiência indispensável à plena realização artística. Ele me olhava e ria, sem querer entender. Pena que naquela época eu ainda não tivesse lido Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, senão poderia ter-lhe contado a história da monja que em 1199 partiu em direção a uma distante abadia cisterciense, para obter, através das orações dos monges, o dom das lágrimas. Porém sem história para contar - as pessoas se fiam muito em citações altissonantes -, parecia que a louca era eu. Pois se todos vivem querendo ser felizes, Ziraldo, que o era ininterruptamente, só podia estar certo.

Mas outro dia ele chegou para mim com um sorriso e disse: "Agora eu já sofri." E ao dizê-lo tapou por um instante o rosto com a mão. Não escondeu o olhar por ter-me entregue um sentimento negativo, vergonhoso, mas sim porque ter sofrido fazia dele uma pessoa melhor. E teve pudor, como se estivesse me contando uma vantagem.

O sofrimento não nos faz melhores por ser, em si, uma coisa ótima. No auge do sofrimento, somos tão cegos quanto no auge da felicidade. Mas ele nos melhora porque é lento de diluir, e nessa lentidão desbravamos trilhas que o bem-estar fazia parecer inúteis ou inexistentes.

Sofrer por amor nos obriga a pensar esse amor vezes sem fim. Viramos o amor de um lado, examinamos tudo, viramos do outro, tornamos a examinar. E viramos e reviramos na tentativa de ver todos os ângulos, na esperança de que desse exame nasça o entendimento. Pois sabemos que entender nos ajudará a sofrer menos.

Assim, o sofrimento nos obriga a um tipo de atenção diferente da do amor. Enquanto este só está interessado em procurar as qualidades que lhe servirão de reforço, aquele acreditar procurar a verdade. No ato prático é pouco provável que a encontre, porque está envolvido demais, sem possibilidade de distanciamento. Mas à medida que o próprio mecanismo de observação progride, e o tempo passa, o distanciamento se faz, e começamos realmente a enxergar melhor.

Por outro lado, um sofrimento bem aproveitado nos acrescenta sempre alguma sabedoria, que poderemos aplicar em amores futuros. Não convém contar com essa aplicação para evitar outros sofrimentos, mas pode-se ter certeza de que ajudará na interminável construção da felicidade.

Das vezes todas em que estive infeliz nunca consegui pensar "que bom, eis que como um sábio no seu eremitério eu me enriqueço nesse sofrimento". Achei que era um inferno, uma maldição dos céus, uma injustiça. Cuspi sangue, cuspi maribondos. E quis sair do sofrimento o mais depressa possível. Qualquer outra atitude teria sido puro masoquismo.

Mas já tendo atravessado a pé vários desertos, olho para trás e vejo que de todas as travessias extraí coisas importantes. Voltam à minha memória aulas de geografia da infância, o Nilo subindo, inundando tudo, e retirando-se depois, deixando como herança a lama fertilizante. A imagem é melosa, mas acho que sofrimento de amor, sofrimento bem grande, é assim mesmo, uma tremenda inundação que nos leva de roldão, quase nos afoga, depois nos deixa ainda por um bom tempo bracejando de borco na lama. Mas que afinal, quando o sol brilha, quase para nossa surpresa, ajuda no fortalecimento de novas brotações."


(Marina Colasanti)


Achei biito ao extremo e me levou quase às lágrimas.

Daqueles textos que mais parecem com amigos-do-peito que, estando a par de tudo o que tá rolando, chegam dizendo no momento mais oportuno tudo o que mais precisamos ouvir.