Para fugir dela, alguns explodem seus próprios apartamentos e organizam gangues urbanas de terrorismo lírico e físico, tentando trazer abaixo o império do capital e do consumismo, ainda que sob o disfarce de um certo Tyler Durden ou de um mascarado que traz um V de Vingança tatuado em sua furiosa alma. Outros, menos destrutivos, resolvem simplesmente se mandar para os ermos, como fazem os anacoretas hindus, e procuram Na Natureza Selvagem a intensidade vivida e o espetáculo dos sentidos que a vidinha capitalistinha nos nega. Alguns enlouquecem de tanta raiva mau-canalizada e saem atirando por aí, seja o yuppie playboy tornado serial killer de Psicopata Americano ou os garotos insuspeitados que se levantam com suas metralhadoras para dizimar Columbine em Elefante. São diferentes planos de fuga que realizam os presidiários da mesma penitenciária cultural. Conseguirão os novos “heróis” de Sam Mendes sucesso onde tantos outros fracassaram?
Já ela, April Wheller (Winslet), desde sempre teve um coração com asas, afeito a fantasias, despregado do chão árido do realismo. Quando se conheceram, numa festa tediosa, ela revelou seu sonho: ser atriz. Fracassa feio. Ela é desse tipo de ser para quem sonhar é um martírio, já que a realidade jamais colabora. É dela que parte, também, a fantasia que norteia grande parte do caminhar do par pela Revolutionary Road: abandonar tudo, vender casa e carro, pegar carona no avião do Imprevisível e se mandar para a Europa, para a romântica e magnética Paris, onde – é o que imagina! - a Vida de Fato Começaria. Prova de que esta Terra de Oportunidades não é assim tão extasiante: há americanos que, sufocados debaixo da pilha de matéria do império, sonham com outros ares, sem nem suspeitarem que ali, também, na verdadeira França que se contrapõe à mítica França que idealizam, existe também o tédio e a sensaboria – que fizeram Baudelaire escrever tanto e tanto contra o “spleen” e que arrancaram de Rimbaud o gemido de insatisfação: “A verdadeira vida está ausente...”.
Para os Wheeler também: a verdadeira vida está ausente. A relação do casal é uma tensa gangorra entre uma vontade de lançar-se a uma aventura ímpar, que fizesse o sangue correr mais quente nas veias, e uma quase irresistível e abominável sedução pela resignação ao morno e ao sem sal. Vendo-os daquele jeito, inebriados com planos, tomando coragem para a decolagem, cheios de sonhos do que viria ser a Nova Vida que namoravam à distância, podemos até ver neles grandes HERÓIS em gestação. Há um heroísmo no coração desse casal que vai crescendo, tomando vulto, pedindo espaço – e alguns de nós, deste lado da tela, como testemunhas oculares desta luta, podemos até vibrar na torcida, na torcida, na torcida! Pois sim: seria lindo essa ousada ruptura com um destino mortão, esse salto no escuro de um futuro novo, essa tão louca e tão sábia decisão de mudar de modo radical o que ia mal. A coragem de tentar já seria um belo heroísmo num mundo onde os loucos são os mais lúcidos e a normalidade é a pior das patologias. Mas não; este não é um casal de heróis consumados, mas sim de heróis caídos, perdidos, fracassados. O fracasso deles espelhando o nosso. A tentativa de revolução deles instigando a nossa vontade por inventar a nossa.
Quando se consuma o fracasso de tantos lindos sonhos, a própria rua onde moram – a Estrada da Revolução – passa a parecer uma imensa zombaria que os demônios urbanos bolaram como escárnio. Não seria muito diferente se os dois fossem paraplégicos morando na Rua dos Maratonistas ou surdos vivendo na Cidade da Música. Pois, se Wittgenstein estava certo ao dizer que “revolucionário é quem se auto-revoluciona”, os Wheeler fracassaram feio na missão. Disseram-se palavras duras demais para que o perdão seja possível. Enfiaram o punhal muito fundo no peito um do outro para que retirá-lo da carne não gerasse uma hemorragia letal. Abandonaram de modo muito profundo a doçura e a civilidade para que a relação pudesse voltar a se açucarar. Perderam-se, desnorteados, esmagando suas cabeças e corações um contra o outro, continuando ambos presos dentro da cela cultural de onde tentaram se evadir.
Há muito tempo não víamos projetada na tela uma disputa matrimonial tão cruel. O casal Wheeler traz à lembrança todos os horrendos combates entre Liz Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, aquela imensa orgia da catarse de ressentimentos reprimidos com a qual Mike Nichols deixou marcado seu nome na história do cinema logo em seu longa de estréia. Um homem e uma mulher que tacam pedras e bosta na cara um do outro, por tempo integral, é de fato um espetáculo indigesto de se ver, mas ali parecia que um repouso, no fim da tempestade, era possível: não haveriam os dois de se aquietarem como dois exércitos cansados, um rendido ao outro, assim que a munição acabasse ou o campo de batalha estivesse já muito infestado de cadáveres?
Em Revolutionary Road, depois dos histéricos disparos das metralhadoras giratórias, uma chance de conserto do quebrado até se rascunha. Mas... é um rascunho que se amassa e lança-se ao lixo, besuntado de sangue, como um plano que sabe-se que não funcionaria. Depois da briga mais feia que o casal tem, tendo dito um para o outro os horrores mais imperdoáveis, nasce o dia seguinte em aparente calmaria. Ela, que no dia anterior era emanação pura de ódio, de desamor, de sadismo (“fuck whoever you like!”, diz April ao marido, e que bordoada!), aparece transformada numa doce, atenciosa e suave dona-de-casa, que prepara os ovos para o maridinho, o enche de mimos no breakfast e deseja-lhe um bom dia de trabalho, meu querido. Ele, que tinha amaldiçoado o ventre da mãe de seus filhos, fazendo uma das mais horrendas ofensas que se pode fazer a uma mulher, descobre-se surpreso com a súbita paz que se faz após a catástrofe da véspera. E embarca na viagem dela, fazendo o papel do comportado maridinho trabalhador que está contentíssimo com uma vida altamente convencional. Nem percebe a farsa. Pois aquilo é ela armando para ele um teste definitivo – e ele não passa.
No fim das contas, a matemática da vida oferece um resultado totalmente negativo às complexas aritméticas que estes dois procuraram equacionar. Os dois revolucionários falhados, mártires de sua própria covardia e crueldade, ficam assombrando como espectros esta melancólica Revolutionary Road - a rua das ilusões perdidas, das fantasias desfeitas e dos machucados sem remissão - onde pinga, gota a gota, do útero de uma mãe que está ferida demais para continuar vivendo, a vermelha e trágica água que mancha o prendado carpete do Sonho Americano.
( + + + + : new yorker - berardinelli - rolling stone -roger ebert - empire - ws post - omelete -portal de cinema - cinerepórter -pablo vilaça - cinesmacópio - ...)
|