Haverá algum olho humano capaz de abrir-se para o Universo sem mentira, sem ilusão, sem distorsão, sem que se exploda de tanto assombro ou seja calcinado pelo Sol? Não sei. Um dia perguntaram ao Terence McKenna se havia algum perigo extremo no consumo das substâncias de Expansão da Consciência e Fusão Mística com o Cosmos como o LSD, a ayahuasca e os cogumelos mágicos. Ele respondeu: "Só há perigo se você acredita que se pode morrer de espanto".
Morreríamos de espanto se ousássemos abrir os olhos?
Dos animais, acho que não há nenhum que, como nós, esteja tão frequentemente com os olhos fixos no longínquo (e isso é quase o mesmo que tê-los fechados): no Céu onde um dia se entrará... na Utopia que um dia se realizará... na Verdadeira Vida que no presente está ausente... no Sono Eterno onde enfim se poderá repousar... no Amor sonhado e idealizado, que não chega e não chega, e vai sendo sempre e sempre adiado...
O brilhantíssimo Heinrich Zimmer, no Filosofias da Índia, um dos Livros Maiores que conheço em matéria de Sabedoria Condensada, um dos livros mais importantes da minha vida, expõe de um jeito inesquecível e arrebatador a maneira como as filosofias do Oriente descrevem todo esse imenso símbolo: as duas margens, um rio tumultuado entre elas e a travessia árdua mas crucial que é preciso realizar de uma à outra. Uma das metáforas mais famosas do budismo conta que existe uma MARGEM DE LÁ que precisa ser alcançada, e a doutrina é apenas um bote: atingido o objetivo, não há sentido em carregar nas costas aquilo que te levou à Ilha do Nirvana. O budismo é dispensável, quando se atinge a Iluminação: era só um barco, um veículo, um auxílio.
O mais espantoso, e o mais difícil de compreender, é isso: que a Ilha do Nirvana e a Ilha do Samsara são a mesmíssima ilha.
É assim: você embarca num porto, na margem de cá, e navega. Você se perde nos mares. Digladia com Moby Dicks. Engole muita água salgada. Cospe muito sangue. Quebra muitos ossos. Quase sucumbe aos mil Maelstroms da jornada. Enfim, se triunfar, atraca em um outro porto, desembarca da odisséia marítima turbulenta e diz a si mesmo, aliviado, quase em estado de êxtase, que finalmente chegou "na margem de lá", de tão bem que se sente. Mas você desembarcou na mesma ilha de onde havia saído. A grande diferença é que possui novos olhos. A travessia te transformou a consciência. Nada mudou, lá fora: foi dentro que se operou uma remoção de catarata, uma correção de miopia, a instauração de uma Nova Visão.
A coisa mais importante que aprendi nas minhas "andanças pelo Oriente" foi, provavelmente, esta: que o Samsara e o Nirvana não indicam, de modo algum, dois mundos diferentes! Talvez seja isso que nós, ocidentais, achamos tão difícil de entender. Estamos viciados em cristianismo e platonismo: dividimos o mundo entre uma Dimensão Terrestre e uma Dimensão Celeste, entre um Mundo Inferior Sensível (de Transformação e Morte) e um Mundo Superior Espiritual (de Eternidade e Paz). Esse Dualismo é a nossa miopia. Julgamos que o Universo é dual. Buscamos chegar a um “mundo” diferente do nosso. Mas não há mundo além desse. E a Eternidade não vai começar depois: ela já começou. Somos seres efêmeros nadando num Cosmos eterno, que sempre o foi e sempre o será, e eterno não por ser imutável, mas eterno por ser eterna transformação, dissolução, construção e reconstrução. Uma imensa dança, sem começo nem fim.
Por isso é que me parece um equívoco tremendo traçar paralelos comparativos do budismo com o cristianismo e imaginar, por exemplo, que o Samsara equivale ao Inferno e o Nirvana ao Paraíso, como se Samsara e Nirvana fossem de fato LUGARES. Não são lugares. Não é através de um DESLOCAMENTO NO ESPAÇO que se irá de um até outro. O que significa: você pode ser um andarilho teimoso que erra por todos os cantos da Terra, que não chegará jamais a uma Cidade Encantada, toda polvilhada de ouro, esmeraldas, harpas e anjos, que se chama Nirvana. Nirvana não é um lugar. Samsara também não. Lugar só há um – é o que chamamos de mundo, e todos estamos nele. Todos estamos no mesmo lugar. Mas temos diferentes olhos para ver este lugar. Diferentes corações para senti-lo. E, principalmente, diferentes níveis de consciência com que o experenciamos.
Samsara é o estado daquele que tem os olhos doentes. Nirvana é o estado de quem tem os olhos sãos. Samsara é doença, Nirvana é saúde. Samsara é miopia, Nirvana é reta visão. Samsara é ignorância, Nirvana é sapiência. Samsara e Nirvana estão unicamente dentro de nós! E é DENTRO DE NÓS, e somente aí, que podemos dar o imenso passo de um ao outro. Por isso tanto se faz no Oriente no sentido da INTROSPECÇÃO, do RECOLHIMENTO. Pois a salvação está, não lá em cima, mas aqui embaixo: no mais profundo do poço de nós mesmos.
Poderíamos até dizer que no Oriente considera-se que “Deus está dentro de nós” e no Ocidente que “Deus está fora (e acima) de nós”, mas não acho que seria o julgamento mais justo. Pois no Oriente, o que se busca não é de fato um Deus interior, que moraria dentro de nós como uma fadinha numa semente, como uma pequena chama obscurecida pelas selvas fechadas de nossos corações egoístas - nada assim tão supersticioso e digno de conto folclórico para criancinhas. Se viaja-se para dentro, não é para descobrir Deus, mas sim para CORRIGIR o ERRO de PERCEPÇÃO, para APERFEIÇOAR o nosso natural (e pobre) ESTADO DE CONSCIÊNCIA, de modo a, de certo modo, ENTRAR EM CONTATO com um Deus que não está nem acima nem dentro de nós, mas um Deus que nos envolve, que nos engloba, em quem nadamos como peixes num oceano.
“Este Niágara de que somos gotas”, diz o Zimmer. Esta imensa duna de que somos grãos de areia. Este imenso espetáculo cósmico de que somos uma miseravelzinha partezita absolutamente insignificante e sem valor. Claro que este Deus dos orientais, que eles muitas vezes não chamam de Deus, se confunde com o Universo, com o Todo, com o Ser, com Tudo-Que-Existe. Sim: trata-se, no fundo, de pegar Tudo-Que-Existe e chamar isso de Deus. Spinoza, me parece, fez o mesmo. É o que se chama de panteísmo. Que não está muito distante do ateísmo. A este Deus é inútil rezar, fazer pedidos, penitências, acordos, promessas. É inútil depositar Nele qualquer esperança. Ele é absolutamente indiferente à vida humana. À vida em geral.
Para os orientais, a META é a OBTENÇÃO DE UM ESTADO MAIS ELEVADO DE CONSCIÊNCIA, e de modo nenhum CONQUISTAR O DIREITOR DE HABITAR nesta outra “DIMENSÃO” que chamam de Céu ou Paraíso e que eles certamente reconhecem como uma alucinação. Não há Céu nem Inferno – há um só mundo, e ele PODE SER SENTIDO como Céu ou Inferno dependendo do MODO COMO NÓS O EXPERENCIAMOS, de acordo com a QUALIDADE DE NOSSA CONSCIÊNCIA. E não há dúvida de que a maioria está no Samsara! Neste sentido, budismo e cristianismo até concordam: ao dizer que estamos num Vale de Lágrimas e que a vida é sofrimento. Mas o cristianismo promete a felicidade para depois da morte, se a merecermos, sendo portanto uma religião das promessas de bem-aventurança no além-túmulo; enquanto o budismo deseja nossa libertação AQUI e AGORA, e considera, pelo menos a escola Mahayana, que TODOS são dignos e capazes de alcançarem, neste planeta, a beatitude que os cristãos só conseguem imaginar em outras “esferas”... É a felicidade humana terrena o que se busca! Não se quer ser feliz no além-túmulo, como pretendem fazer cristãos, judeus e muçulmanos! Quer-se o Bem agora, e não depois.
Não que sejam doutrinas “hedonistas”, de modo nenhum (com exceção do tantra, que com um pouco de exagero poderia ser descrito como uma espécie de hedonismo). Não se trata exatamente de “aprender a gozar” as “coisas boas da vida”. Essas filosofias de vida obviamente isso não conduzem a uma “ética” simplória que elogiaria uma vida centrada em degustar bons pratos e boas bebidas, fazer sexo com belas mulheres, ouvir bela música e deleitar-se com lindas obras da arte e da natureza... enfim, não se trata de PERMITIR QUE OS SENTIDOS BANQUETEIEM COM GULA no imenso restaurante de tentações que se chama mundo. Não. Pois os prazeres, todos eles, são vistos como transitórios, efêmeros e incapazes de gerar qualquer tipo de satisfação duradoura. São falsos bens, por assim dizer. Os prazeres são certamente prazeirosos, e seria uma absurdidade negar tamanha evidência, mas no QUADRO GERAL da vida não é verdade que uma felicidade se construa como uma mera SOMA ARITMÉTICA de prazeres. É possível viver uma vida repleta de prazeres e, ainda assim, ser infeliz. Quem duvida da miséria dos libertinos? Quem inveja o destino dos personagens do Marquês de Sade?
Trata-se, sim, da busca por um Bem Maior, mas este Bem Maior não é posto "fora" do mundo, num certo "além", que não passa de uma imensa alucinação dos monoteísmos ocidentais e de todos os idealismos filosóficos. No Oriente, o Bem Maior é uma Consciência Expandida. É a aniquilação de todos os dualismos: bem e mal, céu e inferno, prazer e dor, vida e morte. André Comte-Sponville considera como o "lema"mais importante da "história da espiritualidade" este apontamento de Nagarjuna, o maior dos sábios do budismo Mahayana: "Se você ainda diferencia o Nirvana do Samsara, você ainda está no Samsara". Zimmer complementa: "A iluminação significa que a distinção enganosa entre as duas margens, como se uma tivesse existência mundana e a outra, existência transcendental, é absolutamente insustentável."
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