(God's Grace, 1982, 216pg,
ed. Cia das Letras, trad. Isa Mara Lando)
(ANTHONY BURGESS)
"Malamud in his novels and stories discovered a sort of communicative genius in the impoverished, harsh jargon of immigrant New York. He was a myth maker, a fabulist, a writer of exquisite parables. (...) The accent of hard-won and individual emotional truth is always heard in Malamud's words. He is a rich original of the first rank."
"In this final moment of a brilliant career, the reader can feel a trembling urgency just below the surface: a writer's desperate need to shatter the rosy one-way mirror that stands between literature and life."
(DARA HORN)
O sempre hiperbólico Richard Dawkins sugere uma outra solução, provocativa e iconoclástica, mas que não deixa de ser bem plausível: “O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo...”. [deus: um delírio]
Em A Graça de Deus, o brilhante romance de despedida de Malamud (que o escreveu em 1982, morrendo em 1986), esta divindade terrivelmente temperamental e bizarra é retratada perdendo as estribeiras. Depois de muito aguentar as macaquices da raça humana, o Cara Mais Poderoso do Universo se enfeza feito um gângster, tem um ataque psicótico incontrolável e decide mandar tudo pras cucuias. Ele lança sobre a Terra um Segundo Dilúvio, monumental e impiedoso, que faz picadinho - ou melhor: dá um belo dum caldo... - em todas as criaturas vivas sobre a face do planeta. Ou quase. Pois um judeuzinho rabudo, que estava em seu submarino na hora do atentado da jihad divina, acaba sobrevivendo. Numa ilha deserta, ao lado de um grupelho de macacos, vai tentar recomeçar a aventura humana como um Segundo Adão.
O Deus de Malamud se parece com um chefe que despede todos os seus empregados por justa causa, por comprovada incompetência ou cafajestice, e declara a empresa falida. Diz Ele: "Desde o início, quando lhes dei o dom da vida, tinham uma perversa avidez pela morte. Por fim pensei: dar-lhes-ei a morte, já que estão imersos no mal. Destruíram a minha obra, as condições para sua sobrevivência: o doce ar que lhes dei para respirar; a fresca água com que os abençoei para beber e banhar-se; a fértil Terra verde. Os homens dilaceraram meu ozônio, carbonizaram meu oxigênio, acidificaram minha refrescante chuva. Agora afrontam meu cosmos. (...) Em suma, o mal predominou. O Segundo Dilúvio foram os próprios homens que provocaram" (15).
Mas Malamud escreveu um livro muito mais profundo do que uma mera ficção alarmista, que qualquer autorzinho cristão apocalíptico e moralista de meia-tigela poderia ter composto. O autor não só soa os alarmes contra os abusos ecológicos e morais da raça humana, como usa a catástrofe para desencadear todo um estouro da boiada de questionamentos teológicos.
Calvin sabe muitíssimo bem, por exemplo, que a História Humana, que sempre foi um encharco de sangue, virou uma podreira enojante de tão imunda depois do Holocausto ("todo aquele sabão judaico feito com os corpos esqueléticos assassinados nas câmaras de gás") e da bomba H ("os americanos jogando as bombas em todos aqueles japoneses que de nada suspeitavam, rastejando às oito da manhã em meio aos cacos de vidro tentando encontrar seus globos oculares") (129). Que Pai não se revoltaria contra filhos capazes de tamanhas obscenidades?
Pois esses ápices no HORROR que o Homem conseguiu atingir nestes escândalos que sujam o século 20 podem gerar dois tipos de confrontação teológica. Por um lado, a negação absoluta da Divindade, o ateísmo completo, que diz que uma Criação tão cheia de pecado não corresponde a uma Causa Divina e Bondosa. Além disso, se o Onipotente não se manifestou para impedir tamanhos massacres e indignidades, é certamente porque: ou é Do Mal, o que não corresponde a Deus, ou simplesmente Não Existe. Existe um Demônio ou não existe nada: a isso se reduzem nossas opções. Ou seja, a hipótese de um Deus Bondoso, Onipotente e Interventor morreu de vez em Auschwitz e devemos seguir em frente sem essa imensa ilusão que nos entravou o caminho para o conhecimento por milênios.
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Esse é um livro desbocado, provocativo, às vezes bastante obsceno. Mais parece um livro de juventude, em que Malamud se mostra com a impertinência de um adolescente peralta, imaginando situações que a maioria dos homens ficaria de cabelo em pé só de imaginar. É o caso das cenas de sexo inter-espécies em "A Graça De Deus". Pois a certo ponto do romance, nosso herói, perdendo as esperanças de se deparar com alguma fêmea homo sapiens sobrevivente do Dilúvio, bola um "plano ousado" para driblar esse pequeno empecilho.
"O extraordinário feito que tinha em mente valia uma punhalada no escuro" (156). "Se ele e a macaca Maria Madalenta, unidos pela afeição mútua, e qualquer que fosse sua maneira de assestar e penetrar ele conseguisse depositar naquele útero acolhedor um jato do seu audacioso esperma, isso poderia mais cedo ou mais tarde exercer o efeito que ele esperava. (...) a evolução dos primatas exigia, como fundamento, além de algumas afortunadas mudanças macroevolucionárias, uma certa potência cerebral. Partindo de uma criança produzida por uma combinação de homem e chimpanzé, os dois seres mais inteligentes entre todas as criaturas de Deus, poderia surgir essa nova espécie - em última análise uma invenção de Cohn..." (157) Enfim: ele literalmente se decide a "fazer macaquices com a evolução" (159).
"A Graça de Deus" é tão sarcástico e iconoclástico, tão desrespeitoso frente a tabus sexuais e religiosos, que mais parece a obra de um autor ateu brincando de escrever uma continuação para a Bíblia. Nem de longe soa como o último livro de um escritor célebre por ter raízes judaicas profundas, o que nos faria supor um certo respeito temoroso por Jeová. Ao deixar sua imaginação voar livre e solta na criação desta infame parábola, Malamud cometeu uma obra que beira a ficção científica distópica e satírica - algo como um Planeta dos Macacos ou um Senhor das Moscas todo besuntado de questionamento teológico e ironia mordaz. Ao fazê-lo, esse brilhante autor americano, fechando com classe sua carreira de romancista, me dá a impressão de que escreveu um novo capítulo - divertidíssimo, pungente e estarrecedor! - do maior livro de ficção científica que a humanidade já imaginou: a Bíblia Sagrada.
(Já falei sobre outro clássico de Malamud, "O Bode Expiatório", aqui...)
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