:: LOVE LIFE ::
(Liebesleben), de Maria Schrader, Alemanha, 2008.
Já se tornou enjoativo de tão clichê evocar a clássica frase de Pascal – “o coração tem razões que a própria razão desconhece” – quando falamos sobre filmes de amor. Mas como evitar? Como um bumerangue, essa pérola retorna sempre que nos deparamos com sentimentos inexplicáveis, atrações absurdas e relacionamentos que o cérebro sente dificuldades em compreender porquê se estabelecem e se mantêm. Os neurônios, se confrontados, acabam apelando para a velha técnica de transmitir a culpa do crânio para o tórax: “são os desvarios do coração...”.
Em Love Life, excelente filme de estréia na direção da atriz alemã Maria Schrader (a moça aí ao lado), o espectador é confrontado com esse velho e sempre-novo mistério. Na saída da sessão, em meio ao burburinho das opiniões que este nobre repórter roubou com seus ouvidos de espião, era comum o seguinte comentário sobre Yara, a protagonista de Love Life: “Que razão tinha ela – que ‘tinha tudo na vida’! - para se tornar amante justo desse cafajeste?” Essa sensação de incompreensão é de fato algo que o filme nos comunica. Mas, conforme a narrativa progride e mergulhamos cada vez mais fundo na alma desses personagens, notamos que nenhuma das loucuras emocionais deles são assim tão inexplicáveis. E que, para explicá-las, é preciso recorrer não a razões, claro: são as irracionais emoções que explicam amores irracionais. E irracionais são quase todos os amores.
A premissa parece simples: forasteiro misterioso volta das brumas do passado, forçando uma família a reabrir suas feridas e retirar os esqueletos do armário. Parece familiar? Talvez, mas Love Life aborda o tema com frescor e originalidade, contando com interpretações genuínas e uma notável densidade psicológica. Nossa protagonista, a jovem universitária Yara, acaba se envolvendo numa relação tensa, absurda e dolorida com Arie, homem bem mais velho, que ressurge com inconfessas intenções de vingança contra os pais da mocinha.
Explorada e humilhada em relações sexuais repletas de sado-masoquismo, que lembram cenas de O Último Tango em Paris, do Bertolucci, ou O Império dos Sentidos, do Oshima, a garota acaba embarcando numa angustiante viagem de descoberta de suas raízes.
O amante é, desde o início do filme, retratado como uma espécie de vilão impiedoso que veio para fazer escândalo e bagunçar o coreto da família (aparentemente) feliz. Ele é um monstro que parece criado por uma feroz feminista querendo nos convencer de que os homens são capazes das mais repugnantes baixezas. A raiz do mistério está em descobrir porque Yara, que é casada com um marido ultra amoroso e atencioso, cai nas garras desse homem tão pouco amável. Nelson Rodrigues explica – talvez até melhor que Freud!
Não se trata de um Don Juan que coleciona conquistas de ninfetas ou de um “tiozão” que come lolitas por esporte. Arie, aliás, não tenta jamais seduzi-la ou assediá-la. Trata-a sempre com uma frieza que beira a crueldade. Na cama, ele a penetra sem carinho, com pressa e violência. Depois a atira porta afora como um brinquedo que se cansou de usar. E, por alguma profunda razão, entranhada nos abismos insondáveis do ser dessa complexa mulher, ela está, de algum modo, fascinada por aquele estranho tão grosseiro e maligno. E ela, uma jovem que tem tudo para estar razoavelmente satisfeita com sua vida, se lança no redemoinho de um caso de amor condenado.
Esse estranho e desigual casal tem pouquíssimo em comum – somente há, em cada um deles, uma vaga insatisfação, uma angústia indefinível, um vazio no peito que parece não ter causa. Ela, desanimada com seus estudos universitários, com a relação desagradável com a mãe tirânica e com a mornidão do maridão (que é excelente pessoa), parece ter fome de alguma aventura, alguma mudança, alguma besteira. Já ele, por sua vez, homem rodado, com milhares de quilômetros já percorridos, parece ter caído num estado de indiferentismo e tédio total. Nada o surpreende, nada o empolga, nada o comove. Quase a versão cinematográfica do Miguel, de Alberto Moravia, no clássico romance "Os Indiferentes".
Aos poucos, enquanto os véus caem e a relação adúltera passa a ser cada vez mais difícil de esconder, Yara vai descobrindo os segredos do passado de seu amante e qual a conexão deste com os pais dela. O quadro se esclarece e o comportamento vingativo e sádico do amante torna-se mais compreensível e seus abusos menos misteriosos. Love Life é um filme de bombásticas revelações psicológicas que subitamente nos fazem entender comportamentos que antes pareciam sem razão. Como num passe de mágica, as sombrias maquinações do coração recebem um banho de lucidez.
É a compreensão lúcida da falta de lucidez dessa obscura paixão que afinal liberta Yara desse amor destrutivo. Love Life, que é quase em tempo integral a descrição de um cativeiro emocional, de uma relação envenenada, acaba assim: como uma gaiola que se abre, deixando voar livre o pássaro antes preso.
Interessante notar, por fim, que o próprio título do filme carrega uma inteligente “sacada” e deixa no ar um certo mistério. Porque se “love”, no caso, for um substantivo, trata-se de “vida amorosa”; se for o verbo “to love” usado no imperativo, vira “ame a vida!” A ambigüidade na interpretação do nome é, aliás, muito propícia. Pois o brilhante filme de Maria Schrader, ao mesmo tempo que acompanha a vida amorosa de sua protagonista por sombrias e lamacentas estradas, vai desenhando lentamente no horizonte o Sol que irá nascer e fazê-la, afinal de contas, ser capaz de amar a vida.
NOTA: 9.5
|