terça-feira, 4 de novembro de 2008

:: let's go trippin' ::


TU NÃO TE MOVES DE TI.

O triste desse lance de "Destino" é que a gente só pode ter um. Ou não? Entre o berço e o túmulo, estou preso a uma pessoa só. Sim, sei que ela é mutante e que, num certo sentido, vou morrer tendo sido mais de mil. Bem mais! Mas nunca vou ser um imperador romano, um faraó egípcio, um filósofo grego, um pintor renascentista, um compositor alemão, um apóstolo de Cristo, um proletário revolucionário, um rock-star inglês...

Tem tanta gente diferente de mim que eu gostaria de experimentar ser! Isso que nem comecei a falar sobre os bichos. Tem um monte que eu queria saber qualé a sensação de ser. Águia de super-olhos planando nas alturas. Velocíssima pantera correndo pelas estepes, mais rápida que o vento. Peixe também deve ser legal e refrescante, mas não queria ser dos muito miudinhos, que são logo comidos pelos peixes maiores e tubarões, que a natureza num é brincadeira, cumpadre, nem dos muito estúpidos, que não percebem que a isca está presa no anzol. Golfinho também deve ser o máximo, também. Sempre tratados com altos privilégios. E as garotas adoram golfinhos. Já vi nos filmes.

Ser árvore acho meio monótono e insosso. Tudo bem que sou sedentário e inimigo dos esportes, mas ficar a vida toda plantado também já é demais. Só toparia se pudesse ser uma árvore andante, como lembro de ter visto, acho, em algum filme de terror, conto-de-fadas ou Halloween dos Simpsons. Além disso, as pessoas me arrancariam frutas sem misericórdia. Sem nem suspeitarem que dói tanto quanto se me arrancassem um dente! Um filho! E os pirralhos me subiriam nas costas - digo, nos galhos... - achando que só porque não reclamo estou gostando de carregar no lombo tanto peso. Corro até o risco de que algum obsoleto casalzinho de apaixonados queira brincar de meter um canivete no meu tronco para desenhar um coraçãozinho com dois nomes dentro. Essas viadagens. Nem sabendo que em mim doeria como uma tatuagem que não pedi que me fizessem! E como seria duro, para mim, observar imóvel o espetáculo do amor alheio. Isso é duro. Sei bem.

O Sonic eu curtia quando pivete, zerei várias vezes, mas porco-espinho nem tenho muita vontade. Eles não podem se abraçar. Os humanos são capazes de conhecer o calor humano, mas e o porco-espinho, como é que faz pra conhecer o calor suíno? Num rola!

Ser minhoca, barata, rato, lesma ou pernilongo eu não tenho ambição. No fundo acho que seria até uma perspectiva interessante, mas é complicado ser essas coisas num lugar onde existem predadores de tão extrema periculosidade como são os seres humanos. Homem é um perigo! Os animais quase todos só são assassinos por causa da barriga que ronca: ou cê mata, ou cê morre de fome. Só o homem é assassino por capricho, por nojo, por distração ou por casacos de pele. O único que mata por esporte e esmaga debaixo da sola por sentir-se esteticamente ofendido. Que culpa tem as cucarachas se nasceram feias e meio asquerosas aos olhos humanos? Merecem por isso ser trucidadas? Tenho certeza que, aos olhos de algum barato, aquela baratinha que você acaba de reduzir a uma gosma era uma gatinha, um tesãozinho. E era filha de um casal idoso de baratas que, coitadas, vão sentir duramente o baque deste luto...

Sei bem que estou sentimentalizando a natureza, que tá longe de ser essa coisa bonitinha dos poemas bucólicos. Um monte de bichinhos que ficam se devorando uns aos outros, se matando uns aos outros, se perseguindo uns aos outros, eis aí o que a natureza pode ser que seja. Sei que existem as tais das simbioses, das uniões vantajosas, dos hospedeiros benfeitores, dos cogumelos mágicos e dos microorganismos bacanudos, tipo os lactobacilos vivos do Yakult. Mas, olha bem: a Natureza é também um imenso oceano de sangue!

E não sou muito melhor não. Por exemplo: pernilongo que me impede de dormir eu mato com prazer ao invés de conduzi-lo à janela mais próxima. Nem me pergunto sobre o valor da existência daquele organismo vivo que pode muito bem representar um dos mais espantosos aglomerados de matéria da galáxia conhecida. Mato sem pestanejar! É ser assassino desses pilantras ou passar a noite em claro. Por que com criaturas assim não há diálogo! Ia dizer o quê? "Por gentileza, Vossa Senhoria Pernilongo, seja sensato! Não tens remorsos de consciência por faltar tanto com o respeito a seu próximo que amanhã madruga para ir a seu nobre ofício? Sei que semelhantes não somos, e por isso eu até agradeço, mas já que calhou de termos que rachar este quarto nesta noite, por que não nos trataríamos de modo civilizado?" Mas não. Com essa gente não se pode usar de diplomacia! Eles não tiveram educação católica. São uns bárbaros, uns vândalos. Uns bebedores de sangue! Cada poro do meu corpo é visto somente como a abertura de um poço onde eles podem matar suas sanguinárias sedes! São uns ladrões do petróleo que trago nas veias. Meu ouro vermelho escuro. Faria essa pergunta cabeluda a Santo Agostinho ou Tomás de Aquino se pudesse encontrá-los: "que pode ter pensado Deus quando criou os pernilongos?" Ahhhh! Ia ser preciso muuuuita teologia sofisticada para me explicar isso! Por isso ser pernilongo também não ambiciono. Até porque, se entrasse em quarto humano, seria como adentrar a câmara de gás de um campo de concentração nazista. Sem perdão.

Nascer foi de longe a coisa mais estranha que já me aconteceu. De repente acordei num lugar e num tempo e numa situação que não pedi, não escolhi e não entendi até hoje porquê. Por que 1984? Por que São Paulo? Por que Brasil? Por que filho de meus pais? Por que, mais ainda, homo sapiens? E por que terráqueo? Mais ainda: por que sou? Quem me içou para fora do poço do nada? E por que demoraram tanto? E por que não demoraram mais?

Agora todos os outros destinos estão para mim perdidos. Só posso imaginá-los! E não nego que seja divertido. Se a vida nos limita a um único destino, pelo menos quem é homem tem o privilégio de sonhar com mil outros.

Tudo é um grande mistério. Me ocorre frequentemente essa questão absurda: onde estava eu antes de 1984? Já que não estava ocupado sendo esse babaca que vos fala, me parece mais ou menos lógico que "eu" estivesse livre para ser outras coisas por aí. Será que as fui e serei? Outros destinos: será que os vivi e esqueci? E que outros viverei, me esquecendo deste? O que hoje acho é só isso: que posso correr até o fim do mundo, mas não me movo de mim. E que posso nadar na correnteza do tempo, sempre mudando, mas sempre moro preso neste corpo perecível que, daqui a pouquinho, vai ser só um punhado de pó que o vento soprará pelos desertos do esquecimento.