(RUBEM ALVES, As Cores do Crepúsculo)
O professor de "Sociedade dos Poetas Mortos", como lição que servisse como porta de entrada para a sabedoria, dizia aos seus discípulos: "remember, folks: you're food for worms" (lembrem-se, companheiros: somos alimento para os vermes). É preciso que esse trágico destino seja sempre relembrado! Porque não - nós não vivemos na devida consciência da morte. Lembramos muito de vez em quando que somos bonequinhos de matéria, carne e osso e veias recheando um esqueleto, com o túmulo já aberto, nos esperando. A vida cotidiana é, dizia o Ernest Becker, uma imensa campanha de negação da morte. Todo mundo finge que é eterno. Não surpreende, pois, que nos amemos tão pouco e que vivamos tão mal. Aprender a morrer é aprender a viver.
Que criaturas efêmeras tão inconscientes de sua efemeridade! Iludidas pelos holofotes e pelas vitrines, pelos tubos catódicos e pelos carros do ano, pelas fofocas e pelas putarias, pelos dias que sempre teimam em nascer e as estações que voltam sempre parecidas - o inverno sempre frio, o verão sempre quente... - ficamos com essa noção de que o tempo gira em movimento de rotação. Que há retorno. Mas não há! Na estrada do Tempo é impossível transitar na marcha-ré.
OS INSTANTES NÃO VOLTAM JAMAIS.
Jamais. Cada momento é crepuscular. Nunca mais vai voltar. E não, na minha vida normal, na nossa triste vida normal, não vivemos em plena consciência disso. Tanto que os momentos em que temos essa "sacada" são quase de iluminação e epifania. Algo tão simples: essa percepção da verdadeira natureza do Tempo, que talvez seja libertação. Que talvez seja a chave que faça a vida desabrochar ao invés de minguar. O caminho, talvez, inclusive para o amor. Amará aquele que souber que os instantes não voltam jamais.
Saem milhões de pérolas brancas esvoaçantes de linda cor e luz de dentro de nós quando entendemos essas coisas. Que os segundos não voltam jamais. Que é preciso viver numa revirgindade perpétua da emoção. Sempre ser virgem para ser deflorado pelo momento que vem. Que é. Que sempre é. Pois o momento é uma bolha que explode. E quem o alfineta? O Tempo. Esse grande estourar de bolhas.
Quem vive confortavelmente embalado por esse som das ondas que fluem está na sabedoria, está na eternidade. Navegando nas águas da eternidade, mesmo que por tempo efêmero, mas olhando realmente para elas. Face a face. Viver sabiamente é viver de olhos abertos durante nosso passeio fluvial, na catarata corrente do fluxo, contemplando com alegria as águas da eternidade. Que são belas. E fizemos parte delas, por um tempinho. Só conseguimos ser eternos por um tempinho. Só nadamos na eternidade por um tempinho. Somos efêmeros nadando no eterno.
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CADA INSTANTE É IRREPETÍVEL.
OS MOMENTOS NÃO VOLTAM JAMAIS.
Verdades que precisam se fazer CaRNe!
Não é pra analisar linguagem! É para analisar a verdade que a linguagem carrega. QUANDO O DEDO APONTA A LUA, O TOLO FICA OLHANDO PRO DEDO. Até dedos feios podem apontar para lindas luas. Frases feias podem conter verdades reluzentes. Não é só grudada à beleza que viaja a verdade. Ela às vezes se esconde, feito grego no cavalo de Tróia, por trás das vestes mais insuspeitas. Amargas, azedas, sanguíneas, viscerais. Pode vir de contrabando, por baixo do pano, como uma carta que se roubou na hora de embaralhar.
Fornecer peso de “nunca mais” a cada instante.
Se bem que falar "instante" já mutila o todo do Tempo. Falar em "segundo" já é falar numa invenção humana. Não é que o Tempo seja tipo uma régua, cheia de fiozinhos sujando o horizonte. Não é assim que o Tempo é! Percebo mais como um fluxo limpo, apesar dos banhos de sangue que gera. Sem estacas demarcatórias. Estas, nós é que inventamos. É o que se chama dias, semanas, meses, anos, séculos. Riscos pretos na nossa régua que impedem de ver direito o desenho lá atrás. O Desenho lá Fora.
O Tempo não tem a pele mutilada como o nosso tempo. Que é contável. O verdadeiro Tempo não se pode contar. Quando se começa a contar, volta-se à mutilação e à miopia. Não é contar o que se deve. É embarcar. Simplesmente embarcar. Nadando pelas águas da eternidade de olhos sempre bem-abertos. Vivendo cada evanescível momento com a clara consciência de sua raridade, sua emergência, sua irrepetibilidade. Tudo, sempre, é irrepetível. Isso que agora é, nunca mais será assim. Não volta. Os romanos não voltam. Os gregos não voltam. O século 18 não volta. O ontem não volta. O hoje também não. O amanhã não volta. Não há dois amanhãs iguais.
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Perceber que os instantes não retornam jamais é o mesmo que tomar consciência da morte - ela que não é um momento, mas um processo: a perpétua dissolução e reconstrução dos átomos que dançam, fluindo.
Todo mundo diz saber que sabe que vai morrer. Mas quase ninguém vive nessa consciência. É difícil habitar esses desertos. Mas é necessário. Pois só à beira deste abismo, quando se percebe que a morte é real, que se é somente um corpo de carne nadando à deriva nas águas da eternidade, faz-se a compreensão de que os instantes não voltam jamais e abre-se assim a porta para o amor, fonte daquele céu em vida que é o único que vale. Isso é sabedoria. Não há sabedoria sem essa consciência de efemeridade. É a única coisa que pode pintar de reluzentes cores a pele dos momentos. E é neles, e só neles, que se pode ser feliz.
A gente não se percebe mutuamente efêmero. E o amor é difícil de nascer se não for desse fundo de efemeridade. Talvez não exista amor sem essa tomada de consciência. Só há amor porque há morte. Melhor: só há amor quando sabe-se que há a morte. Por isso os animais não amam. No universo conhecido, só há amor para seres que foram capazes de desenvolver a auto-consciência a tal grau que notaram-se efêmeros. Macaco algum consegue, ou estaria já andando com cara de homem.
Só têm fome de amor aqueles que sabem que vão morrer. E quando a gente percebe que vai morrer é que a necessidade de amor é maior. Por isso na maior parte do tempo não precisamos de amor. Pois esquecemos que somos mortais. Alguns habitam esse esquecimento como os favelados um barraco no morro. Vivem mal.
Não é que a gente dure para sempre. Não tem nada a ver com isso. Claro que morremos. Mas vivemos na eternidade que é o do Universo fora de nós, que existe de modo independente de nossa percepção dele. Não é porque vai se prolongar indefinidamente no futuro que o tempo é eterno. É eterno pois agora ele é imensurável. Agora é que é eterno, não na "eternidade" dos cristãos, que é pra depois, que "um dia vai começar". A eternidade não VAI começar - a eternidade JÁ É! Estamos nela. Nadamos nela. Estamos rodeados por ela. Mas frequentemente de olhos vendados.
(A salvação está menos na inteligência do que na abertura da percepção. É o que tantos já disseram, que a sabedoria não está com a razão, mas que é preciso de muita razão e trabalho racional para que a razão descubra sua própria insuficiência e a necessidade de se transcender. Pois a razão é gaiola. Pode haver um grau tamanho de fusão no real que a morte desaparece como problema. )
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Talvez por isso a arte, os poemas, os quadros, as múmias, as fotografias: tentativas de reter em um cofre as bolhas de sabão que o Deus-Tempo estoura. Cronos devorando seus filhos. Nós tentando resgatar os momentos do massacre. Querendo reter os instantes irrepetíveis. O que nos dá a ilusória sensação de permanência. Mas talvez seja uma coisa como um pássaro se debatendo numa gaiola a consciência querendo se auto-registrar e registrar as acontecências do mundo. Registro eterno é burocracia. Nossa consciência vive em estado de burocracia até o limiar da Iluminação. A Iluminação exige o fim da burocracia mental! Saber que se precisa registrar é um passo. Pois há quem viva na completa vulgaridade. Sem perceber que cada bolha de momento é infinitamente rica e irrepetível. Somos todos nós, quase a maior parte do tempo. A descoberta do fluxo de consciência pelos escritores modernos deve ser decorrência dessa percepção que faz o artista: da efemeridade dos conteúdos da consciência. Que é eternamente fluida. Ao menos entre nascimento e morte. É tudo o que podemos saber. Mas pra quê registro? Pra quê tanta encanação com a retenção? Frente aos instantes que passam, cada um desfilando pela primeira e última vez no palco do universo, o registro é menos importante do que a atenção ao espetáculo. O importante é vivê-los, os instantes, degustando-os. Comer um a um como o mais suculento dos morangos.
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