quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

da série: crássicos do roque moderno



"The Sophtware Slump" (2000)
e "Sumday" (2003)


Só pintando um quadro apocalíptico do futuro da humanidade dá pra entender qual é o grande charme do Grandaddy. Então vamos brincar de pessimismo e imaginar um climão de distopia:

A humanidade vai penetrando cada vez mais - e sem volta... - em ambientes industrializados e artificiais, onde a natureza que nos circunda foi completamente transformada e não há mais quase nada que denuncie como tudo era em seu estado original. Tudo tende a piorar. Vamos ir cada vez mais nos afundando na areia movediça de nossas criações, nossas máquinas, nossos computadores, nossos robôs, perdendo gradativamente, mais e mais, o contato com nossa Fonte Primordial, a antes tão adorada Mãe Natureza, hoje abandonada...

As grandes metrópoles, esses verdadeiros formigueiros humanos, decoradas com outdoors, placas de néon e telões de cristal líquido, irão nos afastar muito mais do que nos aproximar; hoje já nos fechamos à chave em nossos apartamentos, rodeados por tijolo, concreto, fios elétricos, fuzíveis e canos, nos auto-enjaulando em espaços fechados em nome da “Segurança” e do “Conforto”. Trabalhamos em escritórios e redações, bundas-quadradas à frente de um computador ligado 12 horas ao dia, a pele pálida por não ver bronzeamento que não aquele que emana da tela brilhante do monitor ou dos raios catódicos da TV... Nos movemos dentro de cápsulas locomotivas cada vez mais hermeticamente fechadas e blindadas, respirando o oxigênio enlatado pelo robô condicionador de temperaturas.
O ar que respiramos está tão contaminado pelo monóxido de carbono dos escapamentos e das fábricas, e a chuva que cai é tão ácida, que é como se vivêssemos num ambiente de guerra. As câmeras escondidas observam tudo com seus intrusos olhos de vidro, pequenos big brothers espalhados por aí, tornam a sensação de estar sendo vigiado cosntante: perdemos toda a espontaneidade e o mundo se tornou um palco onde não deixamos de ser atores por um segundo sequer.
Deixamos o piloto automático dirigir nossos aviões e se tornarem senhores de nossa vida e morte - e quase esquecemos que a máquina, que é simples e burra, é o piloto. Os barulhos vomitados pelas desktops, as turbinas de aviões e os escapamentos de carros são a verdadeira trilha-sonora de nossas vidas.

Com a disseminação das novas tecnologias de comunicação, raramente nos encontraremos – e tudo isso tende a piorar de maneira horripilante. Logo não trocaremos mais endereços para que possamos nos visitar, nem marcaremos encontros no boteco para ir papear; nos falaremos unicamente através de chats virtuais, scraps e torpedos; expressaremos sentimentos através de emoticons, cartões virtuais, e-mails e mensagens gravadas nas caixas postais dos celulares...

Quando as pessoas se encontrarem concretamente, cada uma delas estará trancada no seu próprio mundinho, com os ouvidos ocupados pelo iPod e os olhos pelo laptop; se quisermos olhar nossos amigos cara a cara, não iremos direto até eles, mas entraremos numa cyber-conferência com webcams; nosso número de RG logo será obsoleto: muito mais importante será nosso e-mail, nossos códigos de MSN e Orkut, nossa “identidade virtual”; os contatos humanos concretos - duas pessoas no mesmo ambiente, frente à frente, podendo se tocar e se olhar no olho - irão diminuir cada vez mais, até que praticamente todas as nossas relações sejam esfriadas cruelmente pela mediação da máquina morta e calculista que nos ligará uns aos outros.

Cada um se fechará num individualismo e num isolamento nunca antes experimentado na civilização ocidental e só falaremos uns com os outros através da parede de fios, redes e conexões que as máquinas nos possibilitam. Os robôs, criados para nos libertarem, terão nos escravizado: teremos nos tornado muito mais parecidos com eles; teremos nos contaminado, nos tornado artificiais, mecânicos, maquinais. Logo colocaremos "ar condicionado nas florestas", iremos para praias artificiais, com ondas fabricadas mecanicamente, nos bronzeando em cápsulas fechadas, bombardeados por todos os lados por raios catódicos e toneladas de informação inútil, até que, finalmente, estejamos todos totalmente neuróticos e infelizes e desesperadamente procurando algum canto da Terra onde ainda exista Natureza bruta. Provavelmente milhões irão embarcar para outros planetas, mesmo que inóspitos, cansados do inferninho em que este aqui se tornou...

* * * * *

Sei: o quadro é apocalíptico, exagerado e não muito plausível, mas é preciso ter em mente esse retrato sombrio para entender e curtir a mensagem do Grandaddy, uma das mais originais e interessantes das bandas americanas dos últimos anos. Porque o sentimento prevalecente na música do Grandaddy parece ser a nostalgia por um mundo rural e bucólico que vai lentamente escorrendo para o irrecuperável passado com o avanço da Era Digital: o tipo de “virgindade natural” que parece escoar pelo ralo da modernidade em velocidade cada vez mais rápida. Pense bem: quantos quilômetros você precisa percorrer, hoje em dia, para descobrir um mísero pedaço de terra onde não se veja nenhum sinal de contaminação humana? "Everything beautiful is far away...", dizia o título de uma velha canção dos caras, e isso diz muito sobre essa melancolia grandaddyana que está dispersa em quase todas as músicas da banda.



O som do Grandaddy, um tanto paradoxal e ambíguo, coloca lado a lado o moderno (um “space-rock” seguindo os rastros de OK Computer do Radiohead, The Soft Bulletin dos Flaming Lips, Deserter’s Songs do Mercury Rev...) e o arcaico (um folkzinho semi-caipira de melodias grudentas, que lembra Neil Young). É arte feita de dentro da Era Digital, por gente afogada num contexto tecnológico e cultural totalmente século 21, mas que parece gostar mais da idéia de serenatas à luz lunar e rodinhas de violão ao redor da fogueira do que de multidões sentadas frente a seus computadores. O sonho do Grandaddy: criar um refúgio retrô no centro da modernidade. É um protesto neo-hippie nascendo no seio da pós-modernidade.

Quando The Sophtware Slump foi lançado, em 2000, o espanto causado pelo lançamento do OK Computer, de 1997, ainda não havia passado. Não foram poucos os que acusaram o Grandaddy de lançar um mero álbum-imitação que, apesar de excelente, não chegava aos pés do clássico instantâneo que o Radiohead acabara de parir. A acusação de “plágio” tinha até um pouco de razão de ser: em The Sophware Slump estava lá a mesma ideologia anti-tecnológica, os mesmos climões claustrofóbicos e espaciais, a mesma insegurança em relação ao destino da humanidade na Era Digital, a mesma música espacial e melancólica, os mesmos vocais agudos e alongados...

Mas hoje já não dá mais pra dizer que o Grandaddy era só uma banda seguindo a trilha de Thom Yorke e companhia: os dois grupos parecem ter se movido em direções absolutamente opostas. Enquanto o Radiohead declarava a morte da melodia, a obsolescência da guitarra elétrica e se punha a enfiar eletrônica experimental no caldo de Kid A e seguidores, o Grandaddy, pelo contrário, pareceu erguer a deusa Melodia para o mais alto trono e caprichou ainda mais nos refrões cantaroláveis e na vocalização humanizada e quente. Sumday, perto de Kid A e Amnesiac, é um disco quase de power pop – e o ambiente do Grandaddy, muito mais respirável e doce do que aquele do Radiohead. E o adorável vocal de Jason Lytle é muito menos agoniado e dolorido: é como se Thom Yorke, ao invés de ter se jogado no futuro e decidido passar sua voz através de efeitos modernosos de produção, como fez em Kid A, tivesse querido ressuscitar a simples nudez do cantor folk à la Neil Young da era pré-computador...

É como se emanasse dos discos um ideal hoje visto com um certo desprezo por quase todos os moradores de megalópoles industriais: o ideal do retorno a uma vida mais simples, dedicada à contemplação da Natureza e aos contatos humanos mais diretos e imediatos. Os caras do Grandaddy parecem ter saudade daqueles belos clichês dos ideais bucólicos que muitos hoje julgam antiquados e obsoletos: algo como gaivotas brancas voando ao redor da casinha campestre, ziguezaguenado pelas árvores do pomar, enquanto as crianças fazem castelinhos de barro no quintal e dão seus mergulhos eventuais no lago, ao pôr-do-Sol.

Com uma certa melancolia, o Grandaddy vai soltando mó papo natureba, como se nos perguntasse, sem vergonha se soar ridículo: onde deixamos de lado o desejo de conexão profunda com a Natureza em seu estado puro e desumanizado? Por que não olhamos mais para as estrelas, não escancaramos mais as nossas janelas, não respiramos o ar em toda sua pureza original, não abraçamos as árvores nos campos, não rolamos na grama molhada pelo sereno, não nos sentamos na areia quente da praia para contemplar a dança fluida das ondas? Hippie pra caralho, eu sei. Mas eu gosto.

Uma das maiores originalidades da banda é o fato de o Grandaddy compor muitas músicas utilizando uma máquina como eu-lírico. A banda imagina um mundo, que hoje não é tão remoto e inimaginável, onde nossos robôs e eletrodomésticos seriam seres dotados de inteligência artificial e de sentimentos humanos, e isso abre uma possibilidade nova para a poesia, que tentará mostrar o mundo como visto através da perspectiva de um robô confeccionado pela humanidade e que se transforma num OUTRO (um amigo, um animal de estimação, um co-piloto, um substituto, um carrasco...). Como já haviam feito com Jed, o Humanóide, um dos personagens que povoa "The Sophtware Slump", a banda utiliza em “Sumday” outra máquina inteligente e sentimental como eu-lírico em “I’m On Standy”.

Contra a parede desumanizadora das máquinas, descritas meio paranoicamente como um exército alinhado em formação de guerra contra a humanidade, o Grandaddy vai sugerindo outro tipo de ideal de vida. Muitos versos da banda explicitam uma admiração da Natureza sem o Homem - pura, imaculada, não-transformada. O bonito é "o vento soprando através das folhas" ("The Go In The Go For It") e a vida ao ar livre: "pinto com as palavras um desejo simples / por paz mental e felicidade" ("El Caminos In The West"). O que eles parecem desejar não é o progresso material, não é a construção de arranha-céus e shopping centers, não é o empilhamento de eletrodomésticos na casa dos cada vez mais pálidos e lânguidos humanos – a música do Grandaddy nos dá o sentimento de que não precisamos de nada disso, só de um pouco mais de simplicidade, de paz de espírito e de desencanação quanto à tecnologia.

“Estoure a fechadura da sua porta de entrada. Assim que você estiver lá fora você, não irá querer mais se esconder. Acenda a luz na sacada da frente. Uma vez acesa você nunca mais irá querer desligá-la!”, cantam eles na primeira faixa de Sumday, “Now It’s On”. Já em "The Group Who Couldn't Say", nos contam uma fábula sobre um grupo de comerciantes tão workaholics, tão acostumados a trabalharem trancados em seus escritórios apertando botões no computador, que já tinham esquecido que havia um mundo lá fora. Quando ganham um prêmio de seus chefes e vão dar uma passeio no campo, "descobrindo a perfeição d'um OUTDOOR DAY", ficam tão perplexos e embasbacados com o esplendor do espetáculo que não conseguem articular palavras.

Por isso essa banda é tão importante: porque eles chegam meio que questionando toda aquela utopia, surgida com o Iluminismo e elevada à última potência no fim do século 20 e começo do 21, de acreditar que o desenvolvimento técnico-científico traria um bem imenso para a humanidade e nos faria a vida muito mais confortável, segura e feliz. Falácia completa. Pois, pergunta o Grandaddy: quem disse que progresso rima NECESSARIAMENTE com felicidade? Quem disse que a o desenvolvimento tecnológico nos levará NECESSARIAMENTE ao paraíso? Para o Grandaddy, o "lago de cristal", um símbolo forte da natureza como algo místico e belo, “nunca deveria ter sido deixado pra trás” e nunca deveríamos ter ido “para áreas onde as árvores são de mentira”, como cantam eles na deliciosa “Crystal Lake” de Sophtware Slump.

Sumday e The Sophtware Slump são adoráveis reservas florestais sônicas no seio do mundo hi-tech, onde a tecnologia é usada como aliada mas nunca superestimada, onde os velhos ideais bucólicos não são nunca esquecidos, e onde podem sobreviver sem medo e sem culpa, num mundo musical cada vez mais dominado por batidas eletrônicas repetitivas e ritmos mecânicos, todas as doces melodias e todos os lá-lá-lás...

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