de Krzysztof Kieslowski (Polônia, 1988)
Eu achava estranho quando ouvia falar que o Kieslowski, o grande mestre do cinema polonês, tinha filmado uma série baseada nos 10 Mandamentos bíblicos – esse famoso e ultra-elogiado Decálogo, filmado para a TV polonesa em 1988 e composto por 10 médias-metragens de 1 hora cada. Estranho por quê? Porque todos os grandes clássicos do cara – como a Trilogia das Cores (A Liberdade é Azul, A Fraternidade É Vermelha, A Igualdade É Branca) e A Dupla Vida de Veronique – não me pareciam ter muito a ver com cristianismo: não encontro nesses filmes nem um pingo de misticismo ou de religiosidade. Então a curiosidade para ver o Decálogo era grande, não só pela admiração que eu já tenho pelo diretor depois de ter visto a Trilogia das Cores (e especialmente A Liberdade É Azul, que eu considero um dos melhores filmes dos anos 90); não só por causa do oba-oba quase unânime da crítica, que parece admirar sem reservas esses Decálogos, considerados como obras-primas do cinema universal; mas também pra ver o que é que saiu dessa improvável e surpreendente tentativa do Kieslowski de se meter a mexer com temas cristãos...
Agora que já enfrentei a maratona de 10 horas de Decálogos, em 3 dias de Mostra Kieslowski - uma adorável iniciativa do Centro Cultural São Paulo (com entradas francas pra todas as sessões, ainda por cima...) -, já posso me tranquilizar: minhas suspeitas mais horríveis não se confirmaram. Quais? De que o Decálogo seria um conjunto de “parábolas” bíblicas ilustrando os 10 Mandamentos, o que não me cheirava muito bem; ou que seriam filmes “moralistas”, beirando o catecismo, que iriam ficar nos enchendo a cabeça com “historinhas edificantes” e nos mostrando o "bom caminho"...
Ainda bem que nada disso é verdade: no Decálogo, Kieslowski é o bom e velho Kieslowski de sempre, o cineasta genial que nunca teve nada de panfletário, que sempre foi sutil e simbólico, e que sempre esteve muito mais comprometido em criar filmes que instiguem uma reflexão no espectador do que em ficar passando, de cima pra baixo, dogmas e visões prontas... Enfim, um grande mestre do cinema, em plena forma, cometendo filmes excelentes, que estão entre as melhores obras cinematográficas dos anos 80.
Dá pra assistir ao Decálogo inteiro sem precisar saber bulhufas sobre as minúcias da ética cristã – esse não é um pré-requisito pra entender os filmes. Eles requerem sim muita atenção e um pensamento veloz para acompanhar e decifrar as informações e símbolos que vão se acumulando – não são filmes “fáceis” de ver: são "cerebrais" pra caramba, com um andamento vagaroso, sem sinal de sentimentalismo barato ou hollywoodianismos. Eu, por sinal, que não prestava nenhuma atenção às minhas velhas aulinhas de catecismo, nem sei recitar de cor os 10 Mandamentos e fui assistir aos filmes sem nem saber qual mandamento correspondia a qual episódio; e descobri que isso, no fundo, nem importa tanto. Cada um dos episódios é perfeitamente assistível como algo completamente “pagão”, “laico”, “materialista”, “realista”... ou qualquer outro nome que indique a ausência completa de religiosidade ou superstição.
Não, esses não são “filmes religiosos”: nada neles foi feito para nos “catequisar” e moralizar. Não há nem sinal de nenhum “papinho de padre”. Em nenhum momento se sente que Kieslowski está sendo qualquer coisa parecida com um “dogmático” – o que já é uma qualidade imensa para uma obra com essa temática. O grau de “moralina”, pra usar o irônico apelido que o Nietzsche dava pros papos “moralizantes”, é mínimo, quase inexistente. Esses são filmes muito mais sobre moral do que sobre religião; muito mais simbólicos e poéticos do que dogmáticos; muito mais “realistas” do que místicos... e deles Deus está completamente ausente: são filmes sobre os homens e suas relações, abandonados debaixo de um céu de onde jamais cai ajuda alguma. O que não é nada mal para um filme que até o Vaticano classificou em sua lista de filmes recomendados...
Deus está ausente em todos esses filmes - e era até esperado que assim fosse... Afinal, o contexto histórico de onde eles emergiram não tinha lá muito a ver com os valores cristãos. Os Decálogos saíram todos de um país que, como todos os outros do bloco comunista, era considerado oficialmente “ateu” e que, além do mais, vivia naquela época uma fase de crise séria. Com o colapso da União Soviética e as imensas decepções com o Sonho Comunista, depois do pesadelo estalinista, aquele era um momento de confusão, de incerteza e de busca por novos valores... Toda a “ambientação sócio-política” do Decálogo de Kieslowski é meio dark, meio sombria, meio decadente... algo que me lembrou vagamente do cenário de fundo dos romances do Milan Kundera, aquela Tchecoeslováquia meio devastada e lúgubre...
Tudo aqui se centra nas relações humanas, quase sempre numa narração realista, mas que não deixa de terem quase sempre um “fato extraordinário” acontecendo: um assassinato que dá em pena de morte; um sequestro de uma criança; uma herança multimilionária; uma tentativa de suicídio depois de um desencanto amoroso; descobertas que chaqualham vidas familiares... Todos os filmes são de alta qualidade; é incrível como em nenhum dos episódios a coisa desanda ou cai de nível. Em todos eles se colocam questões que o espectador leva consigo, ao final da sessão, com muita coisa pra pensar, e sobre os mais variados temas. Isso é uma das coisas que mais me agradou: a variedade temática, a diferença às vezes radical entre as histórias, as questões diferentes que elas vão erguendo na cabeça e no coração do espectador...
Fiquei imaginando, por exemplo, uma pesquisa de opinião na saída das sessões do Decálogo onde os espectadores seriam perguntados, à queima-roupa, se tal ou tal personagem tinha agido “certo ou errado”. Quase certeza que a grande maioria das pessoas se sentiria em sérias dificuldades pra dar uma resposta rápida e convicta a essa pergunta. Muito mais comuns seriam os “Não sei, me deixa pensar...” e os “É complicado dizer...”. E talvez aí esteja a maior das qualidades desses filmes de Kieslowski: o fato de que eles nos fazem suspender nossos julgamentos e nos entregarmos à reflexão, descobrindo que nada é simples e claro no domínio da moral e que fazer juízos de valor sobre as pessoas com base em leis de dois milênios atrás é algo meio sem noção...
Sim, vários desses personagens acabam por desobedecer a um dos mandamentos bíblicos, mas de forma alguma a narrativa do filme, e o envolvimento emocional que ele faz com que se estabeleça entre nós e os personagens, permite julgamentos sumários e simplistas. O efeito geral do Decálogo é nos mostrar que, em certas circunstâncias, é muito possível e compreensível (e irrepreensível...) quebrar um dos mandamentos, e que isso por si só, o fato de quebrá-lo, está longe de ser o bastante para que seja correto chamar a pessoa de “má”...
Em vários filmes, os personagens estão explicitamente burlando ou quebrando um dos mandamentos, mas em nenhum momento estão sendo “condenados” pelo maestro Kieslowski como vilões ou bandidos. A coisa é muito mais complicada do que o maniqueísmo cristão costuma admitir. O padre dizia: “não seguiu um mandamento, está em pecado, está do lado do mau, vai parar no inferno se não se arrepender...” Kiewsloski parece retrucar: “devagar com o andor! Não é tão simples assim! E no caso de... e nesse outro caso de...?”
Um dos grandes triunfos de Kieslowski é colocar seus personagens em dilemas éticos difíceis de solucionar – e para os quais os mandamentos são quase inúteis. O espectador é meio que convidado a observar essas situações cabeludas e se perguntar: “e eu, o que faria no lugar desses personagens?” Se eu fosse um médico e a esposa de um doente me perguntasse se ele tem chances de sobrevivência ou não, o que eu diria: a verdade, que poderia ser cruel, ou uma mentira, que poderia aliviar o sofrimento? Se eu fosse um advogado, aceitaria defender um assassino condenado à morte e tentaria encontrar desculpas para o seu comportamento cruel? Se eu recebesse como herança alguma coisa que foi hiper-querida por meu pai, mas que tem um valor monetário imenso, conservaria a coisa ou a trocaria por dinheiro? Se eu, depois de me casar, descobrisse que sou impotente, daria permissão para que minha esposa transasse com outros homens, mesmo que isso fira o pacto sagrado de fidelidade feito na igreja?
Por isso eu vejo esses filmes não como moralistas, de jeito nenhum, mas como narrativas muito mais preocupadas em demonstrar o quanto é complexa e cheia de detalhes complicadores toda a problemática da ética. Depois de assistir ao Decálogo, com todas as questões espinhosas que ele nos coloca, parece até ridículo aquele simplismo quase infantil dos imperativos dos Dez Mandamentos. Será que alguém realmente consegue se pautar por aquilo lá para agir nesse mundo? Aquelas 10 frasezinhas simplórias, se seguidas à risca, realmente são o que basta para eu me torne um “homem bom”? Toda a experiência – valiosíssima, aliás... – de assistir ao Decálogo, na íntegra, parece dizer que não: os 10 Mandamentos podem quase ser amassados e jogados no lixo, porque a imensa complexidade da vida humana, e a extrema variabilidade das circunstâncias, exige de nós um tipo de ação correspondente a cada situação. O esforço de Kieslowski parece estar muito mais em relativizar e em mostrar que a pretensão de que esses mandamentos valham absolutamente, em todos os casos e em todos os tempos, é furada, invivível no mundo real. Cada caso é um caso, a ser julgado muito mais com bom senso, bondade e compaixão do que com respeito cego a dogmas tradicionais; cada situação é nova, acabada de nascer, e tem de ser enfrentada com abertura e criatividade, e não numa atitude que siga mecanicamente preceitos cristalizados e mortos...
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O Decálogo I pode até parecer um tanto inofensivo, mas é só esperar que o desfecho chegue para notar o poder que estava ali escondido. O filme vai fluindo devagar, sem que nada de escandaloso dê sinal de que vai acontecer, até que no final surge o “choque” – e aí, enquanto os créditos aparecem, você olha pro público e vê que ele está ali, quieto e pasmo, totalmente devastado pela angústia que o filme acabou de transmitir... Esse é um filme que fala com a tranqüilidade de uma parábola, mas que acaba tendo o efeito emocional brutal de uma tragédia. Um dos filmes mais tristes da série de Kieslowski, talvez da história do cinema - tão triste, mas tão triste, que até as lágrimas se desanimam e não se decidem a cair...
Esse é o único dos 10 Decálogos que se presta a uma interpretação mais moralista. À primeira vista, parece uma fábula mostrando a fúria de Deus ao punir (e com que crueldade...) uma certa pessoa por seu “ateísmo” – ou por idolatrar outros "deuses": a razão, a ciência, a tecnologia. É uma das interpretações possíveis, talvez a mais comum, mas o filme, claro, pode ser visto também como algo que não tem nenhuma ligação com o sobrenatural, só colocando em questão o culto da racionalidade e a nossa confiança por vezes um tanto cega na tecnologia, nada mais.
Kieslowski, provavelmente, gostou de deixar sua obra nessa indecisão e entregar ao espectador um dilema. A hipótese de uma intervenção divina punitiva é uma das interpretações possíveis, mas também é igualmente possível dizer que a tragédia toda não tenha passado de um acidente, de um triste acaso, de uma mera falha de cálculo... É como se o diretor nos entregasse um problema espinhoso para que decidamos por nós: a tragédia acontece porque Deus resolveu intervir e punir um “pecado” ou tudo não passou de uma mera questão de uma criança estar no lugar errado na hora errada?
O Decálogo I trata principalmente da relação entre um pai e um filho debatendo questões existenciais e religiosas. O menino, uma das crianças mais lindas que eu já vi numa tela de cinema, está sempre com aqueles olhinhos arregalados, totalmente fascinantes, de quem se espanta por estar vivo e se espanta por não entender muita coisa do mundo ao seu redor... Já o pai, um racionalista agnóstico, evita vender consolos mitológicos para as perguntas mais fundamentais que o filho lhe faz. Por exemplo:
Quando o garotinho pergunta sobre a morte, o destino das almas e o porquê da vida ser finita, o pai não solta uma única palavra que cheire à religião ou superstição. “Por que as pessoas morrem?”, pergunta a criança. E o pai: “porque o coração ou o cérebro param de funcionar, porque o corpo não aguenta e ‘quebra’....” Essa explicação meramente física, obviamente insatisfatória para a curiosidade do menino, é tudo o que ele fornece: afinal, é tudo o que ele sabe. Quando o menino pergunta “existe uma alma que sobrevive à morte?”, o pai, na maior sinceridade, sem aquela arrogância que tem muitos adultos, que fingem saber muito melhor que as crianças as respostas pra essas questões, responde, simplesmente, que não sabe - só sabe que “muitas pessoas vivem mais confortavelmente acreditando nisso”.
Respostas completamente sensatas. Só um religioso fanático e dogmático, daqueles que obriga o filho a recitar versículos bíblicos toda a noite, segurando a palmatória, poderia considerar isso um "erro pedagógico" ou um "pecado". Esse pai certamente não é um crente, mas também está longe de ser um ateu convicto que queira proibir o filho de adotar uma religião, se ele assim o desejar, nem alguém que vá obrigar o pequeno a não crer. E é isso que faz o desfecho do filme ser tão terrível: no fundo nós sentimos o quanto aquilo é absurdamente injusto. O sofrimento que é imposto a esse pai é completamente desproporcional aos seus “pecados”, se é que ele cometeu algum.
Quando o menino acaba sofrendo o acidente no gelo, o que lhe condena a uma morte ultra-dolorosa (imagino), alguns podem ler nisso uma parábola onde Deus estaria se vingando de um pai que, feito uma ovelha desgarrada do rebanho, ousou “trocar” de deus. O problema é que uma interpretação desse tipo, que só um cristão meio fanático seria capaz de fazer, levanta tantos dilemas espinhosos que, no fundo, acaba complicando muito mais a coisa do que esclarecendo. Por que, afinal de contas, que diabo de Deus é esse? No meu modo de ver a coisa, um Deus desse tipo, se existisse, seria absolutamente revoltante! Um Deus que mata uma criança inocente e totalmente pura para punir o pai por não ter fé? Um Deus que condena um homem a um sofrimento insuportável só porque ele não podia ter certezas religiosas e só porque não comunicava dogmas prontos ao filho? Um Deus DIABÓLICO desses?!?
E, se me perguntarem, eu vou dizer com toda convicção (tudo bem que influenciado pelo meu ateísmo...) que esse pai não fez absolutamente nada de errado - ao contrário, agiu sempre de um jeito muito sensato, tolerante, sincero e amoroso, tratando o seu garotinho com uma correção irrepreensível. Por isso eu, na minha interpretação pessoal do filme, prefiro descartar a hipótese da punição divina (simplesmente porque um Deus desses me encheria de nojo...) e ficar mesmo com a hipótese trágica de um acaso infeliz... Prefiro acreditar que vivo num mundo sem nenhum Deus, mesmo que nele as crianças inocentes às vezes morram, sem nenhuma razão, do que acreditar que esse mundo é regido por um Deus sanguinário, diabólico, assassino de crianças...
Mas tudo o que fica claro, no desfecho do filme, é a devastação imensa que o episódio tem sobre o espírito desse pai: em 1º lugar, ele está sendo devorado pela culpa, já que tinha dado permissão para que o filho fosse brincar lá fora, após ter calculado que não havia perigo. Em 2º lugar, se torna completamente incapaz de acreditar em Deus, como parece sugerir a cena em que ele entra na Igreja e destrói com raiva o altar – pois como seria possível crer num Deus tão cruel, tão vingativo e tão sádico? E, como se não bastasse, perde também a capacidade de seguir seu “culto à racionalidade”, que acabou de traí-lo.
A pergunta “a morte do menino foi uma punição de Deus ou foi mero efeito do acaso?” permanece sem resposta – e Kieslowski provavelmente queria que fosse assim. Tanto que, num dos símbolos mais poderosos que eu já vi numa tela de cinema, a mesma ambiguidade permanece: na cena da igreja, a Virgem Maria parece estar chorando lágrimas brancas, pingos de cera caídos de uma vela escorrendo... "milagre ou acaso?", eis a questão! O filme se acaba e não diz nada de concludente: a única certeza que temos é a da devastação interior daquele pai, subitamente lançado ao inferno e ao sofrimento mais injustificável – mas por quem!? Por Deus ou pelo acaso?
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