terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Marina.




[ post dedicado à Liza! (mas não a Simpson...) :D ]

QUARTO DE PENSÃO

Sou pensionista da vida.
Na mesma tábua em que durmo
escrevo meu trabalho
e ela farfalha, embora já sem folhas,
só da lembrança de ter sido tronco.
Tenho uma pia no canto,
que goteja,
e é meu lago, meu rio, meu
fundo mar.
Tenho um rijo cabide
à cabeceira
para dependurar a pele
a cada noite.
Me dão café com pão, e às vezes
algum vinho.
Dizem que só paguei meia pensão.

Há uma fome indistinta que me habita
enquanto o medo
com felpudos passos
percorre o labirinto das entranhas.
Mas agradeço essas quatro paredes
e que me tenham dado uma janela.
Pois sei que a qualquer hora
sem possibilidade de recurso
e talvez mesmo sem aviso prévio
serei intimada
a devolver o quarto.

* * * * *

TUA MÃO EM MIM

Você me acorda no meio da noite
e eu que navegava tão distante
cravada a proa em espumas
desfraldados os sonhos
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
a boca ainda salgada mas já amarga
molhada a crina
encharcados os pêlos
na maresia que do meu corpo escorre.
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
A correnteza arrasta.
Só quando o primeiro sopro escapar
entre os lábios da manhã
levantarei âncora.
Mas será tarde demais.
O sol nascente terá trancado o porto
e estarei prisioneira da vigília.


* * * * * *

MEU AMIGO AO NÍVEL DO CHÃO

Quando vi meu amigo morto
deitado ao nível do chão
coberto por um pano
- ou teria sido plástico -
temi por ele
temi que baratas pudessem.
Por que temer insetos
se em breve ele entraria
terra adentro
noite adentro?
Por que temer
tão pouco
se dos temores
o maior
já não podia temer?


(in: Gargantas Abertas, de Marina Colasanti).


* * * * * *

E mais o txto, já meio famoso e muitas vezes citado, que me deu vontade de conhecer mais do trabalho da Marina:

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E por não ter vista, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E por não abrir as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia sobre as guerras de longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: "hoje eu não posso ir". A sorrir para as pessoas, sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho. Para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se compra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes. A abrir revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e assistir aos comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento dali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e o suor do resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola nos fins de semana. E se, no fim de semana, não há muito o que fazer, vai dormir cedo, e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele, se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquecer-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma"
.
(Marina Colasanti)