terça-feira, 25 de março de 2008

:: time keeps creepin' round the neighborhood ::


I am waitin' 'til I don't know when,
cause I'm sure it's gonna happen then.
Time keeps creepin' through the neighborhood,
killing old folks, wakin' up babies
just like we knew it would.

All the neighbors are startin' up a fire,
burning all the old folks, the witches and the liars.
My eyes are covered by the hands of my unborn kids,
but my heart keeps watchin'
through the skin of my eyelids.


ARCADE FIRE, Neighborhood #4


gosto muito daquela anedota do poeta e da empregadinha doméstica, que nem me lembro mais onde ouvi ou quem me contou: ele, o poeta, andando pelas ruas, todo perdido em devaneios, olhando para as estrelas e inventando nomes para as constelações, mirando as nuvens e imaginando com quê elas se parecem, entretendo-se com suas namoradas imaginárias e com os versos que pensa escrever para conquistar aquela Dulcinéia del Toboso fantasmagórica que nunca vai ter, acaba frequentemente tropeçando nas pedras do caminho, dando de nariz com o poste ou sendo atropelado numa rua que atravessa sem cuidado, enquanto a empregadinha doméstica, sempre com os pés no chão e o olhar atentíssimo para os mínimos detalhes da vida cotidiana, nunca deixa o leite ferver e derramar, nunca queima o bolo no forno, não fratura osso algum por excesso de divagações etéreas e raramente se acidenta e se fere do modo como se estrepam os avoados e os sonhadores...

e esse é o jeito que eu tenho para me desculpar por ser tão desajeitado pra tudo que diz respeito a essa tal de vida prática: é que sou poeta e não empregadinha doméstica! Não é que me ache melhor - pois até gostaria de ter mais talento para essas coisas de mulherzinha, de general de quartel e de madre de convento (hehe!), mas, como dizia Rimbaud, "quanto à felicidade estabelecida, não, não posso..." E a bagunça que acabo fazendo por fora é mero efeito da bagunça que eu sou por dentro.

Não sei cozinhar muita coisa além de Miojo e congelados Sadia e meu arroz sai sempre ou queimado ou "papinha" (mas fervo uma água ma-ra-vi-lho-sa-men-te bem, meu!); não sei lavar roupa direito nem no tanque nem na máquina e a higiene nos meus dormitórios republicanos é sempre mal-feita (não a ponto de eu viver num chiqueiro, mas o suficiente para eu ser considerado o maior desleixado por qualquer mamãe amante da boa ordenação); meu quarto sempre recai na anarquia completa, por mais que eu faça, bem de vez em quando, minhas firmes resoluções de começar a ser mais ordeiro...; tenho só dois pares de tênis e sempre uso meus All-Star até o osso, achando que imundície é charme e que buracos dão mó "grau" estético pro bagulho; nunca compro roupas de grife e morreria de vergonha de andar num carro importado; não sei guardar documentos e certificados ditos importantes, que acabam sendo tacados por aí como todos os outros papéis da minha vida, eu que não sou nada carinhoso com papéis que não sejam o meu diário e as cartas que recebi; não costumo trancar direito os lugares quando eu saio, a ponto de ter saído pra viajar pra São Luís, no Carnaval, deixando meu quarto aberto em plena Cicerolândia da fase mais trash (pois trash foram todas)... Enfim, paro por aqui, pra não ter que escrever um parágrafo do tamanho do Ulisses só com exemplos de como meu cuidado com os bens materiais é mínimo...

e semana passada me roubaram a carteira (que aliás tava toda estropiada) e o celular (que aliás era dos de pobre, sem câmera, sem mp3, sem nada) lá no conjunto aquático da USP, onde fui lutar contra minha tendência ao sedentarismo com um mergulho e uma meia dúzia de chegadinhas de crawl que já me deixaram sem fôlego e me sentindo como um velhote tuberculoso. foi, sei lá, a quarta ou quinta vez que eu sou assaltado - e foi a vez mais light, pois não envolveu revólveres e ameaça de homicídio (como aconteceu quando eu tava na sétima série, indo pra escola com meu pai, e fomos abordados por dois malucos com trabucos na porta de casa) nem trombadões com o dobro do meu tamanho ameaçando me "furar" com um punhal (como aconteceu quando eu, ainda quase criança, fui surrupiado na volta da Igreja e Deus não quis nem saber de me salvar, o filho da puta...). e isso traz várias memórias ruins de volta, flashbacks de situações traumáticas: aquela sensação de impotência, de revolta inútil, de fraqueza frente a poderes que a gente não controla - aquela sensação de que há uma guerra latente entre os homens e que os meus bens, e a minha vida, pode ser perdida a qualquer momento se eu tiver o azar de colidir com quem não deveria... Uma angústia como de quem é sugado pela areia movediça - não! Melhor: de quem vai pisando em pedras sem saber se a próxima pedra é firme ou se vai se afundar na areia movediça.

Foi-se tudo no furto: rg, cpf, cnh, cartão do banco, carteirinha usp, uns 10 mangos, uns 20 tíquetes de bandeijão, todos os contatos telefônicos que eu tinha e todos os torpedos guardados no baú pouco confiável do chip - alguns deles com valor sentimental de souvenirs. Foi vacilo meu, claro, largar essas coisas dentro do armário do vestiário, sem cadeado. Fui otimista demais: não vai acontecer nada... As pessoas no fundo são boas e puras... Dentro dum câmpus universitário, esse templo do conhecimento e da sabedoria, não tem bandido não... Olha agora a minha cara de besta. Olha agora o tonto, o negligente, o vacilão, tendo que fazer altos lances: ir na delegacia fazer B.O., ir no Poupa Tempo tirar todos os documentos de novo, ir correndo pra casa da família por não ter um centavo no bolso pra jantar ou pra comprar um pãozinho sequer - nem a possibilidade de sacar nada no caixa eletrônico... Fuck!

ando mesmo distraído pra dedéu... outro dia fiquei desesperado, pensando que tinha perdido a chave do meu carro, e depois descobri a bichinha no contato, dentro do carro que esqueci com a porta destrancada, e que só não me roubaram porque... porque na USP não tem bandido! é o meu estado de espírito de ultimamente: tô tão afundado em outras preocupações e ansiedades e desejos e angústias, desde dilemas sentimentais até a tentativa de sacar o que é o Deus do Spinoza, sem falar na Crise Existencial Perene que é o Pano de Fundo de tudo que eu faço, sinto, penso e digo, que consigo ver cada vez menos valor em coisas. Coisas são só coisas. Que eu perderia se todas as minhas posses estivessem dentro dum apartamento que pega fogo? Meu próprio Tyler Durden me diz que não perderia muito: ainda teria a mim mesmo, e ainda teria um coração que bate, e ainda teria o universo como mansão, e ainda teria pessoas a amar, e ainda teria meus amigos, e ainda teria uma vida para viver... Depois de Into the Wild, depois do Clube da Luta, filmes queridos, e depois das minhas andanças pelos livros dos sábios orientais, fiquei dominado por essa extrema despreocupação pela minha vida material: nem corro atrás de emprego, nem jogo na loteria, nem sonho em fazer fortuna e tô pouco me lixando pros meus documentos, que não dizem nada sobre o que eu sou de verdade, e pros meus pedaços de papel convencionalmente tidos como valiosos, que (como Macca já dizia) can't buy me loooooveeeeee... Só desejo um pouco a glória (e ultimamente tenho posto muito tempo na tentativa de virar um rock-star com uma recém montada bandinha de punk rock, que promete começar a ensaiar com seus dois membros femininos em breve!), mas me digo que essa glória que eu fico desejando não é um desejo peçonhento e mundano: é mais um fluxo de admiração que sai das pessoas e vem pra ti, como jatos de amor jorrando de várias fontes... Visão bestalhona, eu sei, mas é fato que sonho e sonho de fato.

Gosto da apologia à vagabundície que faz o poeta...:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

(Álvares de Azevedo)

Mas as pessoas querem me colocar na linha, no caminho certo, na postura mais adequada para o sucesso mundano, realizando os fatos para ser bem-visto e bem-integrado à sociedade, e eu... eu acho que tenho uma alma muito insubmissa. Me deram o conselho mais excêntrico esses dias: "Você tem que ser mais maldoso!" A que ponto chegamos, para que isso tenha sido, sem sombra de dúvida, um conselho bondoso, isto é, algo que a pessoa disse inteiramente para o meu bem. Porque nesse mundo a gente não pode confiar em ninguém - qualquer um, por mais simpático e bacana que seja, pode ser um assassino disfarçado, um estuprador enrustido, um sacana hipócrita, um lobo vestido de carneirinho... E na cidade grande paranóia não é patologia, é só uma recomendadíssima técnica de sobrevivência... É preciso se preparar sempre para o pior e esperar das pessoas sempre o pior! Carreguemos todos nossos escudos! E os sprays de pimenta no bolso! E os revólveres carregados no coldre!

E eu ouço isso, esses conselhos tão sábios, e no meu coração eu digo não. Não! Não quero viver resguardando meus benzinhos materiais estúpidos, sempre com o cu na mão porque tá cheio de assaltante e bandido por aí... Não quero carregar comigo uma bolha invisível mantendo todo ser humano à distância, só permitindo que ele se aproxime depois de checar documentos, proveniência e intenções na alfândega das minhas fronteiras... Não quero morar em condomínio fechado, com dúzias de câmeras e guardas ajudando a tornar confortável a jaulinha, entesourando detrás de cadeados o meu ouro e as minhas jóias... Se for pra viver assim, prefiro não ter ouro, não ter jóias, não ter nada. Não quero viver me protegendo de nada.

E esperar das pessoas sempre o pior é um dos piores conselhos que já recebi. Lembro do Plainview do Daniel Day Lewis, no Sangue Negro, esse novo clássico do cinema americano, um dos melhores filmes desta década, nova obra-prima saída das mãos de mestre do Paul Thomas Anderson, e me parece que uma das coisas que faz com que esse personagem seja tão asqueroso, um vilão tão devastador, seja justamente isso: que ele só enxerga o lado ruim dos outros. Ele vê egoísmo e hipocrisia por trás de todos os atos e não confia em ninguém pois sabe que ninguém presta. E essa misantropia é horrorosa. E é misantropia pura o que nos recomendam para sobreviver nessa selva de pedra da metrópole em ebulição social. E misantropia eu dispenso. Eu acho é que nenhuma pessoa vai ser boa se nós não dermos a ela a possibilidade de ser, se não acreditarmos que ela pode, se não deixarmos aberta essa via... O maior dos filhos-da-puta é aquele que acha que todo mundo é filho-da-puta, que ninguém presta, que a natureza humana é má e fim de papo. É o tipo de pessoa com quem eu menos quero estar.

Quero ser como aquelas casas de interior que ficam de portas e janelas abertas, o dia inteiro, a madrugada inteira, não só pois não há nada a roubar, mas porque todos são bem-vindos e a hospitalidade é sempre vigente... Afinal de contas, nesse mundo nada é de verdade de ninguém e mesmo a vida não é nossa: foi só um empréstimo que a Natureza nos deu, permitindo seu usufruto só por um tempo, e que logo precisaremos devolver. A vida é uma caneta que um colega emprestou pra gente rabiscar um desenho e depois devolver a caneta, e depois entregar o desenho, só um rascunho, só uma primeira tentativa... evidentemente tosco, bizarramente mal-feito, pois vive-se sempre pela primeira e pela última vez, mas um desenho que tem, sim, a possibilidade de ser belo. A vida a gente nunca vai passar a limpo...
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(Comecei a divagar demais e nem sei se alguém tá acompanhando a viagem na garupa, se alguém teve paciência pra ler esse treco inteiro, mas tudo bem... já desencanei bastante desse blog e nem espero mais grande coisa dele em termos de comentários ou feedback (tava tão desanimado com ele que pensei até em abandonar de vez, ou tomar um tempo longe dele... mudei aquele verde que já tava dando náuseas por esse novo visú, tentei colocar textos de mestres muito melhores do que eu pra ver se eu curtia mais os conteúdos que eu estava colocando na bandeja e servindo a vocês, público leitor, mas sei lá... talvez eu fique um tempo a mais sem dar as caras por aqui... sei lá!) - se bem que isso acaba sempre servindo como um espaço de desabafo, ele é útil ao menos pra isso: the relief of disclosure, pra usar uma expressão do Quando Nietzsche Chorou. Tinha mais um monte de novidades pra contar (sobre a minha mudança de república, sobre as aventuras com a nova banda, sobre o meu projeto de iniciação científica, sobre as aulas na USP, sobre amor e restos humanos...), mas essa egotrip já tá longa demais. Quem sabe um dia eu volto. Quem sabe.)