quinta-feira, 8 de janeiro de 2009


“No início do amor falamos exaustivamente. Queremos nos explicar, contar o passado, mostrar os retratos de infância, as coisas mais preciosas que temos, entregar nossos pequenos tesouros. Queremos, em poucas horas, preencher com a presença do amado aqueles anos todos em que não o conhecíamos e que de repente, sem a sua presença, correm o risco de perder o sentido.

Falamos, atropelando com nossas palavras as palavras dele, para queimar etapas e chegar logo ao conhecimento recíproco que nos permitirá a paz. Mas a ânsia de chegar pode nos levar a equívocos.

(...) Na embriaguez verbal dos primeiros tempos, começamos mostrando somente o que temos de mais bonito. Oferecemos ao outro os miosótis da nossa alma. Mas logo percebemos que só isso não nos basta. Se ele os conhecer todos, ainda assim nos sentiremos desconhecidos, e permaneceremos em extremo perigo. Pois atrás dos miosótis crescem urtigas espinhentas, e é através delas que queremos ser amados. Amar as minhas belezas qualquer um pode, é fácil demais. Mas para amar os meus defeitos é necessária uma pessoa especial, aquela a quem eu também amarei.

Então, com quanto medo, começamos a oferecer os espinhos, um por um. Mostramos o primeiro, esperamos em ânsia para ver a reação. Se tudo correr bem, se o outro não sair desabalado, damos uma descansada cheia de miosótis. Nem sempre é fácil ir adiante, às vezes leva-se muito tempo até o próximo passo. Mas chega um ponto em que nos sentimos obrigados a recomeçar o desnudamento. E o processo é tanto mais doloroso porque temos certeza de que, nus, somos horrendos. Mas é horrendos que queremos ser amados.”

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“O amor do outro viabiliza o nosso amor por nós mesmos. Esta é a razão pela qual nos é difícil viver plenamente felizes se estamos conscientemente escondendo do amado os nossos defeitos. Não é o medo de que ele possa vir a nos descobrir e a nos desamar. Esse medo existe, mas é acalmado pela certeza de que podemos controlar os seus passos, nas tentativas em que tenta ampliar seu conhecimento de nós. O que nos impede a felicidade é que, como demonstra o fato de escondê-los, esses defeitos nos parecem abomináveis, suficientes para que ninguém nos ame, suficientes, sobretudo, para que não nos amemos. E sem amar a nós mesmos não há felicidade possível.

Quantas e quantas vezes, presos neste tipo de armadilha, acabamos criando uma situação-limite para obrigar o outro a nos desmascarar e, eventualmente, nos salvar. Assim, embora aparentemente felizes, armamos um sério desencontro, geramos um terremoto na relação, capaz de deixar bem à mostra aqueles defeitos que antes atuavam escondidos. Capaz, sobretudo, de obrigar o outro a nos conhecer realmente, e a estabelecer uma nova escolha que nos inclua como somos, ou nos exclua de todo.

(...) Com defeitos ou qualidades, o conhecimento é a única arma de que dispomos para enfrentar a grande viagem do amor, com esperança de sucesso. É a nossa bússola.”

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“Entre tantos órgãos, o coração foi escolhido para simbolizar o amor. Porque bate mais forte quando amamos? Porque é o órgão essencial à vida? Talvez nem por uma coisa nem por outra. Se fosse pelas reações, o amor poderia ser simbolizado pelos joelhos, que tremem e bambeiam quando me aproximo do objeto da minha paixão; ou pelo estômago, que se fecha e dói de ansiedade amorosa. E por que não pela boca, que é palavra e beijo? Quanto a ser essencial, o coração não é mais essencial do que o fígado, nem do que os rins.

Mas é pela nobreza que ele foi escolhido. Os rins, coitados, são filtros prosaicos, fábricas de urina. O fígado, que já foi considerado o órgão da vida, é feio no aspecto, destila humores duvidosos e tem parentesco com a verde bile. E nem se pode pensar em nobreza ao falar em estômago e joelhos. Já o coração é limpo e puro, comanda o sangue que nos faz enrubescer, que intumesce o sexo, que aquece a pele. Como diria um publicitário, o coração tem representatividade.

E embora não mais necessário do que os outros, é ele que simboliza a vida, pois a última de suas batidas é o sinal oficial de que 'a casa' fechou. Associá-lo ao amor foi a maneira de dizer que sem amor não há vida.”

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“Certamente, o amor não é fácil. E durante um certo tempo até pensamos poder viver razoavelmente sem ele. Percebemos porém que ao cortar a árvore para evitar o incômodo das folhas que caem, perdemos a sombra e os frutos, perdemos o doce farfalhar. E então estamos recomeçando a plantar.”



(marina colasanti, "e por falar de amor")