quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

:: As Crônicas Marcianas ::


RAY BRADBURY
As Crônicas Marcianas” (1950)

[Martian Chronicles, ed. Globo, 298 pgs.,
trad. Ana Ban e apresentação de Jorge Luis Borges]



“Deve ser um bom passatempo”, pensei comigo antes de embarcar neste livro, não botando muita fé no valor artístico do treco – era pra ser só um aprazível entretenimento natalino o que ele me proporcionaria, depois de um semestre repleto de Kant e chatezas deste naipe. Acabei ficando positivamente chocado com o poder e a qualidade deste clássico de Ray Bradbury, um dos maiores mestres da literatura de ficção científica no séc. XX junto com Kurt Vonnegut, Philip K. Dick e Stanislaw Lem, entre outros. Mais do que um belo livro dentro de seu gênero restrito, este Crônicas Marcianas é um romance fino até mesmo se julgado dentro do universo bem mais vasto da Literatura Fantástica. “Literariamente o próprio Bradbury desenhou sua árvore genealógica em um depoimento: se vê como filho de Julio Verne, sobrinho de H.G. Wells, primo de Edgar Allan Poe e filho de Mary Shelley, a criadora de Frankestein. Sem contar os heróis Flash Gordon e Buck Rogers, que considera seus irmãos”, comenta Donizete Galvão no prefácio.

Não há nada de exagero em colocá-lo lado a lado com tão respeitável panteão: a obra é de fato um pungente retrato imaginativo, sombrio e distópico que soa como um conto fúnebre de Poe ou algum excelente filme de terror de gelar a espinha. O que Jorge Luis Borges chama de “deleitáveis terrores” - que fazem com que o grande escritor argentino se pergunte, inquieto e fascinado: “O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão? Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo?”


As Crônicas Marcianas estão muitíssimo distantes de narrar um tolo confronto entre etzinhos verdes com arminhas a raio laser que digladiam contra os humanos por supremacia na Via Láctea. É, ao contrário, uma obra profundamente dark e tétrica, muito mais low-key do que frenética, que no cinema equivaleria mais a um filme de Tarkovsky ou Lynch do que a uma alegria de criança ao estilo do Tim Burton em Marte Ataca!.

Bradbury, com sua escrita concisa e direta, sem grandes ornamentos mas cheia de ironia e crítica implícitas, vai destilando uma crueldade calma, página e página, de um modo realmente assustador. Lançado em 1950, o livro espelha o estado de espírito paranóico e desconsolado do pós-Segunda Guerra Mundial na América e vem carregado de crítica social: contra o imperialismo, o racismo, o materialismo, a futilidade e a superficialidade do american way of life que ameaça se auto-exportar para Marte. Pobres dos marcianos!

A ameaça de uma hecatombe nuclear pairava então como uma plausível ameaça sobre as cabeças americanas (e humanas). No fim dos anos 40, logo depois do fim de uma sangrentíssima conflagração mundial, viam uma nova rixa tomar o lugar da antiga – e o que garantia que os russos comedores de criancinha, quando lhes desse na telha, não iriam chover as bombas H sobre Washington e Nova Yorke, ainda que como uma vingança tardia por Nagasaki e Hiroshima, tornando o planeta inadequado para a vida? Sim: a Terra podia, a qualquer momento, se tornar um imenso ossário, cemitério a céu aberto, onde as ruínas de uma civilização morta e os cadáveres carbonizados de todas as criaturas estariam como triste memento da estupidez humana. “Qualquer pessoa sensata queria ir embora da Terra”, narra Bradbury, com o “tom” de quem vê um planeta condenado e já pensa que a única salvação para a sobrevivência da humanidade é subir num foguete e ir procurar uma nova morada nas estrelas.

O mais notável nesta obra é a inversão que se opera na balança entre mocinhos e vilãos: pois são os TERRÁQUEOS os verdadeiros bandidos em “As Crônicas Marcianas”! É a raça humana que é descrita como corrompida, bélica, gananciosa, superficial e imoral – um bando de trogloditas e vândalos que vai até Marte com intenções IMPERIALISTAS e COLONIZADORAS, exorbitando de presunção e ignorância, inconscientes do mal que irão gerar. Muitos dos astronautas de Bradbury parecem imprestáveis personagens de Bukowski : “tinham arriscado a vida por uma coisa grande e agora queriam gritar e beber até cair, disparando suas pistolas para demonstrar como eram maravilhosos por terem aberto um buraco no espaço e conduzido um foguete até Marte” (100).

É com ironia cortante que Bradbury descreve os “planos” dos recém-chegados – um bando de trigger-happy yankees - num planeta cheio de ruínas de civilizações aparentemente mortas: “Haveria tempo para lançar latas de leite condensado nos orgulhosos canais marcianos; tempo para os exemplares do jornal New York Times saírem voando e, farfalhando, forrar o leito dos oceanos solitários e cinzentos de Marte; tempo para que cascas de banana e papéis de piquenique se infiltrassem nas delicadas ruínas de antigas cidades dos vales marcianos...” (99).

É brilhante o paralelo que Bradbury acaba estabelecendo entre o colonialismo no nosso passado histórico terráqueo e a possibilidade da aparição de um novo colonialismo, desta vez intergaláctico. “O senhor se lembra do que aconteceu com o México quando Cortez e seus belos amigos chegaram da Espanha? Toda uma civilização foi destruída por pessoas preconceituosas, gananciosas e donas da verdade. A história jamais perdoará Cortez...” (121), comenta o personagem Spender. É esse o paralelismo principal que vai nortear a narrativa de Ray Bradbury. Ele parece reiterar a todo instante que A INVASÃO do HOMEM BRANCO EUROPEU E CRISTÃO à África e às Américas, onde chegou para pilhar, explorar, escravizar, destruir crenças e deixar uma imensa pilha de cadáveres e ruínas, não é muito diferente da atitude desta Humanidade Grotesca que vai se meter a besta e AVANÇAR sobre esta Nova África que é o Pobre Planeta Marte. O imperialismo intergaláctico é o novo colonialismo opressor!

“...e os foguetes [chegando em Marte] esmagavam todos os nomes com marretas, transformando o mármore em argila, despedaçando os marcos de barro que davam nome às antigas cidades, e nesses escombros enfiavam-se postes suntuosos com novos nomes... então chegaram os homens sofisticados da Terra. Vinham em grupos e em excursões de férias, em pequenas viagens para comprar bugigangas, tirar fotografias e sentir a 'atmosfera'; vinham fazer estudos e aplicar leis sociológicas; chegavam com estrelas, condecorações, regras e regulamentações, trazendo um pouco da burocracia que tinha se espalhadop sobre a Terra como uma erva daninha alienígena...” (180-81)

Por isso o grande HERÓI MÍTICO de Crônicas Marcianas, Spender, é um outlaw, um marginal, um astronauta desertor, um aliado de Marte, que percebe o tamanho do MAL que a humanidade causaria ali e tenta SABOTAR a missão de colonização – ainda que, para isso, tenha que se tornar ASSASSINO de seus próprios COLEGAS. “Este planeta, nós vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”, pondera o grande misantropo justificado Spender, lembrando-se com melancolia do destino de seu planeta de origem: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas”. Seu discurso é poderoso:

“A única razão porque não montamos barraquinhas de cachorro-quente no meio do templo de Karnak, no Egito, é porque estava fora de mão e não era uma grande oportunidade comercial. Mas aqui, tudo é antigo e diferente, e precisamos nos fixar em algum lugar para começar a estragá-lo. Vamos batizar o canal de canal Rockefeller e a montanha, de montanha Rei George, e haverá cidades chamadas Roosevelt, Lincoln e Coolidge, coisa sem sentido, porque existem nomes adequados para todos esses lugares... Eles [os marcianos] sabem que estamos aqui para cuspir em seu vinho e imagino que nos odeiem...” (107) “O senhor ouviu os discursos no Congresso antes de partirmos! Se as coisas derem certo, eles querem instalar três centros de pesquisa atômica e depósitos de bombas nucleares em Marte. Isto significa o fim de Marte; todas estas coisas maravilhosas desaparecerão. (...) Eles vão fabricar suas bombas atômicas imundas aqui, brigando por bases para travar guerras. Não basta terem estragado nosso planeta, precisam mesmo estragar outro? (...) Como é que o senhor se sentiria se um marciano vomitasse bebida rançosa no chão da Casa Branca?” (120-21)


Por aí já se vê que o livro é uma obra literária muito mais preciosa do que parece à primeira vista - e que vai muito além de ser passável entretenimento. É muito mais uma crítica à cultura americana do que um exercício de vagas fantasiações sobre o futuro humano. As Crônicas Marcianas é um ode viva ao poder da imaginação humana como uma instância crítica, irônica e alarmista. Tanto que, no meio destes sombrios relatos, sobra espaço para Ray Bradbury realizar quase um Manifesto Literário defendendo a Literatura Fantástica: é o genial “Usher II”, referência ao célebre conto de Poe, “A Queda da Casa de Usher”. Se no clássico Farenheit 451, depois filmado por Truffaut, Bradbury já tinha dizimado com ironia mordaz os “bombeiros” que, portando lança-chamas, reduziam a cinzas o Perigoso Saber contido nos livros, aqui ele volta ao ataque àqueles que atacam o gênero de literatura que ele simboliza.

Ele narra com mordacidade uma Imensa Conspiração para o assassinato de livros fantásticos. Ele é perpetrada por “pessoas com mercurocromo no lugar do sangue”, horrendos estraga-prazeres de “Mente Limpa” e “investigadores de Climas Morais”, membros de uma certa “Sociedade de Prevenção à Fantasia” que dizimou todo o nefasto irrealismo literário...

“Todos os homens, diziam, precisavam encarar a realidade. Precisavam encarar o Aqui e o Agora! Tudo o que não fosse assim precisava ser destruído. Toda a linda literatura que ousasse apresentar a fantasia deveria ser abatida em pleno vôo. (...) Papai Noel, o Cavaleiro Sem Cabeça, Rumpelstiltskin e a Mamãe Ganso, ah, que lamentável... Eles foram abatidos, queimaram seus castelos de papel, os sapos dos contos de fadas, os antigos reis e as pessoas que viveram felizes para sempre (por que, é claro, ninguém de fato vivia feliz para sempre!), e “Era uma vez” transformou-se em “Nunca mais”! E espalharam as cinzas do fantasma Ricksaw com as ruínas da Terra de Oz; fatiaram os ossos de Glinda, a fada boa do Sul, e de Oz, despedaraçaram Policromo em um espectroscópio e serviram João Cabeça de Abóbora com suspiro no baile dos biólogos! O pé de feijão morreu em um emaranhado de burocracia! A Bela Adormecida acordou com o beijo de um cientista e morreu com a picada fatal de sua seringa. E fizeram Alice beber alguma coisa que a reduziu tanto que ela não podia mais gritar 'Que estranho estranhíssimo'...” (...) Fincaram uma estaca no coração do Halloween e disseram aos produtores desses filmes que, se fossem fazer alguma coisa, que filmassem e refilmassem Ernest Hemingway. Ah, o realismo! Ah, aqui, ah, agora, ah, diabos!” (185-188)

Palavras de um grande fantasista que, dando asas à imaginação, provou em sua brilhante obra que consegue ser imensamente mais lúcido que muito “realista” por aí.