sexta-feira, 6 de maio de 2005

conto novo

"A ILHA DA FELICIDADE"

Ah, a felicidade, essa coisa de que tanto falam os infelizes!... perpétuo sonho das almas oprimidas pela dor!... louca aspiração humana que, tão pouco presente, brilha mais por sua ausência!... ah, Felicidade, existes tu?... ou sempre fomos nós, pobres homens, tolos o bastante para passar toda uma vida a desejar o impossível?...

Houveram, nos tempos de trás, numerosas tentativas de fabricar um paraíso terrestre onde nos refugiaríamos das tempestades e dos trovões da vida e encontraríamos enfim aquele estado mitológico, de que tanto nos falam e que tão pouco experimentamos, A Felicidade... Como nos garantem as propagandas televisivas de margarina, as canções adocicadas das FMs, os mui sábios conselheiros matrimoniais e os abundantes finais felizes dos filmes americanos (que são os melhores do mundo, como todos sabem), é sim possível ser feliz, e todos seremos, no fim. É o que prometem. Engolimos essa promessa açucarada e deixamos que se derreta no intestino, enquanto esperamos que chegue o tal do fim para checar se era verdade ou não. Esperamos e esperamos e esperamos... Semana que vem as coisas vão melhorar! Ano que vem a alegria irá invadir meu coração! Quando eu me aposentar, será uma belezura de vida! E aí um dia morremos.

Mas será possível fazer o Sol da felicidade brilhar acima de toda uma comunidade? Muitos já tentaram, mas se conhecem muitos mais fracassos do que sucessos. Porém... (sobe trilha sonora otimista) Capitão Sorriso, mais novo aspirante a concretizador da utopia, estava certo de que estava destinado à glória.

A ilha era paradisíaca, cheia de coqueiros e palmeiras aprazíveis, canteiros cheirosos de rosas e margaridas, areia fina e branca como açúcar, clima tropical caloroso na medida certa, ameno sem dar calafrios, quente sem tostar a pele... gaivotas brancas espiralavam pelo céu brilhante, e a água azul transparente era cheia de cardumes de peixinhos pacíficos... aquela velha história. Capitão Sorriso tudo arranjou com seu prodigioso capital: acomodações luxuosas de hotel cinco estrelas, sacadas com inebriantes vistas para o mar, redes espaçosas estendidas nas matas, fontes de água-doce jorrante, barcos para expedições marítimas aventurosas, frutos suculentos abundando nos pomares...

Não teriam tevê, jornais ou revistas porque nessas coisas só há desgraceiras, chacinas, massacres, misérias, fomes, sanguinolências, filha-da-putagens, guerras, cruz credo. Não! Deixariam tudo isso pra trás. Não queriam mais saber. Música sim, é claro, pois sem música a vida seria um erro. Mas só sonoridades doces, meigas, incentivadoras do espírito comunitário e das ligações humanas harmoniosas. Seriam vegetarianos, pela saúde forte que decorre desse tipo de dieta, mas também para que se poupassem do espetáculo sempre entristecente de precisar matar animaizinhos e rasgá-los com uma faca, e abrir-lhes as tripas, e assá-los no fogo, molhados em sangue, ai que nojo. Não queriam nada que lembrasse morte ou putrefação. Estavam indo em direção a uma ilha virgem de morte, virgem de podridão, onde ser humano algum havia ainda perecido. Não teriam cemitérios. Não teriam lágrimas a derramar pelos que se foram. A morte não existiria. Só a delícia de viver. Começariam de novo, ano 1 pós C.S., e criariam na Terra um reino à imagem e semelhança do Reino dos Céus. Ó sim.

E no mundo normal, este nosso, Capitão Sorriso pôs-se a procurar pelos moradores adequados àquele mundo de alegria e bem-aventurança que estava a construir. Não queria ter por companhia ninguém que tivesse propensões mórbidas, personalidade melancólica, semblante triste. A Ilha teria entrada interditada para todos aqueles que fossem sorumbáticos, macambúzios e meditabundos; estavam proibidos de embarcar todos que tivessem algo a reclamar da vida. O nobre Capitão queria preencher sua Arca somente com sorridentes obsessivos, alegres espontâneos, gente de bem com a vida e consigo. Queria adentrar a Ilha da Felicidade com uma procissão de felizes que refletiriam os raios do Sol com o marfim de seus dentes e que alegrariam os ouvidos da Lua com o coro de suas risadas. Com essa luz e com essa doce música a ilha seria batizada e a beatitude começaria. Ó sim.

Se mudaram, 500 pessoas, muito bem selecionadas, havia até famílias inteiras e casaizinhos apaixonados, e desembarcaram todos num dia radioso de verão, muito adequado ao início da nova era. Escapuliram do mundo normal, o nosso, bem escondidinhos... não queriam ser seguidos. Infelizmente, não cabia todo mundo na Ilha da Felicidade, que se podia fazer? Só podiam lá morar os eleitos. Se sabe bem, desde o começo dos tempos, que o Inferno é quatrocentas e noventa cinco mil vezes mais povoado do que o Céu. Logo, o Paraíso terrestre tinha que seguir o molde de seu símile transcendente.

Capitão Sorriso, apesar de seu fulgurante idealismo e sua confiança rígida no bom sucesso de sua empreitada, não confiava na anarquia como sistema político, mesmo no interior da Ilha da Felicidade. Viu-se então na necessidade de assumir o posto de Imperador para trabalhar em prol da Causa. Em seu discurso de posse, anunciou as regras muito simples que passariam a vigorar naquele canto abençoado da Terra. Policiais sorridentes fariam a vigília da ilha com o único intuito de manter a chama da alegria sempre acesa. Aqueles que fossem flagrados cometendo os crimes vergonhosos e imundos de chorar, de se entristecer, de se angustiar, de maldizer, de reclamar, de blasfemar contra a vida, seriam levados à cadeia para assistirem a constantes sessões de palhaçadas e a filmes de Charlie Chaplin, a fim de retornarem ao único estado aceitável naquele território. Aqueles que porventura não conseguissem reconquistar suas alegrias na "prisão" (que eles gentilmente chamavam de Centro Médico Para o Restabelecimento do Sorriso) seriam gentilmente condenados a se retirar da Ilha por violar seu dogma mais fundamental. O governador reconheceria seu erro de julgamento anterior e diria ter errado na seleção daquela pessoa, que demonstrava não ser verdadeiramente uma eleita.

A princípio, tudo correu docemente na Ilha da Felicidade e só se viam sorrisos pintando os semblantes dos ilhados. Com o tempo, porém, certos acontecimentos que não tinham sido previstos pelo otimismo de Capitão Sorriso começaram a se desenrolar. Os casais de namorados, por exemplo, que tinham chegado à Ilha em meio aos furores da paixão, foram lentamente brochando como flores sem água. A chama foi perdendo seu vigor como se faltasse lenha a queimar. O hábito foi lambendo o amor com sua língua asquerosa e fazendo-o tornar-se... habitual. Começaram a se sentir entediados uns com os outros, e a descobrir quem o outro era de verdade, no correr lento do dia-a-dia, tendo que sepultar todas suas ilusões... e muito não demorou para que desejos conspícuos surgissem... e, em seguida, atos de adultério... e, claro, vinganças sangrentas e ciumeiras brutais.

Outras pessoas, que nos primeiros dias haviam experimentado os mais doces dos prazeres na Ilha recém abraçada como nova casa, com o tempo começaram a se acostumar com aquilo até que tudo tivesse se tornado muito normal e muito cotidiano. Perceberam, muito surpresas, que muito desejavam estar nessa Ilha quando estavam no Mundo Normal, mas agora que tinham conquistado o objeto de seus desejos, magicamente, passaram a não mais desejá-lo. Tinham tudo o que desejavam. Mas viver sem mais desejos era de um tédio insuportável!

E também aconteceram - coisa que Capitão Sorriso muito lamentou, fazendo muitos esforços para manter-se com aparência alegre e jovial - alguns pequenos acidentes imprevistos: um menininho de 8 anos, uma gracinha de garoto, havia tentado nadar pelos mares em dia de maré violenta e acabou sendo pego de surpresa por uma tempestade. Foi tragado pelas vagas. Nunca mais foi visto. Outro menininho, esse um pouco menor, foi picado por um estranho mosquito e adoecia de uma doença muito semelhante à lepra, espetáculo pouco agradável aos olhares, razão pela qual foi mantido cuidadosamente escondido em seu quarto. As mães e os pais dos dois garotinhos, como já se suspeita, não puderam evitar suas lamúrias, suas lágrimas, seus sofrimentos. Capitão Sorriso, trabalhando em prol da causa, teve que levá-las para a cadeia e, posteriormente, ao exílio. Infelizmente, tinha que ser severo. A felicidade tinha que ser mantida a todo custo. As duas famílias foram reenviadas à Sibéria, apelido dado dentro da Ilha ao Mundo, o nosso.

Capitão Sorriso não desanimou frente a esses inconvenientes pois viu que, apesar daqueles que sucumbiam às tristezas e às melancolias, havia aqueles que se mantinham firmemente aferrados à sua alegria e nunca eram vistos sem que um sorriso largo lhes pintasse o rosto. O Capitão tirou disso a seguinte conclusão: não havia sido suficientemente severo durante o processo de seleção dos habitantes da Ilha e havia escolhido certas pessoas que não eram verdadeiramente eleitas e que tinham dentro de si "secretas e repulsivas propensões à morbidez", como ele dizia. Tudo o que tinha a fazer, então, era tomar certas medidas drásticas para separar os felizes-de-verdade dos felizes-de-mentira, para então extirpar estes últimos sem piedade, como ervas daninhas que sujavam um jardim, a fim de enfim conquistar a comunidade perfeita de pessoas inteiramente felizes. Ó sim.

Munido de sua autoridade como Imperador, e fazendo tudo em nome da Santa Causa, o Capitão decidiu-se a aumentar os poderes dos policiais-sorriso. Agora eles tinham permissão para fazer execuções sumárias de todos aqueles que fossem pegos infringindo a lei da Ilha. Aos que se levantaram para se opor a essa decisão, dizendo que era moralmente reprovável, o Capitão respondeu que os meios justificavam os fins; prometeu ainda que, no futuro, quando a utopia enfim estivesse concretizada, todos o agradeceriam por ter tomado medidas aparentemente tão cruéis ao notar que tinham sido de muita utilidade. Não faltaram aqueles que mandaram cartas ao Capitão Sorriso alertando-o de que uma tal lei, se fosse efetivamente estendida para a população de todo o planeta Terra, poderia muito bem acabar com a completa extinção da raça humana. O Capitão achou que isso era uma grande bobagem.

A lei passa a vigorar. Eis o que se segue: um certo rapaz teve que receber um implante de bala de pólvora dentro de seu crânio por estar chorando perto do riacho por não ter sido correspondido pela bela garota que estava paquerando. Ai que dó! Mas era preciso! / Um pai de meia idade, que havia exagerado na comida na noite anterior, foi pego a se contorcer de dores de diarréia numa privada, e os policiais-sorriso, vendo prova tão veemente de sofrimento, tiveram que meter-lhe uma bala nariz adentro. / Uma garota, antes considerada como a mais alegre de toda a ilha (havia até ganhado o Troféu Sorrisa do Ano), e que sempre era vista a lamber pirulitos com o semblante iluminado, pegou uma cárie nos dentes e berrava de dor quando foi flagrada por um policial-sorriso, que precisou seguir as ordens do patrão e executá-la imediatamente.

Assim as coisas foram indo, até que o Imperador notasse, muito preocupado, mas sempre sorridente, que enfrentava uma perigosa baixa populacional em sua Ilha. Fazia-se necessário ir até a Sibéria, proceder a novos testes e recrutar mais pessoas felizes para a Ilha da Felicidade.

Não foi tarefa fácil. Devido a uma ironia do destino (ou um sarcasmo da gramática, como queiram), a Ilha da Felicidade tinha adquirido a reputação de ser um local extremamente infeliz. O mundo acompanhava horrorizado, pela TV, o desenrolar da saga de Capitão Sorriso e sua Utopia, e as pesquisas de opinião pública revelavam que 80% das pessoas julgavam ser impossível ser feliz dentro da Ilha da Felicidade, simplesmente pelo fato de que lá a felicidade era obrigatória. Os agentes de publicidade de Capitão Sorriso batiam de porta em porta para expor aos habitantes "da Sibéria" as maravilhas da Ilha e para provar-lhes que muito melhor viveriam por lá. Não foram muitos os que conseguiram convencer, e aqueles que enfim deram seu "sim!" não eram exatamente o tipo de pessoas adequado para o lugar: mendigos, sem-terras, sifilíticos, aidéticos... em suma, infelizes.

Capitão Sorriso muito se surpreendeu. Por que diabos só os infelizes queriam embarcar, cheios de esperança, para aquele lugar distante chamado Ilha da Felicidade? Por que só os infelizes se deixavam convencer de que havia um lugar distante onde, no futuro, encontrariam a beatitude? Por que as pessoas mais felizes da Sibéria não se deixavam convencer de que melhor viveriam se se mudassem para a Ilha?

Desesperado com a baixa populacional e com sua incapacidade em recrutar novos concidadãos, Capitão Sorriso, confuso, cheio de incompreensão, foi bater na porta de um dos mais renomados e inteligentes filósofos da Sibéria em busca de explicações. No dia da entrevista, a situação havia se degringolado imensamente e Capitão Sorriso estava quase só em sua ilha. Perguntou ao sábio, com humildade, se ele desejava se mudar para a Ilha da Felicidade para lhe fazer companhia e lhe dar muitas úteis lições de vida. Ao que o bom filósofo respondeu:

"Não senhor, não tenho um miligrama de desejo, nem uma migalha de vontade, de me mudar para esse lugar asqueroso que foi chamado, muito erroneamente, de Ilha da Felicidade!... Rá! Que importam suas belas arvorezinhas, seus passarinhos meigos, suas águas transparentes, se não se trabalha também sobre a alma?!... Você pode criar o paraíso ao redor de ti, meu amigo, mas nada impede que o inferno vá desabrochar DENTRO de ti... E que cruel tirania é essa que vigora nessa ilha!... Acha que quero me sentir obrigado a me manter sorridente por todo o tempo, a não reclamar de nada, a manter sempre escondidas minhas angústias e dores, escravizado pela ditadura da felicidade hipócrita?... Ó não!... Sombria perspectiva!... Vou fugir desse seu inferninho como os judeus fugiam dos nazistas, como os vampiros fugiam do alho, como o fogo foge da água!... Porque eu desejo manter meu sagrado, meu intocável, meu inalienável, meu IN-CON-TES-TÁ-VEL direito às lágrimas! Pois não é verdade que iremos todos morrer dentro de poucos anos (isso se tivermos a sorte de que não sejam poucos MINUTOS!)? E que morre-se de fome e de doença e de solidão em todos os cantos desse mundo? E que enquanto bilhões morrem de inanição, uma meia dúzia sofre de indigestão? E que furacões, tornados, terremotos, tempestades e tsunamis despencam sobre nós só para provar que nada somos para a Natureza, que nos aniquila como se fôssemos formigas? E não existem todas as pequenas dores desse nosso corpo frágil e precário, as cáries, as úlceras, as diarréias, as prisões de ventre, as enxaquecas, os cânceres, as gonorréias? E não existem as penas que recaem sobre a mente, os medos, as esperanças frustradas, as raivas, as melancolias, os complexos, as neuroses? E você, seu canalha monstruoso, me pede que eu tudo ignore, que fure meus próprios olhos por medo da luz, que finja que tudo está muito bem, que me obrigue a manter sempre na cara um sorriso idiota que só pode sair de dentro de um ser que insiste em se auto-cegar?... Ora, uma vida humana livre de todo sofrimento e de toda angústia é a maior das impossibilidades!... um delírio monstruoso!... uma mentira suja!... Desejar esse tipo de estado é o mesmo que desejar o impossível, e com isso condenar-se à infelicidade!... E não estou dizendo, certamente não!, que nunca se deve sorrir! Não irei construir uma ilha onde será proibido se alegrar! Muito pelo contrário! Adoro a alegria, adoro sorrir, adoro me divertir, adoro o bom-humor... mas não quero fazer disso um evangelho que não se possa infringir, uma regra de vida que não suporte variações!... Quero uma vida cheia de "es", sempre "es", eternos "es", e nunca "ous"... ao inferno com os "ous"! Quero uma vida em que eu possa ser alegre E triste, exultante E melancólico, sorridente E chorão, flutuando de pólo a pólo de acordo com aquilo que pedem e merecem as circunstâncias... Não quero construir uma prisão em um dos pólos e lá me encerrar. Quero dizer o Grande Sim à vida inteira, com tudo o que ela contêm dentro dela!... E, além do mais, há certas situações na vida nas quais chorar não é somente meu direito, mas meu DEVER! Não, não quero morar em sua desgraçada Ilha! Não quero nenhuma felicidade que não possua lágrimas como ingrediente! Não quero! Não quero!..."

Capitão Sorriso, Imperador supremo e despótico da Ilha da Felicidade, lugar extremamente infeliz, recolhe-se em seu paraíso para um período de meditação e sente que se derrama sobre ele, como chumbo derretido, o discurso de seu opositor. Com o maxilar fatigado após tantos esforços para manter os cantos dos lábios colados às orelhas, finalmente se permite um semblante de pessoa normal. Solitário, sobe em seu barco e caminha em frente, sobre as águas, na contramão das ondas, resoluto.

E foi assim que a Ilha da Felicidade se tornou a Ilha Deserta.