quinta-feira, 22 de maio de 2008

:: escuta o teu ouro de dentro ::


Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.


Ela sabia: loucura é excesso de lucidez. E poucos poetas com quem já me encontrei abriram um olhar tão lúcido e tão devorador para engolir a vida, mesmo que crua e mau-passada, para depois vomitá-la aos jorros em mais de 40 livros que poucos leram, poucos entenderam, mas que estão entre as coisas mais fascinantes, potentes e maravilhosas da literatura brasileira.

Ah, a Hilda Hilst: a doida, a obscena, a pornográfica, a incendiária, a subversiva, a porra-louca, a enfant terrible da poesia brasileira, já foi a minha escritora predileta. Passei minha adolescência devorando aqueles livros maluquíssimos dela, mais assustadores que qualquer filme de terror, onde pareciam se esconder mistérios muito profundos, cuspidos caoticamente por uma profetisa que caiu no caos com o peso do que descobriu...

Eu entendia quem dizia dos livros dela: "li e não entendi porra nenhuma". Eu também entendia pouco, mas com ela entendi pela primeira vez que entender não era tudo, e que em matéria de arte talvez nem fosse o mais importante. Eu sentia Hilda Hilst, viajava com ela, me comovia com ela: eu me perdia na perdição dela, me confundia na confusão dela, me angustiava na angústia dela, me fascinava no fascínio dela... E gargalhava gargalhadas fatais quando ela fazia de suas piadas diabólicas, que só quem tem o humor bem negro consegue entender.

Hilda Hilst é todo um universo a ser explorado: uma escritora que faz gargalhar, que faz gritar, que faz pensar sobre as coisas mais fundas, que faz sentir os afetos mais extremos, que faz enlouquecer, que dá vertigens, que inflama paixões... Hilda Hilst tem cheiro de cemitério e de carnaval, tem gosto de cinzas, de carne e de nuvens, tem a alma de uma criança sapeca misturada com a de uma vovózinha que ninguém consegue decidir se é genial ou biruta... Hilda Hilst mistura o mergulho espiritual de uma santa com a entrega à devassidão de uma puta. Um ser humano complexíssimo, de mil rostos, toda estilhaçada, que se revoltou contra a visão da mulher como buraco e, como fez a Clarice do jeito dela, mostrou-se ao mundo como um monstro mítico-poético colorido e de funduras inimagináveis!

Uma daquelas almas que parece incapaz de fazer algo a não ser de modo intenso e urgente. Que queima sempre em altas temperaturas. Que não conhece medidas ou fronteiras. Que não concebe territórios ou assuntos proibidos. Livre como só os loucos conseguem ser.

Uma escritora que soube ouvir o ouro de dentro, sem interesse algum pelo de fora (fool's gold!), mas que encontrou também em suas peregrinações pelo espaço interior muita sombra, muita devastação, muita depravação. Essa astronauta do mundo subjetivo esteve em todas as planícies e planaltos da alma, no cume de todas as paixões e todas as angústias, e não cessou nunca de tentar traduzir em palavras toda a galáxia interior riquíssima em criaturas, fantasias, medos e fascínios que tinha. Que era. O que já disseram de William Burroughs pode ser dito dela: ela foi um dos poucos seres humanos que esteve no Inferno e voltou viva para contar o que viu. E trouxe boas notícias misturadas às chamas e à cinza!

Hilda é a poetisa que não teve medo do escândalo e se fez "pornográfica", como uma dessas doidas de hospício que só falam em "cu", "caralho", "buceta" e "puta que o pariu" - não como mera traquinagem (ok, talvez um pouco...!), mas muito mais como um protesto contra a criação. Uma traquinagem contra o Pai lá de cima, esse Canalha Incompreensível, Sempre Silente, Sempre Distante, que nos fez assim: carne que apodrece, com cu que caga - de revoltar! Pois o cu é um "demolidor de vaidades", dizia ela, e essa "ceifadora de ilusões" não estava no mundo para nos envaidecer... Se ela deu escândalo, foi por ter percebido o quão escandoloso é de fato isso: todos nós, seres tão sublimes, elevados, fenomenais, somos matéria perecível dotada de cu e incapazes de passar pelo mundo sem sujá-lo.

A loucura dessa extrema-lúcida é mero efeito colateral de abrir os olhos para a Morte, e mantê-los abertos, encarando, como frente a uma esfinge - o que quase ninguém dentre nós é capaz de fazer.


Por que me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
de tudo o que vejo.

Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana idéia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.

* * * * * *

Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?



Adoro gente louca. E ainda mais os loucos que me convertem à loucura deles. Que me fazem ver o que eu antes julgava "normalidade" como doença, como banalidade, como mera decorrência de se ser animal de rebanho. Brinquemos de enlouquecer de vez! de expansões líricas decapitadas! de fluxos de consciência que não se acabam! de escrever sóbrios coisas mais insanas do que qualquer drogado consegueria! de espalhar a ebriedade que temos em simplesmente estarmos vivos e espantados com isso de estarmos, nós e tudo, aqui! Estilhacemos nossas próprias fronteiras! Alimentemos nossas mais excêntricas loucuras! Jorremos alma afora com vômitos divinos de obscena lucidez!

Hilda Hilst... amo essa doida.

* * * * * *

E isso aqui é fódimais:

"...por que será que todas as coisas ligadas à santidade são necessariamente ligadas ao sofrimento? Por que é preciso flagelar-se, jejuar, maltratar o corpo, mutilar-se, dar todos os bens, ser um pária na vida? Por que os humanos inventaram um deus ou deuses sempre ameaçadores, ávidos por sangue e martírio, as bochechas inchadas de tanto triturar a carne das criaturas? O conceito de martírio, holocausto, sofrimento para dar prazer a um deus é para mim inaceitável. O que pensar dos neurônios de Isaac entendendo que era para pôr o filho na fogueira? Todos esses supostos diálogos dos humanos com um suposto deus me lembram a Telesp em dias de chuva, você chamou Londres e te dão Carapicuíba ou Cururu-Mirim. Ninguém entendeu nada até agora (como na microfísica) e os humanos têm mesmo, segundo a Ciência, muitos parafusos soltos entre o neocórtex e o hipotálamo. Não me conformo também com isso de um deus mandar seu filho para o planeta Terra a fim de ser crucificado. Para nos salvar, me ensinaram. Mas nós não fomos salvos de nada! Continuamos os mesmos estúpidos paranóicos (é só ler a História) em direção à loucura, ao pânico, ao desespero. Como é que você pode entender alguém que te diz: "sim, meu amor, eu te amo, mas aguenta firme que vou te arrancar as unhinhas, aguenta firme que vou te furar os óinho, aguenta firme que vou te crucificar". Até parece historinha sadô: "me bate, amor, me corte de gilete, me põe o armário em cima". Se Deus fosse só um amante enciumado e eu o traísse com o chifrudo, até dá pra entender. O sexo é ligado a muitas fantasias sórdidas. Ou vocês só fazem aquele buraco no lençol? Alguém muito especial me dizia: tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão. Mas a luz lá de cima, o grande sol das almas me condenando ao sofrimento, me pentelhando para sempre a vida? Ah, não."

p.s.: post escrito depois (e ainda sob o efeito...) da peça fodaça "Noviciado da Paixão", que vi lá na Mostra de Contracultura do SESC Pompéia. Recomendo pra caralho. Dia 23 é a última chance de ver! Corram.