sábado, 17 de maio de 2008

:: o ofertório dos espinhos ::


Mais da Marina, autora prediletíssima dos últimos tempos.


“O amor absoluto. Ao falarmos de amor, sem especificações, é sempre a ele que nos referimos, o grande, tão grande que às vezes reforçamos nosso sentimento chamando-o de amor com A maiúsculo. E é por ele que esperamos.

Mas existe mesmo esse amor, tão total, tão avassalador, tão completo? Ou nós o inventamos, instituindo talvez a exceção como regra?

De um lado a vida. Do outro a morte. Imprensada entre dois acontecimentos inegavelmente absolutos, decorre a vida do ser humano. E para ela, assim que começamos a formular nossos medos, foi necessário encontrar uma justificativa. Por que éramos jogados na vida, sem qualquer participação voluntária, e dela éramos retirados contra nosso desejo? A razão deveria ser forte, tão forte quanto nascer e morrer, pois só assim os justificaria. E a única que nos pareceu qualificada foi o amor. Era através do amor que a vida se gerava, e era gerando outras vidas que nos iludíamos de vencer a morte. O amor era portanto o único elemento que podíamos considerar como participante direto dos dois pólos fundamentais. Daí a instituirmos o amor como absoluto deve ter sido um passo, e um passo lógico, que vinha, aparentemente, solucionar nosso mais grave problema.

Exigir que percebêssemos estar criando outro, quase tão grave quanto aquele do qual fugíamos, é pretender demais, sobretudo num processo que obviamente não foi tão linear nem tão consciente quanto aqui o traçamos.

E criado o amor absoluto, tivemos que viver com ele.”

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“No início do amor falamos exaustivamente. Queremos nos explicar, contar o passado, mostrar os retratos de infância, as coisas mais preciosas que temos, entregar nossos pequenos tesouros. Queremos, em poucas horas, preencher com a presença do amado aqueles anos todos em que não o conhecíamos e que de repente, sem a sua presença, correm o risco de perder o sentido.

Falamos, atropelando com nossas palavras as palavras dele, para queimar etapas e chegar logo ao conhecimento recíproco que nos permitirá a paz. Mas a ânsia de chegar pode nos levar a equívocos.

O outro fala, explica, mostra. Achamos que o conhecemos cada vez mais. E chega um ponto em que temos a impressão de realmente conhecê-lo bem. Nesse momento, se o amado corresponde às nossas expectativas, respiramos aliviados. Sabemos quem ele é, podemos nos assentar tranquilamente no amor.

A sensação desse conhecimento é tão boa, tão repousante, que o nosso desejo é 'congelá-la'... Alheio ao nosso congelamento, continua sua trajetória evolutiva, afastando-se progressivamente da imagem dele que conservamos dentro de nós. (...) Nós adoramos a bela fotografia que tiramos dele, enquanto ele espera em vão que olhemos para o seu rosto.”


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“Na embriaguez verbal dos primeiros tempos, começamos mostrando somente o que temos de mais bonito. Oferecemos ao outro os miosótis da nossa alma. Mas logo percebemos que só isso não nos basta. Se ele os conhecer todos, ainda assim nos sentiremos desconhecidos, e permaneceremos em extremo perigo. Pois atrás dos miosótis crescem urtigas espinhentas, e é através delas que queremos ser amados. Amar as minhas belezas qualquer um pode, é fácil demais. Mas para amar os meus defeitos é necessária uma pessoa especial, aquela a quem eu também amarei.

Então, com quanto medo, começamos a oferecer os espinhos, um por um. Mostramos o primeiro, esperamos em ânsia para ver a reação. Se tudo correr bem, se o outro não sair desabalado, damos uma descansada cheia de miosótis. Nem sempre é fácil ir adiante, às vezes leva-se muito tempo até o próximo passo. Mas chega um ponto em que nos sentimos obrigados a recomeçar o desnudamento. E o processo é tanto mais doloroso porque temos certeza de que, nus, somos horrendos. Mas é horrendos que queremos ser amados.”

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“O amor do outro viabiliza o nosso amor por nós mesmos. Esta é a razão pela qual nos é difícil viver plenamente felizes se estamos conscientemente escondendo do amado os nossos defeitos. Não é o medo de que ele possa vir a nos descobrir e a nos desamar. Esse medo existe, mas é acalmado pela certeza de que podemos controlar os seus passos, nas tentativas em que tenta ampliar seu conhecimento de nós. O que nos impede a felicidade é que, como demonstra o fato de escondê-los, esses defeitos nos parecem abomináveis, suficientes para que ninguém nos ame, suficientes, sobretudo, para que não nos amemos. E sem amar a nós mesmos não há felicidade possível.

Quantas e quantas vezes, presos neste tipo de armadilha, acabamos criando uma situação-limite para obrigar o outro a nos desmascarar e, eventualmente, nos salvar. Assim, embora aparentemente felizes, armamos um sério desencontro, geramos um terremoto na relação, capaz de deixar bem à mostra aqueles defeitos que antes atuavam escondidos. Capaz, sobretudo, de obrigar o outro a nos conhecer realmente, e a estebelecer uma nova escolha que nos inclua como somos, ou nos exclua de todo.

(...) Com defeitos ou qualidades, o conhecimento é a única arma de que dispomos para enfrentar a grande viagem do amor, com esperança de sucesso. É a nossa bússola.”


(Marina Colasanti)