sexta-feira, 30 de maio de 2008

:: canto porque o instante existe ::


"A beleza é mais frágil que a vida."
FERREIRA GULLAR



...e eu oscilo feito uma gangorra nas minhas relações de amor e ódio com a poesia (as minhas e as alheias) - bunda no lodo e logo cabeça nas nuvens! por um lado acho poesia um negócio magistral, essencial, empolgante, vivificante... uma das melhores carícias que podemos fazem em nossas próprias almas... um dos melhores funis que existe para despejar um pouco de beleza em nossos jardins internos, tão cheios de ervas daninhas e desertos sem sal. Por outro lado, em outros dias, acho os poetas uns pretensiosos, uns exibidos, uns pavões, uns malas, uns desesperados trabalhadores da palavra que ficam procurando construir belezas num mundo em que quase ninguém se importa com ela. O mundo concreto é extremamente anti-poético. E acho que precisamos tanto de poesia justamente porque a vida é tão nojentamente anti-poética. Temos que injetar nas veias dela um pouco de poesia para não ficarmos com vontade de vomitar toda hora que olhamos na cara da mocréia. Temos que colorir nossas lágrimas com as tintas da poesia para que elas não sejam simplesmente lágrimas, choradas e inúteis, mas gotas de beleza. Enfim, sobre a poesia acho que a melhor coisa que se pode dizer é que ela é uma "inutilidade essencial", como diria minha amiga Aline Guarato, que, do jeito dela, é uma das criaturas mais poéticas que já conheci. Divagações à parte, deixo aí embaixo um punhado de poesias que andei expelindo do meu organismo nos mais diversos estados de espírito - elas já tem algumas semanas de idade e não postei antes só por vergonha. Sei lá se isso presta, mas nem me importo tanto - tiro de mim e pronto. Vou tirando minha alma de dentro dessa jaula apodrescível que chamo de corpo aos baldes - eis meu lago! Espero que ele possa ser espelho, água para lavar os olhos, paisagem a contemplar, bobeira a rir, algo pelo menos assim: inútil e essencial! Que os "estados" mentais que geraram cada uma delas foram efêmeros, é óbvio, pois todos eles são. E, aliás, poesia também me parece ser isso: uma foto que você tira do estado das coisas dentro de você em momento X. Do mesmo modo que tiramos fotos do céu, sabendo que um pôr-do-sol ou um desenho de nuvens idêntico nunca se repetirá, também escrevemos poesias que registram, num click, como está o clima e as cores no céu de nossa alma, também ela movente como um rio e fatalmente evaporável como água debaixo do incêndio do Sol.



A HARD RAIN'S A GONNA FALL
========================


"O chato é que o pensamento delirante,
tão lindamente desgrenhado,
acaba penteadíssimo."

(Lygia)


Não estou guardando mais nada, chega!
A alfândega precisa se tornar menos severa:
que o trânsito seja mais livre entre o dentro e o fora!
Até hoje, pinguei minha alma sobre a Terra com conta-gotas,
pingo a pingo, em doses homeopáticas, mixurucas...
agora chegou a era dos jorros selvagens,
das desrespeitosas erupções vulcânicas!

Corram por suas vidas,
tirem as crianças da sala,
agarrem-se a suas bóias,
refugiem-se em suas arcas,
Pois aí vem meu dilúvio!

Com o coração em fúria,
os cabelos em chamas,
a alma em desalinho,
os punhos em riste,
lábios sangrando de dentadas
e a urgência de um incêndio,
venho para primaverecer
o outono sem folhas de vossas almas!

* * * * *

MAIO DE 2008
===========


"Soyez realistes: demandez l'impossible!"
(slogan de Maio de 1968)


Ah, essa minha mania estúpida
De teimar em tentar o impossível!

Mas ah! Vai que eu consigo...

Realizam-se espantosas coisas possíveis
ao se tentar o impossível.

* * * * *

LUA NOVA
=========

Meu novo quarto não está voltado para o nascente,
não oferece ao olho a amplidão de um horizonte,
nem tem em frente um aeroporto que me dê lições de partir...

E teimoso me agarro à lua cheia,
como se quisesse impedi-la de minguar.
Não quero aceitar o amor como um ciclo,
com ascensão e queda, apogeu e penhasco.
Queria-o instalado no meu céu escuro
Como uma estrela sempre a brilhar.

Tenho tanta saudade
De todos os futuros
Que nunca aconteceram!

Quero também uma Lua Nova:
saber que ela continua no céu,
mesmo que eu não veja seu rosto,
e que o ciclo continua a girar
e uma nova cheia está a caminho...

Minh'alma é hoje um céu com lua nova:
o astro-rei da noite, que a ilumina e embeleza,
ofuscado, invisível, ensombrecido.

mas não diga que as estrelas estão mortas
só porque o céu está nublado...”
(WADO)


* * * * *

RELÂMPAGOS
===========



"Não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?"
(Gustavo Corção)

Ah, a extrema raridade das epifanias!
Os amores que só vêm aos relâmpagos
Num temporal de madrugada
Iluminando o horizonte todo negro só por flashes
Súbitos, esparsos, seguidos por estrondo e terremoto.

Instantes de alumbramento, sim,
Mas que são sempre só instantes...
Tolo fui ao pedir que o amor despencasse
Com a constância de uma cachoeira.
Dele só conheço o relampejar.

* * * * *

LIXO HOSPITALAR
===============


“Vinda a paz, rosa-após dos terremotos,
eu mesmo juntarei a estrela ou pedra
que de mim reste sob os meus escombros.”

(FERREIRA GULLAR)



O amor, substância fina
e tão difícil de fabricar,
criação mais rara e radiante
do coração em seu penar,
por vezes é filho bastardo
que o deus-mundo
manda sacrificar.

Ah, o coração, justo em seu
ápice de glória e brilhar,
justo quando cria asas, pega fogo,
lança pétalas, a borboletear,
vê a vida vindo, cruel cirurgiã, com bisturi firme,
que, sem ter mesmo o cuidado de anestesiar,
vem de si esse filho amputar.

Não tendo encontrado em
outro coração um porto, um lar,
Agora jaz, coberto de sangue fresco,
num saco de lixo hospitalar.

* * * * *

BAD MATH
=========

Todo dia, democrático,
oferece seu palco cósmico por igual
aos seus dois atores principais
que abrem e fecham atos.

Há uma só aurora e
há um só crepúsculo.

Mas na matemática torta da minha alma,
a soma aritmética mais fácil se corrói
no incêndio do sentimento...
E concluo uma adição grotesca,
ditada pela melancolia:

Nessa vida mais sóis se puseram do que nasceram.

* * * * * *

TIRANO
======


“when i am king, you will be first against the wall.”
(radiohead)

Declaro abolida a sensaboria do ser!
De agora em diante, é obrigatório que tudo tenha sabor.
Mesmo que seja amargo, de cinzas, de menstruação,
que dá engulhos, que chama a ânsia por escovar a língua...
A insipidez está fora da lei!

Proclamo proibida a inofensividade das coisas!
Tudo há de ferir, comover, espantar, chocar,
colidir conosco
como um trem desgovernado
em quem não tem escudos.

Que a vida se sinta vivente!
Que a carne se saiba pulsante!
Que o coração se reconheça batente!
E que o instante se ostente fugaz
Como que orgulhoso de uma grande qualidade.

Descubro, bombástico, a invalidade da lei da inércia!
Tudo há de escalar os degraus
rumo a velocidades sempre mais altas.
Tudo há de escarnecer
dos poderes do atrito do ar.
Tudo há de mover-se sempre,
nunca se rendendo
à indignidade da imobilidade.

Decreto-me rei de mim!