domingo, 12 de abril de 2009

:: tolstói ::

:: "O QUE É ARTE?", de Tolstói ::
(ed. Ediouro, 304 pg., trad; Bete Torii)

:: NOTAS DE LEITURA E OUTRAS VIAGENS ::

Depois de ter me deliciado com Anna Karenina, Sonata a Kreutzer, A Morte de Ivan Ilitch e A Felicidade Conjugal, todos eles livros magníficos, corri atrás dessa "polêmica" obra onde Tolstói se mete a teorizar sobre arte - principalmente a dos outros. Tenho a sensação de que é muito melhor botar fé no que fala sobre arte um grande artista, que deu à humanidade algumas das melhores obras literárias que ela já conheceu, do que nos grandes críticos de arte, estes que quase sempre jamais pariram uma obra que preste. Incrível como esses "trabalhos teóricos" de certos artistas iluminam e tornam mais compreensível o trabalho desses grandes mestres! Lembro, por exemplo, do Camus, que escreveu aquele genioso tratado filosófico-existencialista, O Mito de Sísifo, para justificar seu romance O Estrangeiro. Ou de Victor Hugo, que acabou escrevendo um dos mais magníficos e geniais manifestos literários do século XIX com seu William Shakespeare, livro que têm momentos de brilhantismo que se equiparam àqueles de Os Miseráveis.

Mais do que um tratado de estética ou uma coleta de ensaios de crítica de Arte, este "O Que É A Arte?" do Tolstoi é um irado manifesto, ao mesmo tempo demolidor e construtivo, cáustico e utópico. Aqui ataques furibundos contra a arte de seu tempo convivem com sugestões de melhores caminhos a seguir. “A arte do nosso tempo e meio se tornou uma prostituta: está sempre em roupas extravagantes, está sempre à venda; é igualmente sedutora e perniciosa. (...) Há um fluxo imundo dessa arte depravada e lasciva que nos está afogando” (247), lamenta o rabugento Tolstói, este gigante da literatura russa que surge, nestas páginas, vomitando de nojo frente à produção artística de seu tempo e julgando (todo russo é megalomaníaco?) que foi o primeiro e único pensador na história da Estética a descobrir a Verdadeira Essência da Arte!

Radicalmente anti-elitista e anti-burguês, Tolstoi maltrata sem dó a arte das camadas superiores da sociedade - das quais ele parece orgulhosamente se suprimir, como se dissesse: “não pertenço a essa gentalha imunda que é essa gentinha rica e culta!” De modo algum ele aceita que "a arte admirada pelas elites" seja sinônimo de "arte boa":

“Quaisquer que sejam os desatinos cometidos na arte, uma vez que são aceitos na camada superior de uma sociedade, elabora-se imediatamente uma teoria para explicar e legitimar esses desatinos, como se nunca tivesse havido época na história em que certos círculos excepcionais de pessoas que tivessem aceitado e aprovado arte falsa, feia e sem significado, que não deixou traço e foi totalmente esquecida mais tarde.”
(67)

[UM ÓRGÃO DA VIDA DA HUMANIDADE]

Claro que a demolição não é gratuita: ele quer construir algo por cima dos escombros. O livro só é tão raivoso por ser o livro de um idealista, que trucida tudo aquilo que não se harmoniza com o ideal que ele defende e encarna. Para Tolstói, “a arte não é prazer, consolação ou divertimento; é algo grandioso. Ela é um órgão da vida da humanidade, que transmuta a consciência racional das pessoas em sentimento” (271).

A verdadeira e genuína arte certamente não é, para Tolstói, nem aquela que visa fornecer prazer e entretenimento aos seus destinários, nem aquela que procura erigir monumentos à Deusa Beleza, criando objetos que nos encantem os sentidos. Trata-se de escapar da limitação e do mutilamento que seria definir a arte como algo subordinado ao “agradável”, ao “belo” e ao “entretivo”, ao mesmo tempo que se evita o perigo de ver a arte como um fim em si mesmo – o que só pode nos fazer derrapar para o lodaçal da “arte pela arte” que assombra tantos maus capítulos da História das Artes.

A arte, diz Tolstói, é certamente apenas um meio, que deve servir a um Bem maior que ela. Mais ou menos como a canoa do budismo, que nos serve para atravessar os mares turbulentos, mas que não passa de um veículo: o importante de verdade é o que atinge-se na outra margem.

É o Bem, e não a Beleza, o verdadeiro ídolo de Tolstoi. E este Bem, para Tolstói, jamais vai se unir à Beleza – são duas ordens opostas, inimigas: “O conceito de beleza não apenas não coincide com o de bem, mas é até o oposto a ele, porque o bem, na maioria das vezes, coincide com um triunfo sobre nossas predileções, enquanto a beleza é a base de todas as nossas predileções. Quanto mais nos damos à beleza, mais distantes estamos do bem” (96).

A definição de Beleza, por sua vez, é a seguinte:

"Chamamos de beleza, no sentido subjetivo, aquilo que nos traz um certo tipo de prazer. No sentido objetivo, chamamos de beleza algo absolutamente perfeito que existe fora de nós. Mas, como reconhecemos o absolutamente perfeito que existe fora de nós e o percebemos como tal somente porque recebemos um certo tipo de prazer da sua manifestação, significa que a definição objetiva não é senão a subjetiva expressa diferentemente. De fato, ambas as noções de beleza se reduzem a um certo tipo de prazer que recebemos, o que significa que reconhecemos como beleza aquilo que nos agrada sem despertar nosso desejo.”
(64)

Palavras curiosas vindas de um homem que, afinal de contas, escreveu livros tão belos! Pois Tolstói não é Céline, não é Beckett, não é Burroughs, não é Cioran: não escrevia querendo ser feio, grotesco, obsceno, mórbido ou chocante. Dizer que ele não procurava criar coisas belas é só meia verdade: ele via a beleza, na verdade, no contágio. Na empatia. Na união de almas que a arte possibilita e consagra.

* * * * *

[CONTÁGIO E COMUNHÃO]

As palavras chave na definição dos propósitos da arte, segundo Tolstói, deixam de ser “beleza”, “prazer” e “encantamento dos sentidos”. A arte passa a ter como objetivos o “contágio”, a “empatia”, a “transmissão de sentimentos”. Ela deve ser a expressão que faz o artista de um sentimento íntimo que deseja compartilhar com os outros humanos. Em Tolstói, a arte deixa ser uma oficina onde fabrica-se beleza para tornar-se um campo de batalha onde os artistas (ao menos os genuínos!) procuram unir os homens uns aos outros na mesma corrente fraterna. “Para definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para ela como veículo de prazer e considerá-la como uma das condições da vida humana. Ao considerá-la dessa forma, não podemos deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas.” (72)

Taí a palavra chave: um MEIO DE COMUNHÃO! E como é mais bonito isso em comparação com as hóstias, as missas e as rezas! É através da arte que comungamos, e não na Igreja! Através da arte, criamos pontes que nos salvam dos tormentos do isolamento e das geleiras da solidão. Só através dela, escapo por momentos do fechamento no meu próprio eu, e abro-me para experimentar sentimentos que outros experimentaram, e para imaginar o que outros imaginaram, e para chorar e para rir pelas razões que a outros contentaram ou entristeceram... enfim, abro-me à alteridade, ao renovador e rejuvenescedor contato com o outro, já que nossa mente, como diz a Julia Kristeva, é um “sistema aberto” e relacional, só “renovável” sob a condição de estar em diálogo e em troca afetuosa com outrem.

Donde a definição clássica: “arte é a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também.” (76) A importância dela é incalculável, pois, como um dos principais agentes ou soldados na batalha pela Fraternidade Humana! Pois a Arte é “um meio de intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em direção ao bem de cada homem e da humanidade, unindo-os em um mesmo sentimento.” (77)

Não mais emparedados e enjaulados no nosso próprio eu, pulamos na piscina de outros seres, neles nos banhamos, deles conhecemos os aposentos íntimos, os sentimentos secretos, as idéias inconfessadas, as imagens subjetivas, sendo que a arte “proporciona ao homem acesso a tudo que a humanidade experimentou antes dele no domínio do sentimento e aos sentimentos vivenciados por seus contemporâneos e por outros homens de milhares de anos antes.” (77) “Toda obra de arte, se for verdadeira, é a expressão dos sentimentos mais íntimos do artista” (172).

A arte, portanto, é na verdade um importantíssimo meio na construção da Grande Utopia: a Fraternidade Humana Universal, que diz Tolstói ser o máximo dos máximos em matéria de Ideal, seguindo bem fielmente, neste sentido, a mensagem cristã. E não é de pouca monta, nem pouco impressionante, a conexão que ele estabelece entre esses dois fenômenos: a arte e a utopia da fraternidade humana.

Para Tolstói, uma utópica sociedade onde vigesse uma perfeita fraternidade humana jamais existiria se não houvesse a Arte para nos conduzir neste sentido e em direção a este destino. Só a arte é capaz, se algo o for, de nos conduzir à concretização desse sonho talvez inconcretizável: a irmandade de todos os homens. Quando Tolstoi diz que a “consciência religiosa” de seu tempo baseava-se nisso, queria dizer, talvez, que este Ideal da Fraternidade era o que norteava as opiniões sobre o sentido da vida naqueles idos anos.

Pois então arte não é algo “excepcional”, que fazemos só de vez em quando: somos todos naturalmente artistas, e fazemos arte sem saber, sendo que ela, a Arte, “permeia toda a nossa vida” (78). Quando choramos, querendo contagiar o outro com nossa tristeza, seja ela isca para a compaixão, seja uma farpa de vingança, seja uma súplica da solidão, somos de fato artistas engajados na arte do contágio. Pois fazer arte é querer contagiar: que o outro sinta o que sinto! Que o outro sofra o que sofro! Que ria com o que rio! Que se angustie com meus tormentos! Que pulse comigo, na mesma batida, como se tivéssemos a mesma corrente sanguínea!

* * * * *

[A RELIGIÃO E O SENTIDO DA VIDA]
Até aí, perfeito. Acompanho Tolstói com muito prazer e assino embaixo de seus ditos. A grande treta entre nós começa quando, depois de ter definido a Arte em termos tão belos – sólidos, materiais, nascendo da necessidade humana de superar o isolamento existencial e ir em busca de uma utópica fraternidade, que é um Sol que convida ao vôo de Ícaro, de baixo para cima, na ascendente, como manda o marxismo! - ele vai e desanda... ele vai e nos trai... ele vai e... mete a Religião no meio!

Por um lado, confia no progresso incessante do conhecimento humano, neste sentido sendo discípulo do Iluminismo: “A humanidade move-se incessantemente de um entendimento mais baixo, mais parcial e menos claro da vida, para um que seja mais alto, mais amplo e mais claro. E, como em todo movimento, nesse também existem líderes – aqueles que entendem o significado da vida mais claramente do que outros – e entre estes há sempre um que, em suas palavras e em sua vida, tenha manifestado de forma mais vívida, acessível e vigorosa, esse significado da vida” (81) – e podemos supor que, como exemplos, ele pensa em Jesus, em Buda e em Sócrates.

Aí vem a polêmica: “As religiões são indicadores da mais alta compreensão da vida acessível em uma dada época” (81), e aí a bagunça está instaurada. Quem falou? O que prova? Concordo que as religiões são poderosíssimas, historicamente falando, e que é verdade que, em quase todos os casos, a idéia sobre o “Sentido da Vida” que faz uma certa sociedade depende diretamente da religião dominante nesta sociedade. Miséria da filosofia. Miséria do homem. Deixar nas mãos de uma dama tão velha, tão cega e tão iludida, a Religião, uma questão de suma importância feito o Sentido da Vida?!? Sai pra lá! Nem morto!

Até porque Tolstoi sabe muito bem o quanto a Relatividade das Culturas impede qualquer certeza inabalável sobre qual seria a “verdade” sobre “o que estamos fazendo aqui”. O que um tempo histórico considera que é o Sentido da Vida define o que este tempo pensa sobre a estética. A boa arte é aquela que serve à esse Sentido da Vida, que vai sempre mudando, de época em época, já que a humanidade, engatinhando e tateando, vai lentamente clarificando o imenso nevoeiro de brumas e sombras do Universo.

“Se a religião coloca o sentido da vida na adoração de um Deus único e no cumprimento do que é considerado Sua vontade, como no judaísmo, os sentimentos transmitidos pela arte e que resultam do amor a esse Deus e à sua lei – a poesia sagrada dos profetas, os Salmos, as histórias no livro do Gênesis – constituem arte boa e elevada. Tudo que se opõe a isso, como por exemplo transmitir o sentimento da adoração de outros deuses, ou sentimentos discordantes da lei de Deus, será considerado arte ruim. Se a religião coloca o sentido da vida na felicidade terrestre, na beleza e na força, a arte que transmite regozijo e o gozo da vida será considerada boa arte, enquanto a que transmite sentimentos de fragilidade e depressão será arte ruim, como se pensava entre os gregos. Se o sentido da vida está no bem da nação ou em em continuar o modo de vida dos ancestrais e reverenciá-los, a arte que transmite o sentimento de alegria no sacrifício do bem pessoal pelo bem da nação ou pela glorificação dos antepassados e manutenção de sua tradição será considerada boa arte, enquanto a arte que expressa sentimentos contrários a esses será considerada ruim, como entre os romanos e os chineses. Se o sentido da vida está em liberar-se do jugo da animalidade, a arte que transmite sentimentos que elevam a alma e humilham a carne será boa, como se considera no budismo, e tudo que transmite sentimentos que acentuam as paixões do corpo será ruim.” (82)


[OS ESCRAVOS DO CAPITAL!]
“Verifica-se, sem exagerar de modo algum, que entre os pensadores contemporâneos nenhum, nem mesmo Karl Marx ou Nietzsche, abalou de tal forma milhões e milhões de homens, para conduzi-los, incontestavelmente, nas direções mais diversas... Nenhum dos revolucionários russos do século XIX franqueou tanto a caminho a Lênin e Trotsky quanto este conde anti-revolucionário, que foi o primeiro a se opor ao Czar e que, perseguido pela excomunhão do Santo Sínodo, deixou a Igreja... Nenhum homem contribuiu tanto para radicalizar a Rússia quanto o radicalismo intelectual de Tolstói; nenhum encorajou tanto seus compatriotas a não recuar diante de nenhuma ousadia. A despeito de sua oposição interior, merece Tolstoi um monumento na Praça Vermelha. Assim como Rousseau é o precursor da Revolução Francesa, Tolstoi foi o precursor, o verdadeiro predecessor da Revolução Russa. (...) Todo homem de Estado, todo sociólogo, descobrirá, na sua crítica aprofundada da nossa época, visões proféticas; e todo artista se sentirá entusiasmado pelo exemplo deste poeta que torturou sua alma por querer pensar por todos e combater, pela força da palavra, a injustiça da terra.” - STEFAN ZWEIG (em "O PENSAMENTO VIVO DE TOLSTÓI")


“Libertem os escravos do capital e será impossível produzir uma arte tão refinada!”, esbraveja Tolstói, soando quase como um inflamado bolchevique da Revolução de 1917. Tanto que não soa nada absurdo a Zweig ver nele um precursor de Lênin: já que Tolstói foi um artista que se levantou contra os privilégios da nobreza, contra as pretensões das elites culturais, esmagando grandes ícones da arte admirada e bajulada pelos ricaços, reduzindo a pó grande parte dos artistas mais amados por aqueles que se fazem de entendidos!

“A maioria das obras de arte das classes superiores (...) nunca foi mais tarde entendida nem admirada pelas grandes massas e permaneceu o que sempre foi: uma diversão para as pessoas ricas de seu tempo” (103). “Para a vasta maioria dos trabalhadores, nossa arte, inacessível a eles em razão de seu preço, também lhes é estranha em seu próprio conteúdo, pois transmite os sentimentos de pessoas muito afastadas das condições de vida de grande parte da humanidade” (104). É surpresa que a Revolução Russa tenha explodido justamente na nação por onde passou mais forte o furacão Tolstoi?!

O elitismo é o grande inimigo deste defensor entusiástico de uma arte que seja simples, singela e compreendida por todos - já que dizer que uma obra é boa mas incompreensível é o mesmo que dizer que um tipo de alimento é muito bom, mas as pessoas não conseguem comê-lo” (136). A boa arte é sempre arte compreensível pela gente mais simples – e Tolstói cita como exemplos as parábolas do Evangelho, as narrativas homéricas da Ilíada e da Odisséia, os contos de fada, as canções populares, os hinos védicos etc. Talvez valha a pena perguntar: mas e a Educação Estética e o Desenvolvimento do Gosto, não existem? A sensibilidade humana não é passível de ser apurada, aperfeiçoada e expandida? Não é muita temeridade dizer que “a arte afeta as pessoas independentemente de seu grau de desenvolvimento e instrução” (138)? Isso quando sabemos, por exemplo, que é preciso muito “treino do ouvido” para que sejamos capazes de ouvir Mozart e Beethoven depois de termos passado a vida soterrados pela música pop! Ou muito “apuramento do olhar” para que, depois de tantos hollywoodianos, sejamos capazes de degustar um Bergman, um Kieslowski ou um Resnais...

Tolstói jamais sugere, neste tratado sobre a arte, que é possível ensinar alguém a “fruir” uma obra de arte, a perceber suas nuances, seus conteúdos implícitos, seus mistérios, como se o camponês mais rústico e sem cultura, ao não entender as grandes obras-primas da humanidade, estivesse absolutamente certo em taxá-las de “ruins”. “Dizer que um homem não é tocado por minha arte porque ele ainda é muito ignorante, o que é ao mesmo tempo muita presunção e muita desfaçatez, é perverter os papéis e tirar a culpa do doente para pôr no são” (141).

Tolstói sente ódio e repugnância pela arte das elites, especialmente aquela ultra refinada e cheia de ornamentos, feita de modo cerebral e desapaixonado, que é absolutamente incompreensível pelas grandes massas e jamais retrata a “verdadeira vida popular” em seus conteúdos. Analisando a arte de seu tempo, Tolstói diagnostica que ela foi se tornando “cada vez mais incompreensível para um número cada vez maior de pessoas” e “atingiu um ponto em que é compreendida por um número muito pequeno de eleitos” (cujo número continua a diminuir) (135).


E sente piedade dos milhares de trabalhadores que estão se sacrificando diariamente nos ofícios técnicos vinculados às artes, sem jamais poderem usufruir delas. “Para compor, imprimir, montar e encapar esses livros, milhões e milhões de dias de trabalho são gastos – não menos, penso eu, do que para construir uma grande pirâmide. (...) Milhões de dias de trabalho são gastos para produzir objetos igualmente incompreensíveis na pintura, na música, no teatro.” (129) Nada pior que esses poemas e quadros que “precisam ser decifrados como charadas” (149) mas que não contagiam ninguém com sentimentos e sensações!

Esse lado de revolucionário político de Tolstói, que beirou o anarquismo radical, foi muito bem analisado por Stefan Zweig, que chamou-o de um “franco-atirador resoluto” e de “adversário da coletividade mais apaixonado da época contemporânea” (15). Tolstói é um dos maiores dentre os escritores “revoltados”, mas preconiza “uma revolução de almas e não de punho”, como diz Zweig: “uma revolta vinda da consciência, uma revolta realizada pela renúncia espontânea dos ricos às riquezas, dos ociosos à inação”, sendo que o luxo é visto como a “flor venenosa deste charco, fazendo-se mister extirpá-la, pelo amor da igualdade entre os homens”, na expressão de Zweig.

Este chega mesmo a arriscar o hiperbólico dito: “Tolstói trava contra a propriedade um combate cem vezes mais encarniçado que o de Marx e Proudhon. 'A propriedade é hoje a raiz de todo o mal. Ela causa o sofrimento dos que a possuem e dos que não a possuem. O perigo dum conflito entre os que dispõe do supérfluo e os que vivem na pobreza é inevitável. Todo o mal começa com a propriedade'.” A diferença está nisso: “o nivelamento social não deve – é a idéia central de Tolstoi – vir de baixo, como querem os revolucionários, que expropriam à força os possuidores, mas do alto, por uma renúncia espontânea” - isto é: “o rico deve doar sua riqueza, o intelectual abandonar o seu orgulho, o artista preocupar-se exclusivamente em criar obras acessíveis à massa...” (22)

* * * * * *
[A OBSCURIDADE TRANSFORMADA EM DOGMA]

Tolstói também odeia obscuridades propositais, poemas indecifráveis, pinturas incompreensíveis. Xinga Baudelaire, Verlaine e Mallarmé por terem transformado a “obscuridade” em dogma. Estes escrevem, diz o russo, poemas tão misteriosos, tão enigmáticos, que decerto só poderão ser compreendidos por uma minúscula elite, que certamente se achará muitíssimo inteligente e superior ao resto da humanidade por tê-los entendido, ou ao menos ter fingido entendê-los. “Guiados por Nieztsche e Wagner, eles acreditam que não há necessidade de que sejam compreendidos pela plebe rude, que é suficiente que evoquem estados poéticos nos 'homens mais bem nutridos'...” (118)

Contra Baudelaire, diz de “As Flores do Mal” que ali “não há nenhum poema que seja simples e que possa ser entendido sem algum esforço – um esforço poucas vezes recompensado, porque os sentimentos transmitidos pelo poeta não são sentimentos bons, mas bastante torpes.” (120) O poeta francês, diz Tolstoi, “tinha visão de mundo que consistia em egoísmo rude transformado em teoria e na suplantação da moralidade pelo conceito de beleza” (124). Ah, como conseguem ficar furibundos esses, como Tolstói, que se vêem como arautos do Bem e da Moralidade! Reduz à titica estes dois gigantes da poesia francesa, Baudelaire e Verlaine, dizendo: “ambos são não apenas destituídos de ingenuidade, sinceridade e simplicidade, mas cheios de artificialidade, originalidade forçada e presunção.” (125)

Já contra Wagner, ele é especialmente demolidor e intransigente. A tentativa de unir música e poesia em obras monumentais e espetaculares, como “O Anel dos Nibelungos”, é visto como uma “falsificação poética, grosseira a ponto de ser ridícula” (175).

Tolstói, que viu em Moscou a representação, saiu dela soltando fogo pelas ventas: “a falsidade do que acontece no palco é tão repulsiva!”, xiou. “Trata-se somente do mau tom e mau gosto limitados e auto-confiantes de um alemão cujas idéias de poesia são absolutamente falsas e que quer, da maneira mais grosseira e primitiva, transmitir essas falsas noções de poesia a mim” (175). Como se não bastasse de bordoadas, ele chama a obra de “algaravia totalmente incoerente”, dizendo que “é difícil imaginar até mesmo uma criança de mais de 7 anos que pudesse se distrair com essa lenda estúpida e incoerente” (182). “Em nenhuma outra falsificação artística de meu conhecimento”, e vem aí a machadada final e impiedosa no pescoço trucidado de Richard Wagner, “estão combinados com tanta maestria e força todos os métodos de falsificação da arte, que são: o empréstimo, a imitação, o efeito e o desvio.” (184)

Não faltam farpas lançadas contra outros gigantes, de Beethoven e Shakespeare a Dante e Goethe. Ele chega até mesmo a dizer que a Nona Sinfonia é “sem nenhuma dúvida” uma “obra de arte ruim” (!!!). Mas há também os elogios: Tolstói assina embaixo da obra de Dostoiévski, Victor Hugo, Charles Dickens, Molière, entre outros.

Diz ele ainda que grande parte das pessoas que fazem parte do “círculo artístico” (os críticos, os poetas, os romancistas, os pintores, os escultores, os frequentadores de óperas, de museus e teatros), ignoram ou desconhecem “aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com seu sofrimento e misturemos nossas alma à dele, e que constitui a essência da arte...” (199).

* * * * *

[MISTURA DE ALMAS NO CALDEIRÃO DA ARTE]

Donde “um sinal irrefutável que distingue a arte verdadeira da falsificada é o contágio”: a verdadeira arte desencadeia um sentimento de “felicidade e de união espiritual com outro (o autor) e com outros (ouvintes ou espectadores) que percebem a mesma obra artística” (201).

“...aquele que percebe o trabalho artístico se funde ao seu autor de tal maneira que lhe parece que o objeto percebido foi feito não por outra pessoa, mas por ele mesmo, e que tudo o que é expressado por esse objeto é exatamente o que ele há muito vem querendo expressar. O efeito da verdadeira obra de arte é abolir, na consciência do receptor, a distinção entre ele mesmo e o artista. (...) É essa libertação da pessoa de seu isolamento e de sua solidão que constitui a principal força atrativa e propriedade da arte.”
(202)

A arte é cimento social. Mais que isso: é uma oportunidade de encontro. É um complexo sistema de pontes, de janelas, de portas, que nos permite ir conhecer outras almas, investigar o que pensaram outras mentes, sentir o que sentiram outros corações, vencendo o tormento e a limitação de ser um eu fechado na jaula de si mesmo.

“De repente uma história, uma apresentação, um quadro, mesmo um prédio ou, com maior frequência, uma música, une a todos com uma fagulha elétrica e, em lugar de seu distanciamento anterior, todos sentem união e amor mútuo. Cada um fica feliz porque o outro sente a mesma coisa que ele, feliz com essa comunhão que foi estabelecida, não somente entre ele e os outros presentes, mas com todas as pessaos vivas que receberão a mesma impressão. Mais ainda: há a misteriosa alegria de uma comunhão além-túmulo, com todos no passado que viveram o mesmo sentimento e os que no futuro o viverão” (217). “O observador fica mais satisfeito quanto mais claramente está expressado o sentimento que, conforme lhe parece, ele conhece e experimenta já por muito tempo, e para o qual só agora encontra expressão.” (203)

A criação deve nascer não do exterior (como acontece quando o artista está em um conservatório musical ou uma escola de artes, quando possui um patrocinador ou mecenas, quando cria sob encomenda dos poderosos reinantes etc.), mas sim de uma urgência de expressão interior, irrepresável e irresistível. “O artista deve experimentar uma necessidade íntima de expressar o sentimento que transmite” (203), diz Tolstói, e é o mesmo espírito de Rilke, que nas Cartas a um Jovem Poeta sugeria que só tem direito de criar aquele que sente que não seria capaz de viver se não criasse.

O Bem Maior ao qual a Arte deve servir, segundo Tolstói, é uma versão bem simples e singela da mensagem cristã: “o nosso bem, material e espiritual, individual e geral, temporal e eterno, consiste na vida fraterna, em nossa união de amor uns aos outros” - e é essa percepção, segundo ele, que serve como um “fio condutor” para os "trabalhos da humanidade", que deve estar sempre Rumando em direção a este ideal – a Fraternidade Universal.